Juízes e golpes
Roberto Romano
Hoje reitero um tema grave da moderna vida brasileira. Quando temos a prova de que a lei impera? Quando juízes asseguram os direitos de indivíduos e grupos. É pelo magistrado que sabemos se a Constituição tem alma ou é letra à espera de sopro vital. No regime democrático, a fonte do ânimo é a soberania popular. Sem ela, que só aparece com liberdade e autonomia popular, resta o corpo morto de leis e instituições.
Juízes burocráticos não existem apenas hoje, e no Brasil. Não por acaso Jesus usa o símile do juiz iníquo para mostrar a diferença entre a justiça divina e a dos homens. “Havia numa cidade certo juiz, que nem a Deus temia, nem respeitava o homem. Havia também, naquela mesma cidade, uma certa viúva, que ia ter com ele, dizendo: Faze-me justiça contra o meu adversário. E por algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: Ainda que não temo a Deus, nem respeito os homens. Todavia, como esta viúva me molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte, e me importune muito. E disse o Senhor: Ouvi o que diz o injusto juiz. E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite, ainda que tardio para com eles?” (Lucas, 18, 4- 8).
A injustiça não poupa sequer os tribunais populares na Grécia. Na Apologia de Sócrates, Platão endereça uma crítica velada contra os tribunais democráticos. No célebre julgamento do pensador, os que decidiriam a sua sorte mostraram-se sedentos de condenação, a baderna foi tamanha que só com muita dificuldade o acusado conseguiu se fazer ouvir. A Helié, tribunal onde Sócrates teve sua sorte definida, dispunha de aproximadamente 6 mil jurados, todos saídos da Assembléia. Eles eram sorteados segundo a gravidade maior ou menor da acusação. Os jurados depositavam uma ficha em urnas, vazias em caso de condenação, cheias no caso contrário. No diálogo Górgias, Platão ironiza a justiça onde impera a retórica, “nos dicastérios e demais multidões”. O termo usado por Platão para designar as multidões de juízes é ochlos, massa irriquieta. Outra critica encontra-se na imagem do povo, “Grande Criatura” que mostra seu lado bruto e estúpido quando julga quem a desagrada. Platão nota a suscetibilidade dos tribunais populares aos apelos dos retores e o quanto eles são movidos pelos motivos políticos. O mais grave, segundo o filósofo, é o segredo do voto que torna o julgador individual imune às críticas e ataques (Leis, 876 b).
A Constituição vive na alma do povo ou é palavra morta. É preciso que sua letra não fique parada e distante, muda e queda como ídolo. E os meios por excelência para que ela deixe os volumes da ciência jurídica e se mostre eficaz, encontram-se nos juízes. Garantir o direito é muito sério. Ora, como diz a Carta VIIa, “quando vemos obras em forma de leis por algum legislador, seja sobre um assunto ou outro (...) devemos saber que para ele o assunto não é de fato sério (...) se por acaso ele julga de fato que se trata de coisas sérias, devemos dizer que não os deuses, mas os mortais, lhe arruinaram completamente o espírito”. Na República existe um retrato irônico do juiz que ronca durante os trabalhos (405c).
Seria importante seguir o dia a dia dos tribunais para saber quantos juízes brasileiros roncam, no instante em que os integrantes do poder desejam nele se perpetuar, contra a lei. Na crise brasileira, os juízes devem se pronunciar. Se eles permitirem artimanhas como o Terceiro Mandato, o Estado brasileiro estará perdido. A Presidência do Brasil tem natureza plebiscitária. Com base em tal pressuposto, presidentes em alta na “opinião pública” tentam quebrar a democracia, se incrustando ao cargo. FHC deu o pior passo, quando conseguiu novo mandato. O atual presidente (ninguém é tolo para crer que os áulicos falam por si mesmos) o imita, piorando seu erro. Esperemos que o STF vete o golpe de Estado que se prepara desde longo tempo nas entranhas do Planalto. Se ele não tiver semelhante altivez, seremos obrigados à resistência, contra o estupro da república.