Golpe à brasileira
19 de fevereiro de 2014 | 2h 09
Marco Antonio Villa* - O Estado de S.Paulo
Às vésperas dos 50 anos do golpe militar torna-se
necessário um resgate da História para entendermos o presente. Em 1964 o
Brasil era um país politicamente repartido. Dividido e paralisado.
Crise econômica, greves, ameaça de golpe militar, marasmo
administrativo. O clima de radicalização era agravado por velhos
adversários da democracia. A direita brasileira tinha uma relação de
incompatibilidade com as urnas. Não conseguia conviver com uma
democracia de massas num momento de profundas transformações. Temerosa
do novo, buscava um antigo recurso: arrastar as Forças Armadas para o
centro da luta política, dentro da velha tradição inaugurada pela
República, que já havia nascido com um golpe de Estado.
A esquerda comunista não ficava atrás. Sempre estivera nas
vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou depor Getúlio
Vargas por meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou
incessantemente o apoio dos militares, alcunhando alguns de "generais e
almirantes do povo". Ser "do povo" era comungar com a política do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e estar pronto para atender ao
chamado do partido numa eventual aventura golpista. As células
clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas como uma
demonstração de força política.
À esquerda do PCB havia os adeptos da guerrilha. O Partido Comunista
do Brasil (PCdoB) era um deles. Queria iniciar a luta armada e enviou,
em março de 1964, o primeiro grupo de guerrilheiros para treinar na
Academia Militar de Pequim. As Ligas Camponesas, que desejavam a reforma
agrária "na lei ou na marra", organizaram campos de treinamento no País
em 1962 - com militantes presos foram encontrados documentos que
vinculavam a guerrilha a Cuba. Já os adeptos de Leonel Brizola julgavam
que tinham ampla base militar entre soldados, marinheiros, cabos e
sargentos.
Assim, numa conjuntura radicalizada, esperava-se do presidente um
ponto de equilíbrio político. Ledo engano. João Goulart articulava sua
permanência na Presidência e necessitava emendar a Constituição.
Sinalizava que tinha apoio nos quartéis para, se necessário, impor pela
força a reeleição (que era proibida). Organizou um "dispositivo militar"
que "cortaria a cabeça" da direita. Insistia em que não podia governar
com um Congresso Nacional conservador, apesar de o seu partido, o PTB,
ter a maior bancada na Câmara dos Deputados após o retorno do
presidencialismo e não ter encaminhado à Casa os projetos de lei para
tornar viáveis as reformas de base.
Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para uso
político, mas distantes da História. A associação do regime militar
brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e
Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui
faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que
nasceu com o Positivismo, no final do Império. O desprezo pela
democracia rondou o nosso país durante cem anos de República. Tanto os
setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a
democracia num obstáculo à solução dos graves problemas nacionais,
especialmente nos momentos de crise política. Como se a ampla discussão
dos problemas fosse um entrave à ação.
O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é
possível chamar de ditadura o período 1964-1968 - até o Ato
Institucional n.º 5 (AI-5) -, com toda a movimentação político-cultural
que havia no País. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei
de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982.
Que ditadura no mundo foi assim?
Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da luta
armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares
teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações. Num país
sem memória, é muito fácil reescrever a História.
A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos,
sequestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum.
Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura a não ser
pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos existiam antes
de 1964 e outros foram criados pouco depois, quando ainda havia espaço
democrático. Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta
política e pela participação no sistema político, e a simpatia pelo
foquismo guevarista antecederam o AI-5, quando, de fato, houve o
fechamento do regime. O terrorismo desses pequenos grupos deu munição
(sem trocadilho) para o terrorismo de Estado e acabou sendo usado pela
extrema direita como pretexto para justificar o injustificável: a
barbárie repressiva.
A luta pela democracia foi travada politicamente pelos movimentos
populares, pela defesa da anistia, no movimento estudantil e nos
sindicatos. Teve em setores da Igreja Católica importantes aliados,
assim como entre os intelectuais, que protestavam contra a censura. E o
MDB, este nada fez? E os seus militantes e parlamentares que foram
perseguidos? E os cassados?
Os militantes da luta armada construíram um discurso eficaz. Quem os
questiona é tachado de adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de
qualquer crítica e evitam o que tanto temem: o debate, a divergência, a
pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política
em questão pessoal, como se a discordância fosse uma espécie de
desqualificação dos sofrimentos da prisão. Não há relação entre uma
coisa e outra: criticar a luta armada não legitima o terrorismo de
Estado. Temos de refutar as versões falaciosas. Romper o círculo de
ferro construído, ainda em 1964, pelos adversários da democracia, tanto à
esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente
falando, daqueles que transformaram o antagonista em inimigo; o espaço
da política, em espaço de guerra.
*Marco Antonio Villa é historiador, autor do livro 'Ditadura à Brasileira' (Ed. Leya).