quarta-feira, 18 de julho de 2012

Excepcional edicão sobre Grassman. A Assessoria de Imprensa da Unicamp está de parabéns!

 

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 02 de julho de 2012 a 29 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 532





















capa da edição



Campinas, 02 de julho de 2012 a 29 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 532

Marcello Grassmann

A arte
do arrependimento



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Marcello Grassmann, 87 anos, é tido por muitos críticos como o maior gravurista brasileiro. Suas obras estão em acervos dos melhores museus do mundo. Gravuras do artista integrarão a exposição O Colecionador, que vai de 3 a 31 de julho na Galeria da Unicamp. Nestes excertos do depoimento de cinco horas concedido por Grassmann ao Jornal da Unicamp, ele fala sobre sua trajetória, revela suas influências e analisa o panorama da arte contemporânea.

A palavra gravura
Saí aos 7 anos de idade de São Simão [interior de SP] e fui, com a família, para São Paulo. Gostava de gravura desde criança. Era uma coisa até surpreendente. Se não me engano, uma editora americana vendia pequenas bibliotecas já montadas, com estantes e tudo. E, entre as coleções, havia a do Tesouro da Juventude. Por meio dela, conhecíamos os personagens da história e as ilustrações do [Gustave] Doré [1832-1883]. O que me fascinava, e a curiosidade era muito grande, é que sempre se referiam aos desenhos, às reproduções, como “gravuras’’ de Gustave Doré. A palavra gravura sempre me deixava inquieto.
A imagem
Sempre desenhei muito. Na escola, por exemplo, havia uma pequena biblioteca com muitos livros ilustrados. Foi um período áureo da história em quadrinhos – havia, pelo menos, dez grandes artistas que se dedicavam ao desenho. Tínhamos contato, por exemplo, com ilustrações do Alex Raymond [1909-1956], autor de Flash Gordon, e Harold Foster [1892-1982], desenhista do Príncipe Valente. Ingressei na adolescência lendo HQs, mas interessando-me mais pelas ilustrações do que pelos textos. Essa minha fixação pelo desenho é inata. A imagem, para mim, sempre foi fundamental.
Depuração
Quando comecei a ler obras mais herméticas, como a de Edgar Allan Poe [1809-1849], passei a ter contato com outros tipos de ilustrações, com aspectos que me diziam mais respeito. Havia, nesses desenhos, tentativas de mostrar o clima da história, numa linguagem que depois viria a ser incorporada pelo cinema – sempre gostei de filmes noir, por exemplo. Todas essas coisas foram se juntando e formando minhas influências.
De fato, sempre tive uma intuição gráfica muito forte. Percebia isto pelas escolhas que fazia acerca das obras e dos artistas com os quais tinha ou não afinidade.  Fazia uma triagem do que me interessaria no futuro. Encontraria isso depois nas artes ditas maiores, de museus. Este processo começou lá atrás com o próprio Tesouro da Juventude, que já reproduzia quadros famosos de artistas importantes. Meu olhar já estava iniciado. Havia, automaticamente, um exercício de depuração.
Carrancas
Estudei no Instituto Profissional Masculino [entre 1939 e 1942]. Era uma coisa interessante, porque você aprendia muitas coisas que poderiam defini-lo como marceneiro, escultor, serralheiro ou entalhador. Todas as matérias eram fascinantes. Foi preciso, porém, de uma certa maneira, que todo o aprendizado fosse desmanchado para eu poder achar um caminho. É verdade que sempre temos umas escapatórias inconscientes. A presença “animalesca”, por exemplo, é muito frequente porque sempre achei interessante o caminho das coisas demoníacas – aquilo que os italianos chamam de mascherone [máscaras], as carrancas. Havia uma razão de ser para tudo isso– estava ligado ao fato de poder fugir da simples decoração e do aspecto ornamental e procurar algo com outro sentido.
Para isso, até por intuição, você ignora suas habilidades para trilhar um caminho que julga mais certo. Não é uma escolha, é quase uma fatalidade. São muitos os artistas que elegeram o lado soturno da vida.
Contra o óbvio
É preciso, às vezes, contrariar o processo aprendido, porque ele vai levá-lo, fatalmente, a uma coisa que não é sua. Trata-se de um processo mecânico. Eu queria fazer uma escultura, mas aquela que não havia na escola. Lá, o lado profissional se sobrepunha ao artístico. Era uma limitação que dobrava a minha intenção inicial de fazer um trabalho livre. Para poder me libertar desses cacoetes e tentar um novo ângulo para essas coisas, tive que me violentar, ingressando em um processo mais brutal, menos acabado.
Não estava interessado em tentar fazer algo que fosse aprovado pelos meus colegas, professores ou quem quer que fosse. A grande batalha é lutar contra o aplauso fácil, contra o óbvio, contra a zona de conforto. É preciso achar um caminho próprio. O fato de ter certas habilidades é contraproducente quando há um mundo que contraria tudo isso.
O entalhador
Tentei ser entalhador quando saí do instituto, mas o mercado mostrou que isto não seria possível. Todos os meus conhecimentos eram frutos de um aprendizado não profissional. Na época, o mobiliário já era todo trabalhado e o entalhador dava apenas o toque final. Até tentei fazer os móveis, mas não conseguia. Era até respeitado o fato de eu ter aprendido a fazer a coisa com uma certa nobreza, mas não dava certo porque não coincidia com a visão do mercado.
Fachadas e cemitérios
Houve um tempo em São Paulo em que as fachadas das casas tinham máscaras, ornatos, etc. Tratava-se de uma característica muito peculiar – a de dar um certo ar de nobreza à arquitetura importada da Itália. E, na época, vieram muitos artistas para fazer decoração de paredes. Na Avenida Paulista, por exemplo, havia tudo isso. Pode-se até argumentar que este era o gosto da burguesia, mas isso não importa. Havia, de fato, uma participação artística. Bastava ir ao cemitério para ver obras de [Victor] Brecheret [1894-1955] e de outros escultores.
Facetas do aprendizado
O que se oculta por trás desse aprendizado é uma inclinação, óbvia, por coisas que me tocaram profundamente e que têm uma identificação com o que eu faço, apesar de não ter outra opção. Somos um pouco daquilo do que lemos, daquilo de que gostamos ou de coisas que nos emocionam. Tive a felicidade de conhecer quase todos os malditos da literatura, da música, das artes plásticas, dos bons aos ruins. E, curiosamente, a gente se inclina por alguma coisa misteriosa, seja mórbida ou não, irônica ou não. Somos capazes de tudo, de fazer coisas amargas, singelas, simplesmente grosseiras ou, às vezes, caricatas. Meu mundo é constituído de um monte de informações.
Beco sem saída
A vantagem de ser um analfabeto, e falo assim porque não tive educação superior, é que vi tudo o que me interessou. E de fato existe, nesse percurso, uma guinada frequente para o lado fantástico, fabuloso, erótico. Essa mistura nas informações e na cabeça é proveniente dos autores que li ou que ouvi. As coisas desse mundo eram tão recorrentes, que eu dizia: “estou num beco sem saída”. A gente é o que é. Não adianta você se propor a mudar ou tentar uma coisa que fuja disso.
No inferno
De onde vêm as coisas da imaginação? Bom, desde criança, muitas coisas me fascinavam, entre as quais toda a mitologia, carregada de imagens inéditas, sobretudo aquelas vinculadas ao cotidiano. Interessava-me muito mais, por exemplo, apreciar uma obra desesperada de Michelangelo [1475-1564] fazendo a parte do inferno na Capela Sistina – e, raríssimas vezes, é divulgado esse seu lado, que sempre foi relegado. Sentia mais prazer por essa faceta do que, digamos, pelos aspectos divinos, pelos quais as pessoas ficam em êxtase. O mesmo senti ao conhecer as gravuras de Doré em Inferno [primeira parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri].

O trio, Milliet e Mário
Luiz Sacilotto [1924-2003], Octávio Araújo e eu tivemos o mesmo destino. Sacilotto foi trabalhar em escritório de arquitetura, o que teve peso na sua opção pelo concretismo. Nossa formação foi muito parecida. Víamos os mesmos filmes, líamos os mesmos livros, frequentávamos a Biblioteca Mário de Andrade. E, nesse ambiente, Sérgio Milliet [1898-1966] foi uma figura muito importante, pois ele apoiava muito os jovens. Submetíamos nossos trabalhos à sua apreciação. Ele chegou a escrever um artigo numa revista no qual falava sobre as nossas obras. O texto era ilustrado com desenhos feitos por mim, pelo Octávio e pelo Sacilotto. Nós fomos categorizados por ele como artistas proletários.
Outra pessoa importante foi Mário de Andrade [1893-1945]. Ele teve, para nós, a mesma função educativa. À época, na década de 1940, estávamos entrando nos 20 anos de idade com as influências consolidadas. Em princípio, a escola francesa, com Picasso, Matisse, etc., foi a base da nossa cultura artística. Mas como na biblioteca [Mário de Andrade] havia muitos livros da escola alemã, sobretudo acerca do expressionismo, ela acabou nos impressionando – e influenciando – mais do que a escola francesa.
No jornal
Em 1949, quando nós fizemos uma coletiva, a “Exposição dos 19”, que reunia artistas mais ou menos inéditos de São Paulo, houve um fato pitoresco. O Geraldo Ferraz [1905-1979] escreveu uma crítica a nosso respeito, quando a exposição foi para o Rio, falando que estávamos muito influenciados pelo expressionismo alemão. Ele usou uma expressão que nos deixou revoltados: “a bola já vem alta demais, o tempo do expressionismo já passou’’.
Mas foi muito interessante, porque, dois anos depois, eu conheci o Geraldo Ferraz. Ele escrevia sobre arte, e fez um artigo no qual se retratava, de uma certa maneira, por causa de um episódio: houve um concurso em que o júri deu um prêmio para o Cláudio Abramo [1923-1987], que era jornalista, mas gostava de pintar – fazia uns desenhos bons, livres, e colocava muitos títulos em francês. Geraldo Ferraz nos defendeu, porque não ganhamos nada.
Passamos, a partir daí, a nos encontrar. Ele dirigia um suplemento literário, no qual publicava trechos de obras de escritores para divulgação. Ele então me convidou para fazer ilustrações. Comecei a trabalhar para os Diários Associados, passando a ter contato com tudo que eu não conhecia em literatura. Ele e a Patrícia Galvão, a Pagu [1910-1962], faziam as traduções dos textos. Não raro eu fazia as ilustrações na casa deles. Fiquei ilustrando o suplemento literário por uns três, quatro anos.
No Rio
Nessa ocasião, eu arranjei uma namorada que morava no Rio e o próprio Geraldo me indicou para trabalhar em um jornal, também dos Diários Associados, no Rio. Acho que o diretor era o Samuel Wainer. Mas eu estava mais interessado em aprender gravura em metal, no Liceu de Artes e Ofícios, onde tive aulas com o filho do Carlos Oswald [Henrique Oswald- 1918-1965], que era o pai da gravura em metal no Brasil. Fiz uma série de álbuns de xilogravura, uns oito ou dez, que eu mesmo encapava e vendia para sobreviver. Essa série rendeu uma exposição no Rio, para onde me mudei em 1949.
Goeldi
[Oswaldo] Goeldi [1895-1961] foi fundamental para mim. Eu acompanhava as ilustrações que ele fazia para obras de Dostoievski e outros autores, que saíam em um jornal carioca chamado Amanhã. Eu já tinha admiração por ele, até por sua filiação ao expressionismo, e quando eu fiz a exposição no Rio de Janeiro, ele entrou no recinto e ficou olhando, olhando... Vi que era o Goeldi, conversei com ele e nos tornamos amigos. Tínhamos muitas afinidades. Ele gostava de conversar comigo. Ninguém no Rio, por exemplo, sabia quem era Alfred Kubin [1877-1959], com quem ele se correspondia. Tanto que ele me deu uma carta de apresentação dele, quando eu fui para a Europa em 1954, como prêmio que ganhei no Salão Nacional de Arte Moderna. Escolhi Viena porque minha namorada era austríaca. Eu a conheci em 1951 em Salvador, onde passei três meses, no atelier de Mario Cravo Junior [1923 - 2009], de quem fiquei amigo depois da I Bienal de São Paulo [1951], na qual ele foi premiado. Em Viena, estudei na Academia de Artes Aplicadas e tornei-me amigo de Kubin. Cheguei, por acaso, a dividir uma exposição com Max Ernst [1891-1976]. Na Europa, cheguei a expor em dez lugares, simultaneamente. Éramos carregados para aonde houvesse uma galeria.
Quase infinito
Na gravura, quando se pensa que tem um projeto, começam a surgir novas soluções, por meios das quais você é induzido pela técnica. Você diz: poxa, isso aqui ficou bom porque eu vou deixar isso claro ou vou abrir... Surge, aí, o arrependimento. Gravura é a arte do arrependimento. Ela permite tal grau de reelaboração que suas possibilidades são quase infinitas. Rembrandt [1606-1669] fez umas cinco versões para A Descida da Cruz, uma mais genial que a outra. Entretanto, elas são absolutamente diversas. No desenho, você pode fazer várias tentativas em cima da mesma ideia; em cada uma, encontra-se uma solução diferente. 
Água com açúcar
Sou habilidoso, infelizmente. O tempo todo me canso da minha habilidade. Ela ajuda, mas não muito. Você pode incorrer no erro de cair no bom gosto. O tema já é o primeiro confronto com o senso comum – você bate de frente com a expectativa das pessoas ou, em última instância, com aquilo que elas esperam. Corremos o risco de chutar a bola fora do gol logo de cara. A graça está em descobrir que a ideia inicial pode ser mudada até o ponto de torná-la irreconhecível. É melhor assim: essa mesma ideia poderia muito bem ser água com açúcar.

Metamorfoses
Uma série de minha autoria, Morte da Donzela, fez sucesso. As pessoas ainda a procuram. Mas, hoje, jamais faria esses desenhos. E não faz mais de 15 anos que os produzi. Por outro lado, há coisas do passado mais remoto das quais jamais me desfiz e ainda têm a ver com a minha produção, entre as quais as deformações. Quanto mais você insistir, achará soluções diferentes. Vi isto em alguns escritores, como um tcheco – cujo nome me foge – que aproveitava apenas 10% do que escrevia. [Franz] Kafka [1883-1924] fez a mesma coisa. Começava uma história sem saber aonde ela ia parar; abruptamente, mudava tudo. Esse é o prazer de fazer as coisas. Não tem sentido fazê-las sempre da mesma maneira.
Ao largo das escolas
O fato de eu ter passado incólume às diferentes escolas do século XX pode ser positivo ou negativo. Essa fidelidade’ pode ser, também, uma forma de mediocridade... O experimental, para mim, nunca foi um desafio. O mais difícil, como já disse, é aperfeiçoar uma ideia. Trata-se de um exercício de criatividade, mais do que simplesmente inventar novas saídas gráficas, como o pessoal tem feito. Toda a arte atual está ancorada em uma criatividade comercial. E aqui não estou fazendo juízo de valor. A arte contemporânea está muito ligada à publicidade, em como convencer as pessoas de alguma coisa – seja gostar, avaliar, pensar, repensar. Eles dizem que se você tiver uma boa ideia é uma maneira de fugir do óbvio. Mas uma ideia está longe de ser uma panaceia, ela não é capaz de fazer por si só uma obra de arte.
O acaso
[Jackson] Pollock [1912-1956] entrou num beco sem saída porque sabia que o acaso tem seus limites. A penicilina foi um acaso único na história... Para produzir um novo remédio, hoje, é necessário fazer uma pesquisa profunda. Ninguém toca violino por acaso. Se não houver uma proposta que te oriente, pode até haver uma surpresa boa, mas isso tem lá seus limites. A pesquisa é interessante, mas o “chute” não leva a nada.
Experimentando
Somos únicos. Porém, ficamos condicionados à situação e à disponibilidade de material. Se houver um arsenal à mão, serão diferentes as soluções encontradas. Pode-se experimentar. Muitas vezes, não dá certo. Às vezes, apenas a mudança de papel já muda seu traço, sua intenção. Algumas obras são mais retrabalhadas, outras são mais espontâneas, outros são mais croquis. Darei um exemplo prosaico: um desenho com papel cortado na posição vertical vai render uma imagem vertical. O mesmo papel, se colocado na horizontal, resultará em outras sugestões. Sua atitude, sua proposta, automaticamente, muda pelo ângulo que é visto a obra. Por que é fácil desenhar com modelo? Porque ele está ali. O grande desafio é o que se cria em cima daquele modelo. As tentativas, obviamente, tomarão características diferentes. Um nu deitado é diferente do nu em pé.
O peso do mercado
A gravura sofreu avaliações equivocadas ao longo do tempo. Quando você se contenta com uma imagem considerada acertada, são feitas várias cópias. Algumas realmente fazem sucesso. Outras, porém, não saem do papel. Nem todas, mesmo as boas, são escolhidas. E o mercado pesa nesse juízo. Qualquer artista faz a mesma besteira que eu fiz durante anos. Eu chegava a pôr na mesa, para escolha, 40 gravuras para o comprador que dizia gostar do meu trabalho. Às vezes, o sujeito chamava a mulher para dar a palavra final. Vinham, aí, as considerações: essa está sinistra, feia, triste. No fim, ninguém comprava nada. Às vezes, é preciso ser mais seletivo, mostrar algo que a pessoa realmente gosta. O comprador também está procurando algo. Não é somente o artista que procura. O admirador também é seletivo e, às vezes, implica com detalhes, ou porque há uma conotação agressiva ou por episódios vivenciados na infância. Não dá para saber o que se passa na cabeça de quem está vendo.
 Minha relação com o mercado hoje é zero. Houve um período que eu era até famoso.... As pessoas já aceitaram muito mais a minha obra. Talvez eu estivesse menos amargo, menos cruel... Ou era uma geração que comprava, mas que hoje já está velha. As novas gerações não têm interesse no meu trabalho.
Arte social
Não gosto de falar da política na arte. Ela foi muito explorada, em seu pior sentido. A tentativa de se fazer arte social no Brasil foi mais desastrosa do que na China e na Rússia. O realismo socialista pendia mais para o jornalístico do que para o político. Há cenas emblemáticas que valem mais do que qualquer discurso demagógico. Um exemplo são as imagens do Vietnã. Elas mostram como o comportamento humano é absurdo, beira a idiotia. O resto é coisa menor, mixuruca.
Na minha juventude, havia – acredite ou não –, no “Partidão” (Partido Comunista), um caderninho de leis que preconizava que seus militantes não podiam conversar com os trotskistas.
Lembro-me, também, de um jornal do Jorge Amado que era patrocinado pelo [Ciccillo] Matarazzo [1898-1977]. Qual era a razão do patrocínio? Naquela época, uma indústria norte-americana, que produzia enlatados, estava tentando se estabelecer no Brasil, constituindo-se em ameaça ao império do Matarazzo, que patrocinava a revista contra, segundo expressões da época, o “imperialismo americano”. Hoje, este episódio pode ser visto como uma piada, mas era uma realidade.
Quando foi proposta a criação da Bienal de São Paulo, na década de 1950, seus organizadores foram acusados de quinta coluna. Setores viam na iniciativa uma tentativa de destruir a cultura brasileira. São coisa absolutamente frágeis como argumentação. Por isso, quando falo em política coloco tudo isso no contexto. A política é mais terrível naquilo que não é tão óbvio. 
Lembro-me também de uma corrente que criticou o fato de os bonecos de barro produzidos no Nordeste passarem a ser feitos com celuloide. Eles falavam como se estivessem destruindo uma cultura maia ou asteca... A coisa chega ser folclórica.
Degradação
Num certo sentido, essa degradação que eu faço, já fiz e acho que vou morrer fazendo, é uma forma de participação política. Não que eu faça as críticas, mas vivi num século louco, louco varrido, de ponta a ponta. Veja no que se transformou o Brasil, que tinha posições duvidosas mas bem-delineadas – já tivemos um operário, o Lula, lutando por outras causas. Hoje em dia, o PT, que foi fundado por pessoas que eu respeito, como Antonio Candido e Sérgio Buarque de Hollanda [1902-1982], com quem aliás tive contato, é um saco de gatos.
Atualmente, todos os acordos são feitos entre todos os partidos políticos, entre todos os bandidos. Ser engajado hoje em dia é um ato de loucura. E não adianta você ter, eventualmente, simpatia por um ou por outro. Porque, em nome dos interesses, eles promovem apoios e alianças tão espúrios quanto os piores que se pode imaginar.
Valores
Nunca tive consciência dos rumos que tomo ou que tomei. Em todo início, aprendemos com uma série de coisas e valores. De repente, descobrimos que esses valores não são você. Começamos a escapar daquele caminho. O que eu gostava em gravura não tinha nada a ver com decoração de móveis, mas, ao mesmo tempo, as reminiscências greco-romanas sempre existiram. Nada é jogado fora. Todos os povos se apropriaram e dão as características que tornam a arte dinâmica e própria de cada país. E não estou falando de características bobas, tais como preservar determinadas características do artesanato local – isto não passa de curiosidade.

‘Minhas obras são meio caóticas’


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(Continuação da página 7)
O livro
[Sobre o livro com desenhos de Grassmann lançado pela Editora da Unicamp em coleção coordenada por Lygia Eluf]. Fico encabulado em falar das coisas feitas sobre a minha obra ou sobre mim – seja livro, crítica, premiação ou debate. Acho que a minha função morre depois de realizada a obra. No mais, fico feliz que as pessoas gostem ou divulguem meus trabalhos. Em meio a tanto caos, aparece uma coisa que pelo menos vai na contramão do que está sendo produzido. Na verdade, sinto um certo prazer em saber que eu não estou completamente esquecido...
Quando sai um livro como este, me tranquiliza o fato de não haver intenção de desperdiçar o tempo com análises, interpretações históricas. O que eu acho importante nas tentativas é o prazer de criar – este verbo é muito amplo. E a preocupação do artista hoje em dia é fazer, mais propriamente do que criar, que é um fenômeno que ocorre se houver algum talento por trás. Não deve haver a pretensão de ter a marca “minha obra’’. Tanto que eu evito, ao máximo, colocar muitos textos em minhas imagens. Se elas não disserem o que eu pretendia dizer, não é um título que vai esclarecer ou induzir as pessoas a sentirem a mesma coisa, a participarem do trabalho, a entenderem. Mesmo que entender não signifique gostar, participar; é possível entender sem gostar, divergindo. Portanto, acredito que deixar em aberto é melhor do que tentar esclarecer, como se fosse um quebra-cabeça no qual as coisas vão se encaixando. Minhas obras não se encaixam, são meio caóticas. Até diria que caem do nada, do céu – ou do inferno... Não existe um projeto, embora eu não despreze a minha formação – em certo sentido, ela é muito mais importante do que a minha realização.
Sem futuro
O entusiasmo acerca de um trabalho pode resultar em autocensura. Vou botar um caco na conversa. Há alguns anos, um artista amigo insistia muito em debater o meu trabalho, meu sucesso – ou meu insucesso. Quis mostrar a ele que não estava muito preocupado com isso. Disse uma frase absolutamente grosseira, mas muito sincera: “olha, eu não quero competir com você, quero competir com Rembrandt”. Ele ficou muito chateado. Por isso, acho que aqueles grupinhos que se formam, de identificação mútua, e ao mesmo tempo de autoelogio, são algo que não têm futuro.
Cinema
Vejo hoje que Nosferatu, do [Friedrich Wilhelm] Murnau [1888-1931], me impressiona muito mais profundamente do que todos os recursos do cinema posterior.
Museus x arquitetos
Não posso me furtar em dizer coisas chatas. Acho que os arquitetos nunca tiveram peito para enfrentar o escritório do Oscar Niemeyer. Gostaria muito de ir com ele ao Pavilhão da Bienal. Queria que ele subisse aquela rampa... Os arquitetos projetam museus que não cumprem sua função. Eles são bonitos para olhar – o de Curitiba é um exemplo –, mas não para expor arte. Não há preocupação com o público e as obras de arte.
Muitos arquitetos bolam umas formas, mas não sabem colocar uma janela. E isto, principalmente no caso dos museus, é necessário. Os museus são problemáticos. Eu não vejo esse casamento dando certo. O Louvre pode até ser “perdoado”, pois não foi feito para ser museu. Era um palácio. Mas o que é feito para ser museu, e depois passa por adaptações com cubículos para mostrar as obras, atropela todo o espírito da arte. A maneira de ver conta muito na hora da exposição.
Unidade temática
Não dá para inventar muito. A vantagem que eventualmente posso ter sobre certos gravadores é que lancei mão de várias técnicas. Este recurso ampliou não só o aspecto criativo, mas inclusive o próprio alcance da técnica. 
Contato humano
Até os anos 1950, era muito fácil conviver com artistas e intelectuais. Ao longo de minha adolescência e juventude, era mais difícil não conviver. Encontrar com um Flávio de Carvalho [1899-1973] na rua, por exemplo, era fácil, assim como trocarmos impressões sobre nossos trabalhos. Havia uma coisa que se perdeu, que hoje em dia está muito degradada, que é o contato humano. E o artista tem um problema sério: quando você não vai a uma exposição, por quaisquer razões, ele logo lhe cobra por vê-lo em outra mostra. É como se  houvesse a obrigação de ir, de ter uma vida social. A cada contato coletivo, sinto que fiz muito bem em me afastar. Morei durante um tempo em São Lourenço da Serra, onde tinha uma chacrinha. Era um buraco no meio do mato. Eu mesmo fazia tudo: cuidava da parte elétrica, hidráulica...
 Guerra e paz
Todas as exposições hoje se parecem muito. A busca da originalidade deu nisso. Cada um se acha mais original que outro. Essas propostas não me emocionam. São tentativas que caem no vazio porque fica óbvio o tipo de proposta que está sendo levantado, que nada mais é que explorar o aspecto novo de uma coisa bem velha, que é o mundo como ele se apresenta, cheio de contradições. Guerra e destruição, por exemplo, são dois desses filões. Ao longo da história, todas as guerras e batalhas foram registradas; antes, porém, privilegiava-se o heroico – ou o pseudo-heroico. 
Vultos da história
Convivi com gente tão boa, que não teve prestígio nenhum, que se eu falar nomes você vai me perguntar quem são. Num certo sentido, acho que algumas pessoas tiveram uma presença muito forte na arte brasileira. Não vou falar em [Cândido] Portinari [1903-1962], porque todo artista oficial está condenado à morte, porque ele é obrigado a fazer alhos e bugalhos... Na verdade, Portinari e Di Cavalcanti foram eleitos os grandes pintores, ao passo que o Flávio de Carvalho pouca gente conhece. E tem muitos outros. [Aldo] Bonadei [1906-1976] teve um período muito bom. O mesmo aconteceu com [Alfredo] Volpi [1986-1988], até os concretistas dominarem o mercado. Hoje, o mercado está todo contra tudo isso. O mercado, hoje, é qualquer coisa que se queira inventar.
Conheci um Volpi que pintava fachadas de casas. Bonadei costurava. Eu não frequentava o [Grupo] Santa Helena, porque eles eram famosos e eu era moleque. Famosos como grupo, porque nessa época ninguém vendia nada. Para se ter uma noção, você comprava um quadro do [Giorgio] Morandi [1890-1964] pelo preço de um quadro do Di Cavalcanti. E o pessoal trazia para vender aqui porque na Europa não tinha mercado, em razão da guerra.
Borges
Tive um contato com o [Jorge Luis] Borges [1897-1986] no Largo do Arouche, perto do hotel em que ele estava hospedado. Falamos sobre um livro dele que eu ia ilustrar. Ele, já cego, me perguntou como seriam as ilustrações. Ainda indagou: “não é nada de ficção científica, não, né?’’. Falei que não era. Foi feita uma tradução muito boa por um amigo que já morreu, Marcelo Corção, carioca, sobrinho do Gustavo Corção, este tido à época como reacionário – todo mundo enchia saco do Marcelo por causa disso ... Ele fez uma tradução fantástica.
O contato foi intermediado pelo Giuseppe Baccaro, um cara que merecia uma biografia. Ele veio da Itália em 1951 como jornalista, para a primeira Bienal de São Paulo. Instalou-se como marchand e ficou fuçando toda a história da arte brasileira. Ele recuperou tudo da Tarsila do Amaral [1886-1973], do Ismael Nery [1900-1930], de quem chegou a ter 300 trabalhos. Baccaro é o grande responsável por todas essas coisas que estão aí no mercado. Não apenas procurou, como ressuscitou todo mundo. Ele é quem queria imprimir o livro do Borges. Para a empreitada, comprou toda uma coleção de tipos e prensas de uma certa Sociedade do Centro de Geófilos do Rio de Janeiro. Ele queria que as crianças de Olinda trabalhassem como tipógrafos. Deu tudo errado.
Hoje
Estou meio debilitado, minha mão já não é mais a mesma coisa. É preciso me poupar, porque chega uma hora em que fica mais difícil fazer as coisas. A última vez em que desenhei seriamente, empolguei-me e fiquei uma hora e tanto em pé. Ao acabar, minhas pernas pareciam que tinham virado chumbo. Tenho um problema chamado mielomalácia, que vai, aos poucos, amortecendo a parte central dos reflexos que vêm dos pés e vão para a cabeça. Sinto dificuldade em andar, em me equilibrar. Sou meio inválido.