Em defesa da livre advocacia no Brasil
Roberto Romano
"Quatro horas da madrugada... Instante situado entre noite e
aurora, minuto em que, nas instâncias superiores, as decisões foram
assumidas e o que deveria ocorrer já aconteceu. Hora em que é possível
salvar a própria cabeça e fugir. Hora derradeira da opção livre. Toca o
telefone, alguém bate à porta. Quem? Não sabemos. Um amigo ou o enviado
pelo Grande Mecanismo?"
Tais frases comentam os minutos que antecedem a metamorfose de todo
ex-cortesão, quando acusado pelos que permanecem nos gabinetes.
Ministros agarram as mentiras que lhes garantem alguns instantes nos
palácios do poderoso. Este, por sua vez, usa todos os recursos para não
cair.
Jan Kott ("Shakespeare Nosso Contemporâneo"), no trecho citado,
segue do Renascimento -quando a "Justiça" real envia palacianos ao
carrasco sem aviso prévio- aos regimes totalitários.
A moderna
estrutura política é a mesma: um mecanismo em que os que penetram são
dissolvidos. Na máquina, todos aguardam a morte, mas, para ela, empurram
os semelhantes cuja máscara é a de ministro, de juiz, de militar, de
carrasco.
A Renascença reforça o Estado e nela se teme a máscara que
elimina nomes próprios em proveito do teatro político. No francês,
diz-se melhor tal loucura: "personne" traduz o latim "persona", podendo
significar "alguém" e "ninguém". Com as formas repressivas, perdemos o
primeiro sentido.
A repressão policialesca ignora o direito e captura
dominados e dominantes. Os teóricos da política descrevem o Grande
Mecanismo descrito por Jan Kott. Elias Canetti refere-se ao poderoso
como "sobrevivente", pois ele joga inimigos e amigos no moinho político.
Para garantir-se, o poderoso mobiliza traições, juízes venais ou
medrosos, polícia corrupta ou truculenta.
A cena referida repete-se
na vida de todos os perseguidos. A madrugada garante aos esbirros a
não-resistência dos amigos e transeuntes. Nela, agem os policiais de
Ricardo 3º, Robespierre, Napoleão, Bismarck, Hitler, Lênin e Stálin,
Pinochet e militares brasileiros. O dia pertence à opinião pública.
Nele, os segredos são espancados e os governantes não podem usar o
beleguim que realiza o serviço sujo "sob ordem superior". A noite aninha
o segredo, covarde razão de Estado.
No Brasil, muitos são presos nas
trevas, papéis pessoais e íntimos são confiscados nas madrugadas. Almas
são vilipendiadas em nome de "superiores" anônimos. Jornais são
empastelados. O caso mais relevante é a covarde invasão da Folha pela Polícia Federal. Redações são destruídas e as armas pioram a censura costumeira.
Também
escritórios de advogados recebem a visita sacrílega de policiais na
busca de papéis sigilosos. Com semelhantes práticas instaura-se a
ditadura da polícia e dos alcaguetes. O governo abusa do segredo e gera
mecanismos para espionar os cidadãos. Sem garantias jurídicas de vida
livre, os contribuintes são impotentes para barrar a licença ética e a
truculência dos poderosos. Não enganam as mentiras oficiais que tentam
justificar a profanação dos escritórios de advocacia. Trata-se de mais
uma engrenagem do Grande Mecanismo.
Donoso Cortés, conservador, mas
lúcido analista do Estado, põe no "Discurso sobre a Ditadura" a
confissão dos governantes liberticidas: "Não bastam, para reprimir, um
milhão de braços, não bastam, para reprimir, um milhão de olhos, não
bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos, precisamos de algo mais, o
privilégio de nos encontrarmos, num só tempo, em todas as partes. E
conseguiram isto, pois se inventou o telégrafo". Cortés escreve no
século 19.
A democracia aparece na reverência pelos tribunais e
promotores, sobretudo pelos advogados. Sem eles, desaparecem o nome, a
dignidade, o respeito próprio dos cidadãos acusados. Da harmonia entre
as funções brota a declaração legítima de culpa ou inocência, o
veredictum. A polícia serve como instrumento e não pode dizer às togas o
que deve ser feito. Ela não pode usar a força física para a intimidação
da defesa, como tem ocorrido no Brasil.
No regime policialesco, as
piores vilanias são cometidas sem que um magistrado indique o nome e o
cargo dos responsáveis. Com a internet, a arapongagem, as buscas e
apreensões imprudentes e a intimidação dos advogados, restam a imprensa,
os políticos que ainda respeitam as "pessoas comuns" e os juízes que
não autorizam violências policiais. Sem eles, em breve retornaremos às
madrugadas em que alguém, cujo nome é ninguém, e em nome de ninguém,
bate à porta.
E todos seguem para a tortura e para a morte.
Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de
ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas). É autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência -A
Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).
fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1507200510.htm