Metamorfoses da infâmia
14 de julho de 2012 | 3h 06
O Estado de S.Paulo
Roberto Romano
Tempos atrás, na política internacional surgiu o apelido
virulento de rogue State para indicar os países que apoiam ou alimentam
o terrorismo, o narcotráfico, a corrupção sistêmica. A fórmula foi
ampliada por Jacques Derrida, que a traduziu como État voyou". O termo
francês voyou significa "pessoa de péssimo costume, bandido", ou
"crápula". Derrida, para explicar o conceito, usa o seu oposto, a noção
de respeito aplicada ao trato pessoal ou coletivo, nacional ou
cosmopolita. Com semelhante divisão, ele estuda as noções e práticas de
soberania legítima que prenunciam o advento de uma democracia universal.
Estados ditatoriais baseiam-se, em grande maioria, no reinado da
crápula. Não apenas os líderes agem contra a lei naquelas quadrilhas
erigidas em governos (cito Santo Agostinho, prudente conhecedor do
gênero humano). As massas, em tais regimes, são convocadas para destruir
os últimos signos de direito individual ou público. A legislação
totalitária brota das sarjetas e a elas retorna, inunda tudo e todos com
lama, sangue, lágrimas dos vencidos. Assim foi o período ditatorial que
dominou o século 20, na esquerda ou na direita. O mesmo ocorreu nas
formas civis e militares do autoritarismo que desgraçou países inteiros
por longos anos, inclusive na América do Sul.
Marca da ideologia totalitária, o antissemitismo surgiu na Alemanha
nazista, na Itália fascista, na URSS de Stalin e em países que o
seguiam. Sobre o banditismo nazista acaba de ser publicado no Brasil o
ensaio de Saul Friedländer A Alemanha nazista e os Judeus - os Anos da
Perseguição, 1933-1939 (Ed. Perspectiva). Ali é mostrado o equívoco dos
bem-intencionados e a má-fé dos que aderiram aos métodos hitleristas.
Quanto ao antissemitismo de esquerda, a literatura é enorme, sobretudo
após o fim da URSS, com a abertura de arquivos antes lacrados. Dentre os
escritos que trazem documentos e análises rigorosas, menciono o de
Arkadi Vaksberg, Stalin e os Judeus, o Antissemitismo Russo: uma
Continuidade do Czarismo ao Comunismo (Paris, Laffont, 2003). Já a
repulsa dos comunistas à palavra cosmopolitismo vem de duas origens: a
redução dos alvos internacionalistas dos soviéticos ao "socialismo em um
só país" e a calúnia segundo a qual os judeus não se prendem a nenhuma
pátria porque desejam (segundo os forjados, para a polícia secreta de
Nicolau II, Protocolos dos Sábios de Sião) dominar o mundo inteiro pelas
finanças, pelas armas e pelo comércio. O antissemitismo soviético é
metamorfose do seu congênere czarista.
Stalin apoiou a criação do Estado de Israel, chegou a autorizar que
milhares de militares judeus soviéticos ajudassem nas lutas contra os
países árabes, em maio de 1948. A URSS queria controlar e dispor do
Oriente Médio contra ingleses e norte-americanos (cf. Rucker, Laurent,
Stalin, Israel e os Judeus, PUF, 2001). Ao perceber que Israel não
serviria aos seus alvos, o Kremlin abandonou o apoio. No mesmo tempo foi
cunhada a palavra de ordem sobre o "antissionismo". Em 1949 começou na
URSS a campanha contra os judeus, na qual se notabilizaram os insultos
dirigidos aos cidadãos israelenses ("nacionalistas sionistas"). Unidos
aos seus parentes que ainda moravam na Rússia (os "cosmopolitas
apátridas"), os judeus planejariam a queda do socialismo no mundo.
Naquele instante foi dissolvido na URSS, por ordem de Stalin, o Comitê
Judeu Antifascista. A campanha antijudaica espraiou-se na base da
sociedade russa e no Kremlin. Vem daí o chamado "complô das blusas
brancas". Os próprios médicos de Stalin, de origem judaica, planejariam
sua morte. Em 1952 diz o próprio Stalin: "Todo sionista é agente do
serviço de inteligência americano. Os nacionalistas judeus pensam que
sua nação foi salva pelos Estados Unidos, onde eles podem tornar-se
ricos, burgueses. Eles pensam ter uma dívida para com os americanos.
Entre meus médicos muitos são sionistas". Sionismo, em sentido
pejorativo e ideológico, tem sua origem nos porões do Agitprop e nos
embates da polícia política de um regime bandido. Mas assistimos hoje a
outra metamorfose da propaganda antissemita, sob a máscara do
antissionismo.
Não é novo o discurso pronunciado na ONU pelo vice-presidente do Irã,
Reza Rahimi, no qual se adianta com irresponsabilidade fanática: "A
proliferação das drogas no mundo emana do Talmude". O mesmo Talmude,
assim fala a calúnia delirante, "ensina que é lícito enriquecer por
meios legais ou ilegais, o que dá direito aos judeus de destruir a
humanidade". A fala do líder iraniano foi nutrida pelas ideologias
assassinas, o império da sarjeta na Europa.
Recordemos que também o Brasil ditatorial se alimentou de
antissemitismo (basta recordar os livros de Maria Luiza Tucci Carneiro
sobre a era Vargas). Lembremos que setores católicos foram antissemitas:
"Já se havia dito que o êxodo dos judeus em massa, da Alemanha,
obedecia a um plano político organizado contra o Partido de Hitler.
(...) Malogrados, porém, esses propósitos, graças ao patriotismo do povo
alemão, os judeus vão desistindo da sua conjura, e retornam às antigas
atividades que exerciam, submissos às leis do país" (A Ordem, 47, 1934,
cf. Cândido Moreira Rodrigues, A Ordem - uma revista de intelectuais
católicos, 2005). A Igreja hoje se afasta do antissemitismo na maior
parte de seus fiéis ou hierarcas.
O mesmo não ocorreu em agremiações de esquerda, que ainda seguem
palavras de ordem stalinistas em terras brasileiras. Não surpreende que
ideólogos comunistas apoiem o extermínio dos judeus e do Estado de
Israel. Espanta que políticos e líderes, judeus e brasileiros, supostos
democratas, convivam fraternalmente numa "base aliada" de governo que
tolera discursos e práticas nefandos, como a do vice-presidente do Irã.
De fato, não podemos aquilatar até onde vai a metamorfose da infâmia.