MEMÓRIA / FREI GUILHERME NERY PINTO
Introdução necessária
Roberto Romano (*)
Faleceu, no ano 2001, Frei Guilherme Nery Pinto, da famosa Ordem de São Domingos, os dominicanos. Esta perda abalou todos os que, no Brasil, pensam de modo efetivo, sem apelo à propaganda que define boa parte das formações universitárias e da mídia. No silêncio de sua cela conventual, Frei Guilherme ajudou a formar gerações inteiras de intelectuais, religiosos, políticos. Era um sábio.
Seu nome não surgiu nas revistas, jornais, televisões. O alarido público não lhe fez justiça. Quando se consulta o hall da fama, o bom frade não aparece. Mas seu pensamento é poderoso e sua coragem não é menor. Os jovens que o visitaram, ao longo dos anos, puderam receber, com as mais sólidas bases filosóficas do catolicismo, especialmente Tomás de Aquino, dados sérios sobre filosofias diferentes, antropologia, arte, literatura, política etc. Uma brincadeira comum entre os moços que dele se aproximavam era repetir um ditado: "Frei Guilherme, a revolução na cela".
Antes de sua doença lhe retirar as forças, parece que ele acompanhou tudo o que passava no mundo, via internet. Mas nos anos de 1960, quem desejasse conversar sobre estruturalismo e suas vertentes adquiria boas noções com o frade sapiente e aberto ao diálogo.
O artigo abaixo, contra pena de morte, foi escrito na época da malograda Revisão Constitucional. Naqueles dias, João Paulo II editou o Catecismo Católico, com um sério recuo nos ordenamentos cristãos em relação à pena de morte. Com uma força de caráter inaudita, sobretudo na hora em que a Santa Sé punia teólogos brasileiros, Frei Guilherme escreveu este texto que, certamente, lhe traria dissabores.
Levei o escrito a um conhecido jornal paulista, colocando-o nas mãos de jovem coordenador de coluna. A pergunta que me foi endereçada, ela mesma., mostra o tipo de idéia que se tem do mundo intelectual brasileiro: o garoto perguntou-me se Frei Guilherme "era importante". Como não pronunciei nenhum nome de relevo entre as panelas acadêmicas ou políticas do Brasil, garantindo o texto, o artigo não foi publicado. Tempos depois, ele surgiu numa publicação interna da PUC de Minas Gerais, e no Página Central, um periódico de pequena circulação que muito contribuiu para o debate de idéias na sua curta existência.
O leitor pode julgar sobre a relevância das linhas abaixo nestes dias em que a morte é prometida para todo indivíduo que tiver a desgraça de cair nas mãos da polícia, e que a expressão "direitos humanos" parece banida da vida pública.
(*) Professor e ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Faleceu, no ano 2001, Frei Guilherme Nery Pinto, da famosa Ordem de São Domingos, os dominicanos. Esta perda abalou todos os que, no Brasil, pensam de modo efetivo, sem apelo à propaganda que define boa parte das formações universitárias e da mídia. No silêncio de sua cela conventual, Frei Guilherme ajudou a formar gerações inteiras de intelectuais, religiosos, políticos. Era um sábio.
Seu nome não surgiu nas revistas, jornais, televisões. O alarido público não lhe fez justiça. Quando se consulta o hall da fama, o bom frade não aparece. Mas seu pensamento é poderoso e sua coragem não é menor. Os jovens que o visitaram, ao longo dos anos, puderam receber, com as mais sólidas bases filosóficas do catolicismo, especialmente Tomás de Aquino, dados sérios sobre filosofias diferentes, antropologia, arte, literatura, política etc. Uma brincadeira comum entre os moços que dele se aproximavam era repetir um ditado: "Frei Guilherme, a revolução na cela".
Antes de sua doença lhe retirar as forças, parece que ele acompanhou tudo o que passava no mundo, via internet. Mas nos anos de 1960, quem desejasse conversar sobre estruturalismo e suas vertentes adquiria boas noções com o frade sapiente e aberto ao diálogo.
O artigo abaixo, contra pena de morte, foi escrito na época da malograda Revisão Constitucional. Naqueles dias, João Paulo II editou o Catecismo Católico, com um sério recuo nos ordenamentos cristãos em relação à pena de morte. Com uma força de caráter inaudita, sobretudo na hora em que a Santa Sé punia teólogos brasileiros, Frei Guilherme escreveu este texto que, certamente, lhe traria dissabores.
Levei o escrito a um conhecido jornal paulista, colocando-o nas mãos de jovem coordenador de coluna. A pergunta que me foi endereçada, ela mesma., mostra o tipo de idéia que se tem do mundo intelectual brasileiro: o garoto perguntou-me se Frei Guilherme "era importante". Como não pronunciei nenhum nome de relevo entre as panelas acadêmicas ou políticas do Brasil, garantindo o texto, o artigo não foi publicado. Tempos depois, ele surgiu numa publicação interna da PUC de Minas Gerais, e no Página Central, um periódico de pequena circulação que muito contribuiu para o debate de idéias na sua curta existência.
O leitor pode julgar sobre a relevância das linhas abaixo nestes dias em que a morte é prometida para todo indivíduo que tiver a desgraça de cair nas mãos da polícia, e que a expressão "direitos humanos" parece banida da vida pública.
(*) Professor e ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
A pena de morte e a dignidade humana
Frei Guilherme Nery Pinto OP
A violência que nestes tempos se tem manifestado em nossa sociedade, com alarmante freqüência de roubos, depredações, assaltos a mão armada, seqüestros, homicídios, praticados não raras vezes com requintes de crueldade, configura intolerável ambiente de insegurança, sobretudo para a população dos centros urbanos e mantem muitas pessoas em estado de tensão emocional.
Estes fatos despertam sentimentos de revolta, e persuadem larga parte da população a apelar para medidas que ponham termo aos graves crimes que afligem a sociedade. Para muitas pessoas de todas as classes a solução seria reintroduzir a pena de morte na legislação brasileira: "para grandes males, grandes remédios". O problema que envolve a penalidade suprema não é apenas de ordem legislativa, não pode ser dirimido por recurso à opinião pública, por via de plebiscito. A pena de morte tem sido amplamente debatida por juristas sob vários aspectos. A Comissão de Juristas que deve proceder à nova formulação do Código Penal declara que ela é inconstitucional e não pode ser adotada através de emenda, durante a revisão do texto da Constituição, o propalado plebiscito torna-se de todo irrelevante. [...] Revela-se, pois, remota, a possibilidade de sua introdução na lei brasileira.
Para o esclarecimento da opinião pública, julgo que pode haver ainda margem para algumas reflexões sobre o mérito desta importante questão, do ponto de vista moral, vale dizer, em confronto com os princípios da ordem moral dos quais decorrem os direitos fundamentais da pessoa humana.
As considerações que, de início, me ocorrem, dizem respeito ao caráter irreparável da pena de morte, que tem por fim imediato a destruição da pessoa do condenado. Os defensores desta forma de punição deveriam atender para as lições da história, que revelam as incertezas e a falibilidade das sentenças dos tribunais. O ministro Maurício Corrêa relembra que, em nosso país, no século passado, um fazendeiro foi acusado de ter trucidado sua família; condenado pelo tribunal por unanimidade, foi executado. Após alguns anos, foi comprovada sua inocência. A reabilitação póstuma constitui um ato de justiça e pode interessar os estudiosos da verdade histórica. Na realidade, porém, ela nada mais pode significar para os verdadeiros interessados, isto é, para a família do supliciado.
A reabilitação é o reconhecimento explícito de um erro judiciário de conseqüências irremediáveis. A execução de um inocente representa crime infinitamente mais grave do que a punição de um criminoso com a pena capital; contudo, mostrarei que, ainda com circunstâncias agravantes, a aplicação da pena máxima é de todo injustificável.
Desde logo vem a indagação: que instância superior julgaria, por sua vez, e condenaria os fautores de uma decisão que posteriormente se revelou injusta? A conclusão necessária é que, não havendo garantias judiciárias de que jamais um inocente seja condenado e executado, a pena de morte deve ser incondicionalmente excluída de toda lei penal. Como pondera o parlamentar José Serra, no Brasil, o risco de erro seria maior do que em outros países, visto que o sistema judiciário, em nosso país, comprovadamente se tem revelado deficiente.
Os que apelam para o poder de intimidação da pena de morte alimentam esperança ilusória. As estatísticas levadas a efeito nos países em que ela foi imposta falam em seu desfavor, mostrando que sua adoção não diminui, nem tampouco sua supressão aumentou a frequência da criminalidade. Esta é uma das razões por que em vários Estados modernos ela foi supressa ou não foi estabelecida.
Para o esclarecimento da consciência dos cristãos, é necessário informar que não existe doutrina oficial da Igreja a respeito da pena de morte. Os pensadores eclesiásticos dos primeiros séculos a condenavam, tendo em vista o preceito do Decálogo, sancionado pelo ensino evangélico. Após a conversão do império romano ao cristianismo, apareceram opiniões a favor da pena de morte. Na Idade Média, moralistas levando em conta o que era posto em prática nos Estados cristãos, justificavam e invocavam as exigências do bem comum da sociedade a defender, e por outra parte, denunciavam a degradação moral a que se expõe aquele que comete grave crime; contudo, não deixavam de fazer a esse gênero de punição severas restrições.
O papa Leão XIII, embora não se tratando expressamente da pena de morte, ao condenar o duelo, julga que a autoridade civil tem o direito de prescrever a pena capital. O papa Pio XII é mais explícito ao declarar que, em se tratando da execução de um condenado, o poder público não se sobrepõe ao direito à vida de um condenado à morte.
O catecismo da Igreja Católica, recentemente publicado, acolhe o ensino que nesta questão se tornou tradicional, em favor da pena de morte, não porém, de maneira unânime, visto que sempre houve moralistas até em épocas recentes que se opuseram à pena capital. O novo catecismo a mantêm circunscrita aos casos de extrema gravidade. Neste domínio, o magistério eclesiástico não teve o propósito de empenhar o caráter de infalibilidade. As duas declarações, embora versando sobre doutrina da fé, devem ser acolhidas com a consideração a que tem direito a mais alta instância religiosa, sem nos privar da liberdade de opinião a esse respeito.
Eu presto especial atenção ao ensino de Pio XII quando declara que, em se tratando de execução de um condenado, o Estado não dispõe do direito que a pessoa tem à vida. Compete ao poder público privar deste bem o condenado que, por grave delito, já se desapossou do direito à existência (Alocução de 13/9/1952). Em continuidade com o ensino do papa, eu digo que nenhuma razão nos persuade que o poder público seja, de fato, competente para proferir, com toda certeza, o veredicto da pena de morte, que priva o condenado da possibilidade de reabilitar-se.
Toda pessoa humana, em virtude de sua natureza espiritual, é uma realidade sagrada, possui eminente dignidade e o seu direito essencial, o direito à vida, é por si inviolável, não lhe sobrepondo nenhuma instância judiciária. A dignidade da pessoa humana é a razão fundamental para que a pena de morte, que tem por fim direto e imediato destruir a pessoa do sentenciado, seja, de modo incondicional, excluída de toda legislação penal e jamais seja introduzida na Constituição brasileira. Organismos sociais ou religiosos, como a Anistia Internacional, as Conferências Episcopais de muitos países, reclamam a abolição da pena de morte nos Estados em que ela é admitida.
O direito à vida é um bem que, por si, não admite restrições. Os casos limites de sua defesa, por meios cruentos, não representam exceções.Quem é ameaçado de morte por um agressor, pode tirar-lhe a vida, se não tem outro recurso; na ocorrência o homicídio constitui legítima defesa de um bem soberano. O chefe de uma nação cumpre imperioso dever quando defende a vida de seu povo, se for de todo necessário, pelas armas, contra uma potência inimiga.
Em razão destes princípios, compreendemos que um dos precípuos deveres da autoridade pública consiste em utilizar o meio mais apropriado à repressão de toda a forma de atentado às pessoas e à sociedade. Este meio não deve ser outro a não ser a prisão. Ela tem por fim privar o delinquente do uso da liberdade enquanto ameaça a vida e a segurança da população, mas não deve ser ambiente em que se procede ao aviltamento da pessoa do sentenciado.
As manifestações da violência, que de início assinalei, provêm de causas profundas que vem pôr em questão as bases em que se firmaram as culturas modernas. Estas bases repousam, sobretudo, em fatores de natureza econômica. A primazia atribuída ao capital em detrimento dos direitos dos operários à justa retribuição deu origem à formação do proletariado como classe. A subversão de valores na área econômica constituía grave forma de opressão da classe operária e, como denunciava Emmanuel Mounier, o capitalismo após um século de história assumiu o aspecto de tirania, acumulando no silêncio da normalidade injustiças e ruínas (revista Esprit, 1933).
Esse poder teve por conseqüência, no plano mundial, a divisão entre países ricos e países espoliados e empobrecidos, que tende a agravar-se. No Brasil, recente pesquisa revela que na Grande São Paulo mais de um milhão de pessoas vivem em condições subumanas de miséria. Em outros Estados é mais pungente a miséria em que jazem numerosas famílias. A desordem estabelecida pela economia capitalista representa requintada forma de injustiça social, que, nas sociedades evoluídas, podem assumir aspecto larvado e proteiforme, instaurando sob o véu da normalidade, permanente estado de injustiça.
Defrontamos, neste momento, com uma das principais causas da desordem moral que é a criminalidade. Ela surge, quase sempre, como resposta à intolerável situação de injustiça e miséria em que se debate amplos setor da população. Não se pode combater eficazmente as manifestações dessa desordem com meios igualmente violentos. As medidas eficazes consistem nas reformas sociais e econômicas que se impõem urgentes. Estas reformas estão sempre adiadas, e não sabemos se é por incompetência da classe governante ou por motivos inconfessáveis.
Deste modo, prolonga-se um estado de desesperança que pode levar a população sofrida a defender seus direitos à subsistência e justo bem-estar por seus próprios meios, não excluindo os atos de violência.
Se as verdadeiras causas da violência e da criminalidade são complexas, torna-se manifesto quanto é inconsistente aopinião dos que julgam resolver tão grave questão apelando para o pretenso poder coercitivo da pena de morte. Em todos os casos que envolvem atos de violência, cumpre não confundir o emprego de meios indiscriminados de compensação do real estado de miséria em que se encontram muitas pessoas � e que levam abertamente à prática de crimes � e a legítima defesa dos direitos humanos essenciais, se bem que pelo emprego da força, em face da injustificável omissão das autoridades públicas.
Por fim, convém saber que a supressão realmente eficaz das formas de violência de que padece o povo tão somente pode efetivar-se mediante a instauração em nosso país de uma ordem social, política e econômica com referência explícita aos postulados da moral social, que encontram sua mais perfeita expressão nos princípios da moral social cristã.