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Intelectuais e mordaças voluntárias
ROBERTO ROMANO
Muitos intelectuais silenciam quando seu partido político chega ao poder. As violentas agressões aos direitos coletivos e individuais desaparecem para aquelas mentes que militam em favor de si mesmas e de seus grupos. Como resultado, muitos intelectuais recebem mordaças e seus nomes são cobertos pelo silêncio espesso das ditaduras em ato ou em potência. A regra vale para todos os regimes políticos da modernidade. A mitologia reza que os pesquisadores buscam a verdade sem dogmatismo. Triste engano. Quem vive entre os habitantes dos laboratórios e bibliotecas descobre a falácia. Não por acaso Hegel afirma ser o universo dos intelectuais um “reino animal do espírito”. Cada mestre afirma buscar o verdadeiro, o correto, o belo. Mas todos querem unir seus nomes aos saberes admitidos pelos colegas, políticos, jornalistas, populares. Na luta pela fama, que resulta em verbas, admissão nos gabinetes poderosos, servilismo dos pares menos favorecidos, urge esmagar os concorrentes. Como ninguém na intelectualidade chega ao controle do Estado ou das igrejas (quem realiza a façanha deixou de ser pesquisador antes de pisar nos palácios), a constelação dos cerebrinos, como afirma um comentador de Hegel, “é o reino dos ladrões roubados”. A fama decepciona, pois “o que falta aos intelectuais, para chegar ao poder não é prestígio, mas votos”. A frase de Gérard Lebrun demonstra lucidez enceguecedora.
Muitos, na corrida pelo domínio do verbo e das verbas, copiam trabalhos alheios e os apresentam como seus. Ou usam idéias de colegas e citam a fonte, malandramente, só na bibliografia geral do livro. Muitos se apropriam de métodos e técnicas inventados pelos pares. As malícias do zoológico espiritual são infindáveis e dolorosas. Cada “apropriação heterodoxa” atinge os prejudicados, que amanhã poderão prejudicar seus colegas. É apropriada, para descrever os intelectuais, a frase do sobrinho de Rameau (protótipo do acadêmico sem dinheiro, poder, talento ou disciplina) : “Parecemos alegres; mas no fundo temos péssimo humor e grande apetite. Lobos são menos esfaimados; tigres, menos cruéis. Devoramos como lobos quando a terra ficou muito tempo coberta de neve; estraçalhamos como tigres tudo o que é bem-sucedido”. Recordando Molière: “ninguém será inteligente, se não for tão tolo quanto nós”.
Um livro importante ostenta título sugestivo: Silenciando cientistas e acadêmicos em outros campos : Silencing scientists and scholars in other fields: power, paradigm controls, peer review, and scholarly communication. O autor é Gordon Moran (London, Ablex Publishing Corporation, 1998). Gordon narra as impressões recolhidas por ele quando, jovem bolsista, aceitava ser usado pelos velhos professores para preencher as cadeiras vazias nas palestras de mestres visitantes e nas recepções que vinham depois. A impressão causada no moço que iniciava a vida profissional era de certa polidez dos grandes intelectuais nos debates teóricos e metodológicos. Gordon manteve a certeza de que os grandes nomes acadêmicos são afáveis, ouvem e falam na hora certa, respeitam o “sentimento” (como se dizia no século 18 francês) dos oponentes.
Pobre Gordon! Mais tarde, ao trabalhar como crítico de pintura, foi conduzido a noções que contradiziam o ensino oficial. No Palazzo Publico de Siena há o retrato de Guido Riccio da Fogliano, atribuído a Simone Martini. Gordon aventou a hipótese de que o artista seria outro. Esperava polidez no debate e recebeu “insultos, censura, falsificações, todas dirigidas para silenciar a nova hipótese indesejada”. Evidente: a atribuição a Martini alimenta o turismo com os cartazes, pratos, cinzeiros, azulejos de banheiro, garrafas de vinho. Esse plano lucrativo une-se ao mercado dos cargos em museus, revistas acadêmicas, fundações. Daí o ódio trazido pela hipótese de Gordon. Na pesquisa científica e humanística as coisas também se passam deste modo: hipóteses novas são duramente recebidas e, não raro, silenciadas.