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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 02 de julho de 2012 a 29 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 532Campinas, 02 de julho de 2012 a 29 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 532
Marcello Grassmann
A arte
do arrependimento
Marcello
Grassmann, 87 anos, é tido por muitos críticos como o maior gravurista
brasileiro. Suas obras estão em acervos dos melhores museus do mundo.
Gravuras do artista integrarão a exposição O Colecionador, que vai de 3 a
31 de julho na Galeria da Unicamp. Nestes excertos do depoimento de
cinco horas concedido por Grassmann ao Jornal da Unicamp, ele fala sobre
sua trajetória, revela suas influências e analisa o panorama da arte
contemporânea.
A palavra gravura
Saí
aos 7 anos de idade de São Simão [interior de SP] e fui, com a família,
para São Paulo. Gostava de gravura desde criança. Era uma coisa até
surpreendente. Se não me engano, uma editora americana vendia pequenas
bibliotecas já montadas, com estantes e tudo. E, entre as coleções,
havia a do Tesouro da Juventude. Por meio dela, conhecíamos os
personagens da história e as ilustrações do [Gustave] Doré [1832-1883]. O
que me fascinava, e a curiosidade era muito grande, é que sempre se
referiam aos desenhos, às reproduções, como “gravuras’’ de Gustave Doré.
A palavra gravura sempre me deixava inquieto.
A imagem
Sempre
desenhei muito. Na escola, por exemplo, havia uma pequena biblioteca
com muitos livros ilustrados. Foi um período áureo da história em
quadrinhos – havia, pelo menos, dez grandes artistas que se dedicavam ao
desenho. Tínhamos contato, por exemplo, com ilustrações do Alex Raymond
[1909-1956], autor de Flash Gordon, e Harold Foster [1892-1982],
desenhista do Príncipe Valente. Ingressei na adolescência lendo HQs, mas
interessando-me mais pelas ilustrações do que pelos textos. Essa minha
fixação pelo desenho é inata. A imagem, para mim, sempre foi
fundamental.
Depuração
Quando
comecei a ler obras mais herméticas, como a de Edgar Allan Poe
[1809-1849], passei a ter contato com outros tipos de ilustrações, com
aspectos que me diziam mais respeito. Havia, nesses desenhos, tentativas
de mostrar o clima da história, numa linguagem que depois viria a ser
incorporada pelo cinema – sempre gostei de filmes noir, por exemplo.
Todas essas coisas foram se juntando e formando minhas influências.
De
fato, sempre tive uma intuição gráfica muito forte. Percebia isto pelas
escolhas que fazia acerca das obras e dos artistas com os quais tinha
ou não afinidade. Fazia uma triagem do que me interessaria no futuro.
Encontraria isso depois nas artes ditas maiores, de museus. Este
processo começou lá atrás com o próprio Tesouro da Juventude, que já
reproduzia quadros famosos de artistas importantes. Meu olhar já estava
iniciado. Havia, automaticamente, um exercício de depuração.
Carrancas
Estudei
no Instituto Profissional Masculino [entre 1939 e 1942]. Era uma coisa
interessante, porque você aprendia muitas coisas que poderiam defini-lo
como marceneiro, escultor, serralheiro ou entalhador. Todas as matérias
eram fascinantes. Foi preciso, porém, de uma certa maneira, que todo o
aprendizado fosse desmanchado para eu poder achar um caminho. É verdade
que sempre temos umas escapatórias inconscientes. A presença
“animalesca”, por exemplo, é muito frequente porque sempre achei
interessante o caminho das coisas demoníacas – aquilo que os italianos
chamam de mascherone [máscaras], as carrancas. Havia uma razão de ser
para tudo isso– estava ligado ao fato de poder fugir da simples
decoração e do aspecto ornamental e procurar algo com outro sentido.
Para
isso, até por intuição, você ignora suas habilidades para trilhar um
caminho que julga mais certo. Não é uma escolha, é quase uma fatalidade.
São muitos os artistas que elegeram o lado soturno da vida.
Contra o óbvio
É
preciso, às vezes, contrariar o processo aprendido, porque ele vai
levá-lo, fatalmente, a uma coisa que não é sua. Trata-se de um processo
mecânico. Eu queria fazer uma escultura, mas aquela que não havia na
escola. Lá, o lado profissional se sobrepunha ao artístico. Era uma
limitação que dobrava a minha intenção inicial de fazer um trabalho
livre. Para poder me libertar desses cacoetes e tentar um novo ângulo
para essas coisas, tive que me violentar, ingressando em um processo
mais brutal, menos acabado.
Não
estava interessado em tentar fazer algo que fosse aprovado pelos meus
colegas, professores ou quem quer que fosse. A grande batalha é lutar
contra o aplauso fácil, contra o óbvio, contra a zona de conforto. É
preciso achar um caminho próprio. O fato de ter certas habilidades é
contraproducente quando há um mundo que contraria tudo isso.
O entalhador
Tentei
ser entalhador quando saí do instituto, mas o mercado mostrou que isto
não seria possível. Todos os meus conhecimentos eram frutos de um
aprendizado não profissional. Na época, o mobiliário já era todo
trabalhado e o entalhador dava apenas o toque final. Até tentei fazer os
móveis, mas não conseguia. Era até respeitado o fato de eu ter
aprendido a fazer a coisa com uma certa nobreza, mas não dava certo
porque não coincidia com a visão do mercado.
Fachadas e cemitérios
Houve
um tempo em São Paulo em que as fachadas das casas tinham máscaras,
ornatos, etc. Tratava-se de uma característica muito peculiar – a de dar
um certo ar de nobreza à arquitetura importada da Itália. E, na época,
vieram muitos artistas para fazer decoração de paredes. Na Avenida
Paulista, por exemplo, havia tudo isso. Pode-se até argumentar que este
era o gosto da burguesia, mas isso não importa. Havia, de fato, uma
participação artística. Bastava ir ao cemitério para ver obras de
[Victor] Brecheret [1894-1955] e de outros escultores.
Facetas do aprendizado
O
que se oculta por trás desse aprendizado é uma inclinação, óbvia, por
coisas que me tocaram profundamente e que têm uma identificação com o
que eu faço, apesar de não ter outra opção. Somos um pouco daquilo do
que lemos, daquilo de que gostamos ou de coisas que nos emocionam. Tive a
felicidade de conhecer quase todos os malditos da literatura, da
música, das artes plásticas, dos bons aos ruins. E, curiosamente, a
gente se inclina por alguma coisa misteriosa, seja mórbida ou não,
irônica ou não. Somos capazes de tudo, de fazer coisas amargas,
singelas, simplesmente grosseiras ou, às vezes, caricatas. Meu mundo é
constituído de um monte de informações.
Beco sem saída
A
vantagem de ser um analfabeto, e falo assim porque não tive educação
superior, é que vi tudo o que me interessou. E de fato existe, nesse
percurso, uma guinada frequente para o lado fantástico, fabuloso,
erótico. Essa mistura nas informações e na cabeça é proveniente dos
autores que li ou que ouvi. As coisas desse mundo eram tão recorrentes,
que eu dizia: “estou num beco sem saída”. A gente é o que é. Não adianta
você se propor a mudar ou tentar uma coisa que fuja disso.
No inferno
De
onde vêm as coisas da imaginação? Bom, desde criança, muitas coisas me
fascinavam, entre as quais toda a mitologia, carregada de imagens
inéditas, sobretudo aquelas vinculadas ao cotidiano. Interessava-me
muito mais, por exemplo, apreciar uma obra desesperada de Michelangelo
[1475-1564] fazendo a parte do inferno na Capela Sistina – e, raríssimas
vezes, é divulgado esse seu lado, que sempre foi relegado. Sentia mais
prazer por essa faceta do que, digamos, pelos aspectos divinos, pelos
quais as pessoas ficam em êxtase. O mesmo senti ao conhecer as gravuras
de Doré em Inferno [primeira parte da Divina Comédia, de Dante
Alighieri].
O trio, Milliet e Mário
Luiz
Sacilotto [1924-2003], Octávio Araújo e eu tivemos o mesmo destino.
Sacilotto foi trabalhar em escritório de arquitetura, o que teve peso na
sua opção pelo concretismo. Nossa formação foi muito parecida. Víamos
os mesmos filmes, líamos os mesmos livros, frequentávamos a Biblioteca
Mário de Andrade. E, nesse ambiente, Sérgio Milliet [1898-1966] foi uma
figura muito importante, pois ele apoiava muito os jovens. Submetíamos
nossos trabalhos à sua apreciação. Ele chegou a escrever um artigo numa
revista no qual falava sobre as nossas obras. O texto era ilustrado com
desenhos feitos por mim, pelo Octávio e pelo Sacilotto. Nós fomos
categorizados por ele como artistas proletários.
Outra
pessoa importante foi Mário de Andrade [1893-1945]. Ele teve, para nós,
a mesma função educativa. À época, na década de 1940, estávamos
entrando nos 20 anos de idade com as influências consolidadas. Em
princípio, a escola francesa, com Picasso, Matisse, etc., foi a base da
nossa cultura artística. Mas como na biblioteca [Mário de Andrade] havia
muitos livros da escola alemã, sobretudo acerca do expressionismo, ela
acabou nos impressionando – e influenciando – mais do que a escola
francesa.
No jornal
Em
1949, quando nós fizemos uma coletiva, a “Exposição dos 19”, que reunia
artistas mais ou menos inéditos de São Paulo, houve um fato pitoresco. O
Geraldo Ferraz [1905-1979] escreveu uma crítica a nosso respeito,
quando a exposição foi para o Rio, falando que estávamos muito
influenciados pelo expressionismo alemão. Ele usou uma expressão que nos
deixou revoltados: “a bola já vem alta demais, o tempo do
expressionismo já passou’’.
Mas foi
muito interessante, porque, dois anos depois, eu conheci o Geraldo
Ferraz. Ele escrevia sobre arte, e fez um artigo no qual se retratava,
de uma certa maneira, por causa de um episódio: houve um concurso em que
o júri deu um prêmio para o Cláudio Abramo [1923-1987], que era
jornalista, mas gostava de pintar – fazia uns desenhos bons, livres, e
colocava muitos títulos em francês. Geraldo Ferraz nos defendeu, porque
não ganhamos nada.
Passamos, a partir
daí, a nos encontrar. Ele dirigia um suplemento literário, no qual
publicava trechos de obras de escritores para divulgação. Ele então me
convidou para fazer ilustrações. Comecei a trabalhar para os Diários
Associados, passando a ter contato com tudo que eu não conhecia em
literatura. Ele e a Patrícia Galvão, a Pagu [1910-1962], faziam as
traduções dos textos. Não raro eu fazia as ilustrações na casa deles.
Fiquei ilustrando o suplemento literário por uns três, quatro anos.
No Rio
Nessa
ocasião, eu arranjei uma namorada que morava no Rio e o próprio Geraldo
me indicou para trabalhar em um jornal, também dos Diários Associados,
no Rio. Acho que o diretor era o Samuel Wainer. Mas eu estava mais
interessado em aprender gravura em metal, no Liceu de Artes e Ofícios,
onde tive aulas com o filho do Carlos Oswald [Henrique Oswald-
1918-1965], que era o pai da gravura em metal no Brasil. Fiz uma série
de álbuns de xilogravura, uns oito ou dez, que eu mesmo encapava e
vendia para sobreviver. Essa série rendeu uma exposição no Rio, para
onde me mudei em 1949.
Goeldi
[Oswaldo]
Goeldi [1895-1961] foi fundamental para mim. Eu acompanhava as
ilustrações que ele fazia para obras de Dostoievski e outros autores,
que saíam em um jornal carioca chamado Amanhã. Eu já tinha admiração por
ele, até por sua filiação ao expressionismo, e quando eu fiz a
exposição no Rio de Janeiro, ele entrou no recinto e ficou olhando,
olhando... Vi que era o Goeldi, conversei com ele e nos tornamos amigos.
Tínhamos muitas afinidades. Ele gostava de conversar comigo. Ninguém no
Rio, por exemplo, sabia quem era Alfred Kubin [1877-1959], com quem ele
se correspondia. Tanto que ele me deu uma carta de apresentação dele,
quando eu fui para a Europa em 1954, como prêmio que ganhei no Salão
Nacional de Arte Moderna. Escolhi Viena porque minha namorada era
austríaca. Eu a conheci em 1951 em Salvador, onde passei três meses, no
atelier de Mario Cravo Junior [1923 - 2009], de quem fiquei amigo depois
da I Bienal de São Paulo [1951], na qual ele foi premiado. Em Viena,
estudei na Academia de Artes Aplicadas e tornei-me amigo de Kubin.
Cheguei, por acaso, a dividir uma exposição com Max Ernst [1891-1976].
Na Europa, cheguei a expor em dez lugares, simultaneamente. Éramos
carregados para aonde houvesse uma galeria.
Quase infinito
Na
gravura, quando se pensa que tem um projeto, começam a surgir novas
soluções, por meios das quais você é induzido pela técnica. Você diz:
poxa, isso aqui ficou bom porque eu vou deixar isso claro ou vou
abrir... Surge, aí, o arrependimento. Gravura é a arte do
arrependimento. Ela permite tal grau de reelaboração que suas
possibilidades são quase infinitas. Rembrandt [1606-1669] fez umas cinco
versões para A Descida da Cruz, uma mais genial que a outra.
Entretanto, elas são absolutamente diversas. No desenho, você pode fazer
várias tentativas em cima da mesma ideia; em cada uma, encontra-se uma
solução diferente.
Água com açúcar
Sou
habilidoso, infelizmente. O tempo todo me canso da minha habilidade.
Ela ajuda, mas não muito. Você pode incorrer no erro de cair no bom
gosto. O tema já é o primeiro confronto com o senso comum – você bate de
frente com a expectativa das pessoas ou, em última instância, com
aquilo que elas esperam. Corremos o risco de chutar a bola fora do gol
logo de cara. A graça está em descobrir que a ideia inicial pode ser
mudada até o ponto de torná-la irreconhecível. É melhor assim: essa
mesma ideia poderia muito bem ser água com açúcar.
Metamorfoses
Uma
série de minha autoria, Morte da Donzela, fez sucesso. As pessoas ainda
a procuram. Mas, hoje, jamais faria esses desenhos. E não faz mais de
15 anos que os produzi. Por outro lado, há coisas do passado mais remoto
das quais jamais me desfiz e ainda têm a ver com a minha produção,
entre as quais as deformações. Quanto mais você insistir, achará
soluções diferentes. Vi isto em alguns escritores, como um tcheco – cujo
nome me foge – que aproveitava apenas 10% do que escrevia. [Franz]
Kafka [1883-1924] fez a mesma coisa. Começava uma história sem saber
aonde ela ia parar; abruptamente, mudava tudo. Esse é o prazer de fazer
as coisas. Não tem sentido fazê-las sempre da mesma maneira.
Ao largo das escolas
O
fato de eu ter passado incólume às diferentes escolas do século XX pode
ser positivo ou negativo. Essa fidelidade’ pode ser, também, uma forma
de mediocridade... O experimental, para mim, nunca foi um desafio. O
mais difícil, como já disse, é aperfeiçoar uma ideia. Trata-se de um
exercício de criatividade, mais do que simplesmente inventar novas
saídas gráficas, como o pessoal tem feito. Toda a arte atual está
ancorada em uma criatividade comercial. E aqui não estou fazendo juízo
de valor. A arte contemporânea está muito ligada à publicidade, em como
convencer as pessoas de alguma coisa – seja gostar, avaliar, pensar,
repensar. Eles dizem que se você tiver uma boa ideia é uma maneira de
fugir do óbvio. Mas uma ideia está longe de ser uma panaceia, ela não é
capaz de fazer por si só uma obra de arte.
O acaso
[Jackson]
Pollock [1912-1956] entrou num beco sem saída porque sabia que o acaso
tem seus limites. A penicilina foi um acaso único na história... Para
produzir um novo remédio, hoje, é necessário fazer uma pesquisa
profunda. Ninguém toca violino por acaso. Se não houver uma proposta que
te oriente, pode até haver uma surpresa boa, mas isso tem lá seus
limites. A pesquisa é interessante, mas o “chute” não leva a nada.
Experimentando
Somos
únicos. Porém, ficamos condicionados à situação e à disponibilidade de
material. Se houver um arsenal à mão, serão diferentes as soluções
encontradas. Pode-se experimentar. Muitas vezes, não dá certo. Às vezes,
apenas a mudança de papel já muda seu traço, sua intenção. Algumas
obras são mais retrabalhadas, outras são mais espontâneas, outros são
mais croquis. Darei um exemplo prosaico: um desenho com papel cortado na
posição vertical vai render uma imagem vertical. O mesmo papel, se
colocado na horizontal, resultará em outras sugestões. Sua atitude, sua
proposta, automaticamente, muda pelo ângulo que é visto a obra. Por que é
fácil desenhar com modelo? Porque ele está ali. O grande desafio é o
que se cria em cima daquele modelo. As tentativas, obviamente, tomarão
características diferentes. Um nu deitado é diferente do nu em pé.
O peso do mercado
A
gravura sofreu avaliações equivocadas ao longo do tempo. Quando você se
contenta com uma imagem considerada acertada, são feitas várias cópias.
Algumas realmente fazem sucesso. Outras, porém, não saem do papel. Nem
todas, mesmo as boas, são escolhidas. E o mercado pesa nesse juízo.
Qualquer artista faz a mesma besteira que eu fiz durante anos. Eu
chegava a pôr na mesa, para escolha, 40 gravuras para o comprador que
dizia gostar do meu trabalho. Às vezes, o sujeito chamava a mulher para
dar a palavra final. Vinham, aí, as considerações: essa está sinistra,
feia, triste. No fim, ninguém comprava nada. Às vezes, é preciso ser
mais seletivo, mostrar algo que a pessoa realmente gosta. O comprador
também está procurando algo. Não é somente o artista que procura. O
admirador também é seletivo e, às vezes, implica com detalhes, ou porque
há uma conotação agressiva ou por episódios vivenciados na infância.
Não dá para saber o que se passa na cabeça de quem está vendo.
Minha
relação com o mercado hoje é zero. Houve um período que eu era até
famoso.... As pessoas já aceitaram muito mais a minha obra. Talvez eu
estivesse menos amargo, menos cruel... Ou era uma geração que comprava,
mas que hoje já está velha. As novas gerações não têm interesse no meu
trabalho.
Arte social
Não
gosto de falar da política na arte. Ela foi muito explorada, em seu
pior sentido. A tentativa de se fazer arte social no Brasil foi mais
desastrosa do que na China e na Rússia. O realismo socialista pendia
mais para o jornalístico do que para o político. Há cenas emblemáticas
que valem mais do que qualquer discurso demagógico. Um exemplo são as
imagens do Vietnã. Elas mostram como o comportamento humano é absurdo,
beira a idiotia. O resto é coisa menor, mixuruca.
Na
minha juventude, havia – acredite ou não –, no “Partidão” (Partido
Comunista), um caderninho de leis que preconizava que seus militantes
não podiam conversar com os trotskistas.
Lembro-me, também, de um jornal do Jorge Amado que era patrocinado pelo [Ciccillo] Matarazzo [1898-1977]. Qual era a razão do patrocínio? Naquela época, uma indústria norte-americana, que produzia enlatados, estava tentando se estabelecer no Brasil, constituindo-se em ameaça ao império do Matarazzo, que patrocinava a revista contra, segundo expressões da época, o “imperialismo americano”. Hoje, este episódio pode ser visto como uma piada, mas era uma realidade.
Lembro-me, também, de um jornal do Jorge Amado que era patrocinado pelo [Ciccillo] Matarazzo [1898-1977]. Qual era a razão do patrocínio? Naquela época, uma indústria norte-americana, que produzia enlatados, estava tentando se estabelecer no Brasil, constituindo-se em ameaça ao império do Matarazzo, que patrocinava a revista contra, segundo expressões da época, o “imperialismo americano”. Hoje, este episódio pode ser visto como uma piada, mas era uma realidade.
Quando
foi proposta a criação da Bienal de São Paulo, na década de 1950, seus
organizadores foram acusados de quinta coluna. Setores viam na
iniciativa uma tentativa de destruir a cultura brasileira. São coisa
absolutamente frágeis como argumentação. Por isso, quando falo em
política coloco tudo isso no contexto. A política é mais terrível
naquilo que não é tão óbvio.
Lembro-me
também de uma corrente que criticou o fato de os bonecos de barro
produzidos no Nordeste passarem a ser feitos com celuloide. Eles falavam
como se estivessem destruindo uma cultura maia ou asteca... A coisa
chega ser folclórica.
Degradação
Num
certo sentido, essa degradação que eu faço, já fiz e acho que vou
morrer fazendo, é uma forma de participação política. Não que eu faça as
críticas, mas vivi num século louco, louco varrido, de ponta a ponta.
Veja no que se transformou o Brasil, que tinha posições duvidosas mas
bem-delineadas – já tivemos um operário, o Lula, lutando por outras
causas. Hoje em dia, o PT, que foi fundado por pessoas que eu respeito,
como Antonio Candido e Sérgio Buarque de Hollanda [1902-1982], com quem
aliás tive contato, é um saco de gatos.
Atualmente, todos os acordos são feitos entre todos os partidos políticos, entre todos os bandidos. Ser engajado hoje em dia é um ato de loucura. E não adianta você ter, eventualmente, simpatia por um ou por outro. Porque, em nome dos interesses, eles promovem apoios e alianças tão espúrios quanto os piores que se pode imaginar.
Atualmente, todos os acordos são feitos entre todos os partidos políticos, entre todos os bandidos. Ser engajado hoje em dia é um ato de loucura. E não adianta você ter, eventualmente, simpatia por um ou por outro. Porque, em nome dos interesses, eles promovem apoios e alianças tão espúrios quanto os piores que se pode imaginar.
Valores
Nunca
tive consciência dos rumos que tomo ou que tomei. Em todo início,
aprendemos com uma série de coisas e valores. De repente, descobrimos
que esses valores não são você. Começamos a escapar daquele caminho. O
que eu gostava em gravura não tinha nada a ver com decoração de móveis,
mas, ao mesmo tempo, as reminiscências greco-romanas sempre existiram.
Nada é jogado fora. Todos os povos se apropriaram e dão as
características que tornam a arte dinâmica e própria de cada país. E não
estou falando de características bobas, tais como preservar
determinadas características do artesanato local – isto não passa de
curiosidade.
‘Minhas obras são meio caóticas’
(Continuação da página 7)
O livro
[Sobre
o livro com desenhos de Grassmann lançado pela Editora da Unicamp em
coleção coordenada por Lygia Eluf]. Fico encabulado em falar das coisas
feitas sobre a minha obra ou sobre mim – seja livro, crítica, premiação
ou debate. Acho que a minha função morre depois de realizada a obra. No
mais, fico feliz que as pessoas gostem ou divulguem meus trabalhos. Em
meio a tanto caos, aparece uma coisa que pelo menos vai na contramão do
que está sendo produzido. Na verdade, sinto um certo prazer em saber que
eu não estou completamente esquecido...
Quando
sai um livro como este, me tranquiliza o fato de não haver intenção de
desperdiçar o tempo com análises, interpretações históricas. O que eu
acho importante nas tentativas é o prazer de criar – este verbo é muito
amplo. E a preocupação do artista hoje em dia é fazer, mais propriamente
do que criar, que é um fenômeno que ocorre se houver algum talento por
trás. Não deve haver a pretensão de ter a marca “minha obra’’. Tanto que
eu evito, ao máximo, colocar muitos textos em minhas imagens. Se elas
não disserem o que eu pretendia dizer, não é um título que vai
esclarecer ou induzir as pessoas a sentirem a mesma coisa, a
participarem do trabalho, a entenderem. Mesmo que entender não
signifique gostar, participar; é possível entender sem gostar,
divergindo. Portanto, acredito que deixar em aberto é melhor do que
tentar esclarecer, como se fosse um quebra-cabeça no qual as coisas vão
se encaixando. Minhas obras não se encaixam, são meio caóticas. Até
diria que caem do nada, do céu – ou do inferno... Não existe um projeto,
embora eu não despreze a minha formação – em certo sentido, ela é muito
mais importante do que a minha realização.
Sem futuro
O
entusiasmo acerca de um trabalho pode resultar em autocensura. Vou
botar um caco na conversa. Há alguns anos, um artista amigo insistia
muito em debater o meu trabalho, meu sucesso – ou meu insucesso. Quis
mostrar a ele que não estava muito preocupado com isso. Disse uma frase
absolutamente grosseira, mas muito sincera: “olha, eu não quero competir
com você, quero competir com Rembrandt”. Ele ficou muito chateado. Por
isso, acho que aqueles grupinhos que se formam, de identificação mútua, e
ao mesmo tempo de autoelogio, são algo que não têm futuro.
Cinema
Vejo
hoje que Nosferatu, do [Friedrich Wilhelm] Murnau [1888-1931], me
impressiona muito mais profundamente do que todos os recursos do cinema
posterior.
Museus x arquitetos
Não
posso me furtar em dizer coisas chatas. Acho que os arquitetos nunca
tiveram peito para enfrentar o escritório do Oscar Niemeyer. Gostaria
muito de ir com ele ao Pavilhão da Bienal. Queria que ele subisse aquela
rampa... Os arquitetos projetam museus que não cumprem sua função. Eles
são bonitos para olhar – o de Curitiba é um exemplo –, mas não para
expor arte. Não há preocupação com o público e as obras de arte.
Muitos
arquitetos bolam umas formas, mas não sabem colocar uma janela. E isto,
principalmente no caso dos museus, é necessário. Os museus são
problemáticos. Eu não vejo esse casamento dando certo. O Louvre pode até
ser “perdoado”, pois não foi feito para ser museu. Era um palácio. Mas o
que é feito para ser museu, e depois passa por adaptações com cubículos
para mostrar as obras, atropela todo o espírito da arte. A maneira de
ver conta muito na hora da exposição.
Unidade temática
Não
dá para inventar muito. A vantagem que eventualmente posso ter sobre
certos gravadores é que lancei mão de várias técnicas. Este recurso
ampliou não só o aspecto criativo, mas inclusive o próprio alcance da
técnica.
Contato humano
Até
os anos 1950, era muito fácil conviver com artistas e intelectuais. Ao
longo de minha adolescência e juventude, era mais difícil não conviver.
Encontrar com um Flávio de Carvalho [1899-1973] na rua, por exemplo, era
fácil, assim como trocarmos impressões sobre nossos trabalhos. Havia
uma coisa que se perdeu, que hoje em dia está muito degradada, que é o
contato humano. E o artista tem um problema sério: quando você não vai a
uma exposição, por quaisquer razões, ele logo lhe cobra por vê-lo em
outra mostra. É como se houvesse a obrigação de ir, de ter uma vida
social. A cada contato coletivo, sinto que fiz muito bem em me afastar.
Morei durante um tempo em São Lourenço da Serra, onde tinha uma
chacrinha. Era um buraco no meio do mato. Eu mesmo fazia tudo: cuidava
da parte elétrica, hidráulica...
Guerra e paz
Todas
as exposições hoje se parecem muito. A busca da originalidade deu
nisso. Cada um se acha mais original que outro. Essas propostas não me
emocionam. São tentativas que caem no vazio porque fica óbvio o tipo de
proposta que está sendo levantado, que nada mais é que explorar o
aspecto novo de uma coisa bem velha, que é o mundo como ele se
apresenta, cheio de contradições. Guerra e destruição, por exemplo, são
dois desses filões. Ao longo da história, todas as guerras e batalhas
foram registradas; antes, porém, privilegiava-se o heroico – ou o
pseudo-heroico.
Vultos da história
Convivi
com gente tão boa, que não teve prestígio nenhum, que se eu falar nomes
você vai me perguntar quem são. Num certo sentido, acho que algumas
pessoas tiveram uma presença muito forte na arte brasileira. Não vou
falar em [Cândido] Portinari [1903-1962], porque todo artista oficial
está condenado à morte, porque ele é obrigado a fazer alhos e
bugalhos... Na verdade, Portinari e Di Cavalcanti foram eleitos os
grandes pintores, ao passo que o Flávio de Carvalho pouca gente conhece.
E tem muitos outros. [Aldo] Bonadei [1906-1976] teve um período muito
bom. O mesmo aconteceu com [Alfredo] Volpi [1986-1988], até os
concretistas dominarem o mercado. Hoje, o mercado está todo contra tudo
isso. O mercado, hoje, é qualquer coisa que se queira inventar.
Conheci
um Volpi que pintava fachadas de casas. Bonadei costurava. Eu não
frequentava o [Grupo] Santa Helena, porque eles eram famosos e eu era
moleque. Famosos como grupo, porque nessa época ninguém vendia nada.
Para se ter uma noção, você comprava um quadro do [Giorgio] Morandi
[1890-1964] pelo preço de um quadro do Di Cavalcanti. E o pessoal trazia
para vender aqui porque na Europa não tinha mercado, em razão da
guerra.
Borges
Tive
um contato com o [Jorge Luis] Borges [1897-1986] no Largo do Arouche,
perto do hotel em que ele estava hospedado. Falamos sobre um livro dele
que eu ia ilustrar. Ele, já cego, me perguntou como seriam as
ilustrações. Ainda indagou: “não é nada de ficção científica, não,
né?’’. Falei que não era. Foi feita uma tradução muito boa por um amigo
que já morreu, Marcelo Corção, carioca, sobrinho do Gustavo Corção, este
tido à época como reacionário – todo mundo enchia saco do Marcelo por
causa disso ... Ele fez uma tradução fantástica.
O
contato foi intermediado pelo Giuseppe Baccaro, um cara que merecia uma
biografia. Ele veio da Itália em 1951 como jornalista, para a primeira
Bienal de São Paulo. Instalou-se como marchand e ficou fuçando toda a
história da arte brasileira. Ele recuperou tudo da Tarsila do Amaral
[1886-1973], do Ismael Nery [1900-1930], de quem chegou a ter 300
trabalhos. Baccaro é o grande responsável por todas essas coisas que
estão aí no mercado. Não apenas procurou, como ressuscitou todo mundo.
Ele é quem queria imprimir o livro do Borges. Para a empreitada, comprou
toda uma coleção de tipos e prensas de uma certa Sociedade do Centro de
Geófilos do Rio de Janeiro. Ele queria que as crianças de Olinda
trabalhassem como tipógrafos. Deu tudo errado.
Hoje
Estou
meio debilitado, minha mão já não é mais a mesma coisa. É preciso me
poupar, porque chega uma hora em que fica mais difícil fazer as coisas. A
última vez em que desenhei seriamente, empolguei-me e fiquei uma hora e
tanto em pé. Ao acabar, minhas pernas pareciam que tinham virado
chumbo. Tenho um problema chamado mielomalácia, que vai, aos poucos,
amortecendo a parte central dos reflexos que vêm dos pés e vão para a
cabeça. Sinto dificuldade em andar, em me equilibrar. Sou meio inválido.