Terça, 04 de fevereiro de 2014
“As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado”. Entrevista especial com Ricardo Hirata
“Nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo
— 97% das águas doces e líquidas do planeta. Quando vemos problemas de
estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor
que é no recurso subterrâneo que está a possibilidade de superação”,
destaca o hidrogeólogo.
Foto: iThirst |
“O usuário não tem ideia dos custos de
extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de
controle afetam a sua extração. Ele está pagando mais pela água sem
saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que
está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com
grandes usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um
conflito não percebido pela população, que não tem ideia de causa e
efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma
percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas
urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam
economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem
implementadas em suas captações”, aponta o hidrogeólogo Ricardo Hirata.
O pesquisador lidera o Centro de Pesquisas de Água Subterrânea – CEPAS, instituição vinculada à Universidade de São Paulo - USP e que há mais de dez anos investiga os índices de nitrato em águas subterrâneas no estado de São Paulo. “O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo”, enfatiza Hirata.
As principais fontes de contaminação são o esgoto urbano, proveniente
de fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento das redes de
saneamento que sofrem com a falta de manutenção, e o uso excessivo de
fertilizantes nitrogenados no meio rural. As pesquisas do CEPAS
vêm demonstrando aumento na concentração de nitrato nas águas
subterrâneas, mesmo naquelas áreas em que há redes antigas de saneamento
— o que é indicativo da existência de vazamentos nos canos de esgoto.
“As águas subterrâneas são um recurso
pouco entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas
sejam utilizadas por mais de 35-40% da população brasileira. No estado
de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são total ou parcialmente
abastecidos pela rede pública com águas de aquíferos. Isso é mais
notável em cidades de médio e pequeno porte, onde os recursos
subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os recursos
superficiais. Cidades como Ribeirão Preto - SP, Porto Alegre - RS,
Manaus - AM, Natal - RN, Brasília - DF, São José dos Campos - SP, Jales -
SP, Marília - SP dependem fortemente das águas subterrâneas”, ressalta o
pesquisador.
Foto: bloggeografiaf |
Ricardo Cesar Aoki Hirata é diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas – CEPAS da Universidade de São Paulo – USP e professor do Instituto de Geociências da mesma instituição. Possui graduação em Geologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, mestrado e doutorado em Geociências com área de concentração em Recursos Minerais e Hidrogeologia pela USP e pós-doutorado pela Universidade de Waterloo, no Canadá. É consultor da UNESCO e da International Atomic Energy Agency - IAEA, tendo atuado também como consultor da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS/OMS.
Confira a entrevista.
Ricardo Hirata. Foto: arquivo pessoal |
IHU On-Line – Que relação há
exatamente entre os índices de nitrato e a contaminação de aquíferos por
infiltração de esgoto urbano?
Ricardo Hirata - O
nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no
Brasil e no resto do mundo. As suas características de alta mobilidade e
grande persistência nas águas subterrâneas fazem com que plumas de
nitrato sejam encontradas em quase todos os aquíferos urbanos no Brasil.
Nesse caso, a principal fonte é o esgoto proveniente de fossas sépticas
ou negras ou mesmo do vazamento da rede de esgoto, que carecem de
manutenção.
IHU On-Line – Este cenário é
também verificado no meio rural? Qual a incidência de contaminação das
águas por fertilizantes e agrotóxicos?
Ricardo Hirata - O nitrato também é bastante comum no meio rural, pois em áreas agrícolas o excesso de fertilizantes nitrogenados,
que é bastante comum, acaba chegando até o aquífero, contaminando-o.
Neste caso, não temos muitos estudos no Brasil e, portanto, temos ainda
pouca ideia de sua extensão. Mas, a partir da experiência em outros
países, é de se acreditar que haja problemas no Brasil, atingindo-se
grandes áreas, sobretudo pela sua grande vocação agrícola, de alta
técnica.
IHU On-Line – Quais são os principais riscos da ingestão de nitrato para a saúde humana?
Ricardo Hirata - O nitrato é um contaminante de média toxicidade. Assim, em concentrações acima de 10mg/L (como nitrogênio-nitrato; e 45mg/L, como nitrato),
pode provocar a meta-hemoglobinemia, que afeta bebês. Há igualmente
suspeitas de que, em concentrações bastante menores, ele também seja
carcinogênico [que pode provocar câncer].
IHU On-Line – Que outros contaminantes nocivos à saúde humana são encontrados nas águas subterrâneas? Que riscos provocam?
Ricardo Hirata - Há uma
infinidade de compostos que podem, em concentrações excessivas,
provocar problemas à saúde humana. Um grupo de contaminantes bastante
preocupantes são os solventes sintéticos clorados. Esses apresentam
grande toxicidade e são bastante persistentes e móveis em aquíferos. O
interessante é que, devido a sua grande volatilidade, esses
contaminantes não têm a mesma importância para as águas superficiais.
Isso faz com que os órgãos de controle ambiental do Brasil não deem
atenção a eles em programas de monitoramento regular nas águas
subterrâneas. Metais pesados formam outro grupo bem importante e nocivo
às águas subterrâneas, embora eles não apresentem a mesma mobilidade que o nitrato ou os solventes clorados nos aquíferos.
IHU On-Line – Nesta perspectiva, quais foram os principais resultados encontrados pelas pesquisas realizadas pelo CEPAS?
Ricardo Hirata - Os resultados que o CEPAS
tem acumulado ao longo desses 10 anos no estudo do nitrato fez concluir
que esse contaminante tem sido detectado cada vez mais no estado de São Paulo,
permitindo afirmar que todas as cidades paulistas apresentam, em
variados graus, problemas com esse contaminante. A rede oficial de
monitoramento do estado, operada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - CETESB,
tem inclusive mostrado aumentos nas concentrações desse contaminante em
seus poços, corroborando com os resultados de nossas pesquisas.
Outra importante constatação que não era
considerada pelos gestores ambientais é que grandes plumas de nitrato
estão sendo detectadas em aquíferos urbanos, mesmo que a área já tenha
há muito tempo rede de esgoto. Embora a existência de rede de esgoto
diminua substancialmente a carga contaminante ao subsolo
(comparativamente a fossas sépticas e negras), a falta de manutenção da
rede pública e os seus vazamentos são suficientes para criar importantes
plumas contaminantes. O que preocupa nesse cenário é que simulações em
computador feitas pelo nosso grupo com as plumas observadas em cidades
(mesmo com rede de esgoto) têm mostrado que estas levariam, caso
cessadas completamente as fugas de esgoto, mais de 60 anos para ter os
seus aquíferos novamente limpos, mostrando claramente que evitar o
problema é a melhor e mais barata solução para o nitrato. Neste caso, o
que se conclui é que a rede de esgoto moderna, com tubos plásticos, deve
anteceder a qualquer ocupação do terreno urbano.
IHU On-Line – Estes resultados servem de parâmetro para outras realidades regionais e/ou para um cenário nacional?
Ricardo Hirata - Sim, a presença de nitrato em outros aquíferos fora do estado de São Paulo
deve ocorrer, e até em maiores proporções, pois as cidades possuem
menor cobertura de rede de esgoto comparativamente às cidades
paulistanas. O melhor exemplo disso é Natal - RN,
cidade abençoada pela excelente qualidade de suas águas subterrâneas,
mas onde a concessionária tem dificuldades de fornecer água sem nitrato
(e potável) à sua população. A combinação entre poços mal localizados
(dentro da malha urbana densa) e a falta histórica de rede de esgoto tem
criado os sérios problemas lá observados.
IHU On-Line – Há fiscalização sobre a potabilidade da água de poços tubulares (artesianos)?
Ricardo Hirata - A
legislação que controla o uso da água subterrânea é estadual e em muitos
estados há mecanismos para a fiscalização da qualidade das águas
extraídas por poços tubulares. O problema é que essas leis são pouco
seguidas, foram daqueles instrumentos que não “pegaram” ainda. O usuário
não vê importância na regularização de seu poço e nos benefícios que
isso pode trazer para ele e para toda a comunidade, e, por extensão, ao
ambiente. De outro lado, o estado não tem oferecido nenhum dos serviços
pelos quais ele é responsável, como o de implementar a sustentabilidade
do recurso, fazendo com que o controle evite a contaminação e os
problemas de superexploração.
A falta de um controle das demandas de
água pode levar a importantes problemas, muitas vezes desconhecidos
pelos usuários, incluindo:
a) redução dos níveis aquíferos,
encarecendo o bombeamento das águas subterrâneas pelo aumento do consumo
de energia ou necessidade de aprofundamento do poço;
b) redução dos fluxos de base a corpos
de água superficial, como rios e lagos, causando problemas de vazão
durante, sobretudo, as estiagens;
c) indução de contaminação e salinização das águas;
d) indução de problemas geotécnicos, como afundamentos do terreno;
e) exaustão do recurso e sua perda.
Outra área de pesquisa do CEPAS
está concentrada na gestão dos recursos hídricos subterrâneos e tem
concluído que o usuário não tem ideia dos custos de extração das águas
e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle
afetam a sua extração. O usuário está pagando mais pela água sem saber
que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que está
provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes
usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não
percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse
ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção
bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As
empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam economizar
muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas em
suas captações.
IHU On-Line – Qual é a relevância dos poços tubulares para o abastecimento de água no Brasil?
Ricardo Hirata - Muito
maior que a percepção que o brasileiro e seus gestores têm. As águas
subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado pela
população, embora elas sejam utilizadas por mais de 35-40% da população
brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são
total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com águas de
aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte, onde
os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os
recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto - SP, Porto Alegre -
RS, Manaus - AM, Natal - RN, Brasília - DF, São José dos Campos - SP,
Jales - SP, Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas.
Mesmo na Bacia do Alto Tietê, as águas subterrâneas são o quarto mais
importante manancial, fornecendo mais de 10 metros cúbicos por segundo
de água, superando os outros cinco mananciais superficiais operados pela
Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - SABESP. Na agricultura, o censo agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE computa mais de 450 mil poços tubulares (não cacimbas) em áreas rurais brasileiras.
IHU On-Line – É viável a descontaminação da água com incidência de nitrato?
Ricardo Hirata - Sim,
há tecnologias, como os sistemas de osmose reversa, que são bastante
caras. Há técnicas de descontaminação das águas dentro do aquífero, com a
injeção de produtos que provocam a desnitrificação, mas essas técnicas
estão ainda no campo da pesquisa. O que as empresas concessionárias de
água têm feito é mesclar águas contaminadas com outras em que a
concentração de nitrato é menor, permitindo fornecer águas não
contaminadas.
Foto: Mundo das Tribos |
IHU On-Line – O que pode ser feito para a reversão deste quadro de contaminação contínua das águas subterrâneas?
Ricardo Hirata - Um dos
grandes problemas que as águas subterrâneas enfrentam é o
desconhecimento de sua importância, o que leva à falta de atenção por
parte dos gestores. As águas subterrâneas não estão na agenda dos
governos nem do setor agrícola. De um lado há um recurso já bastante
utilizado no Brasil, cujos ganhos econômicos, sociais e ambientais não
são percebidos, entretanto, pela população. Isso faz com que esse
recurso não seja discutido nas grandes tomadas de decisão no
planejamento urbano ou mesmo rural.
De outro lado, nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo — 97%
das águas doces e líquidas do planeta estão nos aquíferos. Quando vemos
problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas,
podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a nossa
possibilidade de superação do problema, a partir do uso conjunto e
racional do recurso subterrâneo e superficial. É uma imensa caixa de
água de excelente qualidade esperando para ser convenientemente
aproveitada. Assim, investir no conhecimento do recurso, buscando as
novas oportunidades, é imperioso para aumentar a segurança hídrica em
cidades.
Um segundo ponto é que os estados, por
meio de seus órgãos gestores, realmente gestionem as águas subterrâneas,
fazendo com que as leis sejam de fato cumpridas, e que a população e
usuários sejam informados dos benefícios e limitações que podem surgir
pelo mau uso do recurso ou do solo.
IHU On-Line – As políticas
públicas de saneamento e a legislação brasileira dão conta da
preservação das águas e, consequentemente, da saúde humana?
Ricardo Hirata - Em
parte sim, mas é importante notar que a simples presença de redes de
esgoto não elimina o problema da contaminação por nitrato em áreas
urbanas. Novas redes, com novos materiais, e manutenção periódica é que
vão garantir a qualidade das águas. Da mesma forma, os planejadores
devem levar em consideração que é importante construir redes de esgoto
nas novas áreas urbanas (preferencialmente antes de sua ocupação),
antecipando-se aos problemas.
Outro ponto importante é que muitos
sanitaristas acreditam que se deveria fechar os poços tubulares quando a
área já tenha rede de água potável. A motivação para isso é muitas
vezes simplista e não leva em consideração o real papel que o
abastecimento privado tem nas nossas cidades. Por exemplo,
considerando-se as cidades da Bacia do Alto Tietê.
A população é razoavelmente bem servida de água, mas o que os dados
estatísticos oficiais esquecem é que temos mais de 10 metros cúbicos por
segundo advindos de 12 mil poços privados que suplementam o
abastecimento. Sem essa água, o sistema de abastecimento não daria conta
e teríamos sérios problemas. O mesmo é para Recife, onde mais de 13 mil
poços (a maioria privada) suplementam o abastecimento da Companhia Pernambucana de Saneamento - COMPESA e fazem a diferença, sobretudo em períodos de estiagem como o que ocorreu recentemente.
Adicionalmente, deve-se considerar a
economia que as águas subterrâneas trazem para o usuário. Um poço bem
operado em um aquífero produtivo geralmente fornece água com menores
custos, comparativamente às águas das concessionárias, e muitas vezes
com qualidade superior. Vide as águas minerais. Todas elas são
subterrâneas!