2. A crise de 2008 serviu-lhe como um duro teste, quando ficou comprovada a sua solidez. Do êxito da sua estratégia de defesa face à crise, resultaram tanto a sua consolidação no plano interno quanto oportunidades para se projetar no mundo exterior. O capitalismo brasileiro vive uma circunstância que o conduz a um desbordamento para além dos limites nacionais. Mais do que burguesa, essa já é uma ordem grão-burguesa, não apenas escorada pela força expansiva do seu mercado, mas, a essa altura, também levada à frente por uma estratégia de Estado consciente dos seus objetivos econômicos e políticos de maximização de poder, em estreita articulação com o grande empresariado.
3. Essa projeção do Brasil vem sendo compreendida de modo benfazejo pelos principais protagonistas na cena internacional, que a tem favorecido, não só pela natureza emergente da sua economia, como também por sua história de paz com seus vizinhos e sua cultura de boa convivência entre religiões e etnias diversas.
4. Não se pode, entretanto, ignorar que a crescente mobilização de recursos e fins da política para a condução da economia já indicam uma via de capitalismo politicamente orientado, velha conhecida da tradição republicana brasileira, a partir da qual, em conjunturas diversas — a de Vargas, a de JK, e a do regime militar — realizou-se o processo de modernização do país.
5. Se já havia elementos embrionários desse processo, aparentes em particular no segundo mandato do governo Lula, a crise, que denunciou a incapacidade do mercado de se autorregular, ao trazer de volta o tema do Estado e do seu papel como agência organizadora da economia, atualizou, imprevistamente, o repertório da tradição republicana brasileira. Assim com a ênfase que passa a ser concedida à questão nacional (desacompanhada da cláusula do popular, que importava uma luta pela hegemonia entre a fração da burguesia nacional e o movimento operário e sindical, que, na conjuntura da época, intensificava uma postura de autonomia diante do sindicalismo atrelado ao Estado); com os patéticos postulados de grandeza nacional que já se fazem ouvir; com o desenvolvimentismo, quando políticas estratégicas são conduzidas pelo Estado sem anuência explícita da sociedade civil e suas instâncias de deliberação. A mobilização de tal repertório tem ignorado a crítica que lhe foi feita pelos movimentos democráticos e populares, no curso de suas lutas contra o regime autoritário, consagrada institucionalmente na Carta de 1988, que, ao preservar a instância do público como dimensão estratégica, submeteu-a ao controle democrático da sociedade.
6. A apropriação repentina desse repertório pela esquerda que se encontra na chefia do governo, que, antes, com a teoria do populismo e com a denúncia da natureza patrimonial do Estado, foi uma das suas principais críticas — de acordo com a interpretação dos mais eminentes intelectuais que tiveram influência na formação do PT, o nacional-desenvolvimentismo teria sido uma típica floração autoritária da ordem patrimonial brasileira — parece significar, por ora, mais uma mudança provocada por motivos contingentes do que fundamentada em razões programáticas. Contudo, devem-se ter presentes os riscos de que tais práticas alcancem o enunciado de um discurso coerente.
7. A tradição da esquerda de pensar o todo pela perspectiva das partes é abandonada. É o todo, detentor das razões do bem comum, que, por meio de uma intelligentsia iluminada, constituída principalmente por economistas, deve cuidar da articulação dos diferentes interesses das partes, processando-os no interior do Estado. Daí tem derivado a percepção da sociedade como uma comunidade fraterna; o Estado pluriclassista não se apresenta como intérprete de qualquer classe em particular, mas como um intérprete de todos, ponderando-os segundo os cálculos racionais que responderiam aos objetivos do desenvolvimento.
8. Têm-se, mais uma vez, uma modernização a partir do alto, que abriga no seu núcleo diretivo as principais representações das frações burguesas do país, e que procura justificar suas ações em nome de uma imaginada comunidade fraterna. Dessa modernização não deve provir o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social, e sim heteronomia.
9. Mais que mudanças tópicas ou de ênfase, é toda uma forma de Estado que ressurge, em particular no novo papel concedido às corporações e à representação funcional, evidente nas funções delegadas ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O Estado se amplia com a incorporação de representantes das entidades classistas de empresários e de trabalhadores, e são guindadas à condução de ministérios estratégicos as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira — a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive estes culaques à brasileira, que começaram a sua história na pequena e média propriedade — lado a lado com as centrais sindicais e com os representantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).
10. A política é capturada pelo Estado; de outra parte, o presidencialismo de coalizão em vigência converte os partidos políticos em partidos de Estado e sem representação significativa na sociedade civil. Tal configuração veio a ser reforçada pela crise de 2008, levando a uma revalorização acrítica do Estado Novo e até mesmo de governos do regime militar.
12. Exemplo, entre tantos, da avocação do repertório da tradição republicana: a contribuição sindical. Com a incorporação das centrais sindicais à estrutura jurídica, elas foram credenciadas a terem direito sobre a contribuição arrecadada de toda a massa da população trabalhadora, independente de filiação sindical; dotadas de recursos próprios, as burocracias das centrais sindicais tendem a gozar de autonomia frente a seus filiados; tendência à verticalização e ao domínio das bases pela cúpulas.
13. Por toda parte: centralização, verticalização. Pré-sal, Petrobras, o sistema financeiro estatal brasileiro, a Vale, grandes empreiteiras da construção civil, complexo industrial-militar, cooptação da intelligentsia, dos sindicatos e movimentos sociais. Não é um bom presságio para a democracia brasileira se apresentar sob a retórica de significar uma comunidade fraterna quando se encontra envolvida em uma política de vocação grã-burguesa. Como também não é o fato da sociedade, em sua diversidade, se deixar subsumir ao Estado, conferindo à liderança de um chefe de governo carismático a tarefa de cimentar a unidade dos seus contrários. Estamos conscientes dos riscos aí envolvidos? A pergunta deve incluir como destinatários os principais atores políticos que estão a dirigir esse processo.
14. É falso e anacrônico conceber a próxima sucessão eleitoral como a reedição dos embates entre a UDN e o PTB. Estado forte, sim, mas sob controle da sociedade, e não sobreposto assimetricamente a ela.
(Rio, 30 de outubro de 2009)
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Luiz Werneck Vianna é professor do Iuperj e autor, entre outros, de Esquerda brasileira e tradição republicana (Revan).
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Do mesmo autor, ver também:
A história absolvida
Pacto social e generalização da representação
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O PT é quase um partido liberal
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O inferno e as boas intenções
Ziguezagues, linhas retas e voltas redondas
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