quarta-feira, 18 de julho de 2012

Entrevista sobre segurança pública concedida (com outros colegas) ao Jornal da Unicamp, em 26/março/2007 (p. 5 e 6). Tudo continua como antes, no Quartel de Abrantes...


JU - Fala-se que a violência gerou estados estados dentro do Estado, com leis
próprias e uma dissociação crescenteda sociedade civil. Até que ponto essa
situação afeta o conceito de nação e de identidade nacional?

Roberto Romano – Se o Estado tem pelo menos três monopólios públicos, é para impor a soberania a todos os cidadãos. Como os fazendeiros desafiam a soberania – alguém tem notícia dos que mandaram matar os fiscais do trabalho em Unaí? –, o mesmo fazem poderosos em termos econômicos, que sequer acertam suas obrigações com o fisco etc. Existem verdadeiros exércitos de segurança privada, pagos pela classe média e rica, em detrimento da polícia oficial. E muitos policiais fazem o “bico” naqueles contingentes, porque os salários pagos na sua corporação atingem o nível da miséria. Tudo ocorre com as vistas grossas, cúmplices, dos políticos. Se a soberania é “relativizada” pelos que mandam no dinheiro e no poder, não surpreende que ela também o seja pelos pobres reunidos em quadrilhas – que, não raro, servem a interesses de muita gente fina que desfila nas colunas sociais. Se políticos responsáveis por cidades e Estados brincam com bicheiros e narcotraficantes no Carnaval, em palanques pagos pelos contraventores, como falar em respeito à soberania do governo? Visto que o Estado, segundo Max Weber, é “uma organização que reivindica com sucesso um direito de fazer a lei num território, por força do controle do monopólio do uso da violência física legítima”, ele deve responder pelas situações em que a violência ilegítima se apresenta. Além do monopólio referido, o Estado possui pelo menos dois outros: o da norma jurídica e o que permite extrair impostos. Se os dirigentes, nas três faces estatais, não debelam o crime, não punem com eficácia, não usam bem os impostos, eles devem responder por isso.

Mas, no Brasil, os timoneiros do Estado raramente são responsabilizados, apesar do que diz a Constituição. O corporativismo do Legislativo absolve os legisladores improbos e indecorosos, falta eficácia no Judiciário e surgem os sinais precursores de venalidade praticada por alguns juízes, e o Executivo optou pelas finanças em detrimento das políticas públicas. Em troca, a propaganda exige medidas draconianas contra “os bandidos”, “os monstros”. Quem adere a tais slogans esquece sua própria natureza humana, misto de ferocidade, desejo e força. A propaganda vende a mentira de que existe um lado só, onde se reúnem cidadãos honestos e, de outro, apenas feras. No setor “honesto”, no entanto, muitos crimes são praticados. Notar este fato, prudencialmente, evitaria o privilégio, a impunidade, apanágio de poderosos e ricos, sobre os quais o holofote da mídia permanece tempo mínimo, se comparado ao gasto na exposição de transgressores pobres. Um jornalista importante mata sua namorada em plena luz do dia. A imprensa traz a noticia e depois cai o silêncio. O criminoso confesso é condenado e não é preso. Não se nota o escarcéu produzido quando alguém, desimportante para as colunas sociaise políticas, comete um assassinato.

JU – Há também quem coloque a violência brasileira no patamar de uma guerra civil, com a agravante de que os motivos não são ideológicos ou étnicos e os alvos são arbitrários. O que o sr. pensa disso?
Roberto Romano : Existe uma guerra,guerra, antiga e trazida pelos colonizadores que exterminaram índios; antiga e violenta como a escravização dos negros; velha como o uso dos jagunços para intimidar e matar quem se levantasse contra os coronéis e fazendeiros etc. Como anda o processo da freira Dorothy Stang, uma entre milhares de pessoas assassinadas por encomenda de fazendeiros? Civil? Não sei. Mas insisto: os dados sobre a mortandade que resulta de assaltos, seqüestros, comércio de drogas, devem ser analisados em sincronia com os que indicam outras violências. Mata- se mais no trânsito brasileiro do que em muitas guerras. Todos conhecemos gente que fala de boca cheia contra os bandidos, mas desobedece o sinal vermelho, atropela e mata com frieza. E nunca vai para a cadeia. Falar em violência sem tocar nestes pontos é exercício inane ou técnica de pescar em águas turvas. O foro privilegiado é prova cabal de uso das prerrogativas políticas como passaporte para delinqüir. Deste modo, os projetos oriundos da pura demagogia são negados pela prática costumeira da impunidade, no próprio âmbito do Congresso Nacional.
(...)
JU – Além da ausência de propostas concretas – normalmente restritas aos períodos eleitorais, com suas pirotecnias imagéticas e acessos verborrágicos –, as esferas municipal, estadual e federal jogam uma sobre as outras o ônus da ineficiência. Que análise o senhor faz dessa prática?
 
Roberto Romano – É o fruto da centralização política. No Brasil, isto corrompe a teoria e a prática federativas. Como tudo é acaparado pelo poder central e, dentro dele, pelo Executivo, os Estados e municípios não têm autonomia para empreender políticas públicas próprias à sua realidade. Na segurança, a federação norteamericana admite margens de autonomia insuspeitadas entre nós. O prefeito tem a polícia sob seu comando, com normas próprias, sem depender para tudo de Washington. Aqui, o alfa e o ômega residem no Palácio do Planalto. Em situações de crise, como a do PCC em São Paulo, mostra-se a fraqueza jurídica e policial da centralização excessiva.
 
Os demagogos, na falta de autonomia dos poderes municipais e estaduais, em suas falas nos legislativos, separam indivíduos e grupos e os expõem à execração, sem observar leis, direitos etc. Eles falam em “monstros” da Febem, mas calam sobre as condições em que o Estado submete os menores, nada enunciam sobre pesquisas que mostram os abusos contra mulheres, meninos a meninas no “santuário” do lar, silenciam sobre a falência dos sistemas educacionais, calam sobre as moradias onde se amontoam seres humanos como se fossem lixo, ignoram as condições de transporte coletivos e, sobretudo, escondem a ação truculenta de grupos corruptos e selvagens das polícias.
 
De vez em quando, como no caso da Favela Naval, por obra de amadores, o espetáculo da violência cometida oficialmente vem aos olhos do público. Demagogos da mídia usam aquelas imagens por um dia para melhorar o Ibope. Depois as jogam no arquivo. Todos clamam por leis severas contra os criminosos. Poucos recordam que a própria lei, como diz Diógenes o filósofo, é uma teia de aranha que prende os fracos, mas não segura os fortes e poderosos.