O Brasil Executivocentrista
Roberto Romano/prof. titular da Unicamp
O
Estado, tal como o conhecemos, teve seu apogeu nos séculos 16 e 17, a era do
absolutismo. Desee então, ele sofreu
mudanças rumo à vida democrática (com as revoluções da Inglaterra, ainda no
século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18). Mas logo o aparelho
estatal rumou para a recusa da democracia e enrijeceu os seus mecanismos
repressivos, com a hegemonia do poder Executivo sobre os parlamentos e a
justiça. Napoleão inaugurou essa nova maneira de governar cuja evolução levou,
no século 20, aos totalitarismos nazista, fascista, estalinista. Com o controle
do executivo sobre a sociedade, a política pouco a pouco se reduziu ao
procedimento plebiscitário: as eleições deixaram de significar aprovação ou
negativa cidadã aos projetos de política pública e se reduziram à tarefa de
aprovar ou indeferir os mandatos do Chefe de governo ou de Estado.
Com
os braços postos em todas as governanças (econômica, social, esportiva,
artística, etc) o Executivo se transformou na única fonte de recursos públicos,
nominalmente responsável pela segurança, saúde, educação, transporte, lazer.
Bem ou mal, no Brasil herdeiro do executicentrismo absolutista se conseguiu,
até os anos 50 do século passado, harmonizar de algum modo a prática
plebiscitária e a administração dos assuntos coletivos. A partir de JK (com a
simbólica construção de Brasilia, que concentrou o poder estatal ainda mais num
ponto geográfico) assistimos a vertiginosa passagem da ordem rural para a
urbana. Com os 50 anos em 5 do juscelinismo e as estradas sob a batuta de
empreiteiras, surgem aglomerados urbanos aniquilando o sertão. O Brasil deixa
de ser uma esteira ao longo do Atlântico (a longa fila de capitais que vai de
Manaus a Porto Alegre) e se transforma em uma terra mais densamento povoada.
No
período ditatorial a geração de estradas aumenta, bem como a migração de interioranos rumo aos grandes centros,
conduzindo para as periferias massas cujo emprego e salários são precários, e
cujas reivindicações de políticas públicas ainda são incipientes. Mesmo assim,
as tensões e o mal estar trazido pelas aglomerações humanas geraram muitas
lutas, quase sempre enfrentadas pela força física policial, com base numa
justiça cujos representantes viviam a realidade anterior ao denso povoamento
urbano pós JK.
A
maior condensação humana em centros médios espalhados pelo país trouxe ao mesmo
tempo um acúmulo inédito de carências na ordem pública (saúde, segurança,
educação, etc) e mais informação para a nova cidadania. Não por acaso a ditadura
tratou de censurar a imprensa, pois seus estrategistas perceberam o potencial
da opoisção que poderia ser erguida com setores urbanizados e com maior
conhecimento da realidade. As eleições de 1974 marcam uma virada decisiva na
vida do país. Mesmo sob forte propaganda do regime, as opoisções venceram,
inviabilizando a ditadura. A livre imprensa tem um grande papel em semelhante
virada.
Após
o regime civil e militar o país patinou na economia nas políticas públicas. A
inflação, herdada do período autoritário, mostrou toda sua força, tornando
inúteis os planos que, desde o plano Cruzado ao plano Bresser, apenas atacavam
os efeitos do processo inflacionário sem mudar a lógica do seu combate. O
executivocentrismo plebiscitário, levado adiante sob Sarney e Collor, piorava o
descontrole econômico e jogava as políticas públicas para o plano da mera
propaganda eleitoreira.
O
Plano Real conseguiu mudar a referida lógica, idealizado que foi sob um
presidente interino que dele não dependia para vencer eleições. Além de atenuar
a inflação, o plano possibilitou a entrada, lenta no início, e cada vez mais
acelerada depois, de imensas massas antes presas aos grotões das periferias.
Tais massas passaram a exigir serviços públicos compatíveis com as suas
carências, enfrentando a quase inatividade eleitoreira dos políticos com seus
programas que, em grande parte, eram apenas demagogia. O “Fura Fila” imaginado
por Duda Mendonça para captar os votos paulistanos é paradigmático, mas
inúmeros outros artifícios retóricos poderiam ser referidos.
Resultado:
com a máquina mastodôntica e burocratizada do poder federal, que concentra
todas as políticas públicas nos palácios de Brasília, e sem verdadeira
administração continuada em períodos não eleitorais (períodos que se tornam a
cada dia mais curtos), as massas só encontram a propaganda diante de si, sem
nenhuma solução digna do nome quando se trata de política pública. Os políticos
que controlam Estados e municípios não têm recursos financeiros e técnicos, nem
autonomia e competência para encaminhar problemas agudizados pela entrada das
novas multidões no espaço urbano.
Pescadores
de agua turva (e como são turvas!) das mais diversas ideologias, como é o caso
dos Black Bloc, colocam em questão o velho aparelho do governo dominado pelo
ineficiente e caduco executivo federal. Se a forma concentracionária do poder
não mudar no Brasil, rumo ao federalismo de fato, multidões cada vez mais
raivosas e desonrientadas mostrarão aos oportunistas de sempre que a sua ilusão
de mando é a cada instante mais frágil.