sábado, 16 de fevereiro de 2013

Gazeta do Povo, Curitiba, 16/02/2013.

g ideias

Robson Vilalba/ ilustração
Robson Vilalba/ ilustração /
Sociedade

O mal pela raiz

O Caderno G Ideias investiga possíveis razões para o descaso dos brasileiros com serviços, espaços e instituições públicas

Publicado em 16/02/2013 | Paulo Camargo 

Entrevista
Brasil: um país sem soberania popular

Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Há um certo consenso no Brasil de que o que é de todos no país não é de ninguém. Existe um descaso, um descuido quase generalizado com a coisa pública. De onde viria essa concepção?
Em primeiro lugar, vem da superpresença do Estado e das oligarquias que controlam o país desde a época do Brasil Colônia, e que se apropriam sistematicamente dos bens públicos e do que deveria ser de propriedade pública. Como elas são “donas” do que é comum a todos, e agem como tal, saqueando e usando o Tesouro e as coisas públicas em seu próprio benefício, você tem, em decorrência disso, um desinteresse pela cidadania. É como se não existisse o “cidadão comum” – aliás, esse próprio termo é muito utilizado no Brasil para distingui-lo. A Justiça o trata com todo o desprezo. Para que você seja ouvido, é preciso que você tenha advogados caríssimos. Há, infelizmente, uma atitude muito corporativista por parte do Judiciário. Até recentemente, você tinha um nepotismo atroz nos tribunais superiores, onde se colocavam as mulheres, as filhas e filhos para dirigir tribunais. No Legislativo, existe uma apropriação absurdamente tremenda dos recursos públicos até hoje. No Executivo, também. Então, quando você tem essa cultura reiterada por 500 anos de desprezo por aquele que paga impostos, é difícil mudar.

O senhor pode citar exemplos disso? 

Um exemplo dessa relação pervertida entre o público e o privado é o seguinte: você entra em qualquer prefeitura desse país, a mais modesta, e você vê lá um cartaz do tamanho de um bonde: “Insulto a um funcionário, tantos anos de cadeia...”. Mas não há, ao lado, um aviso igual, do mesmo tamanho, dizendo “insulto ao cidadão, tantos anos de prisão”. O cidadão no Brasil é intimidado a todo o instante pelo fisco, pela polícia, pela Justiça, pelos políticos e tudo mais, mas ele não é respeitado. E isso resulta nessa postura adotada pela população, que pensa: “Eles é que são donos da coisa pública, eu não tenho nada a ver com isso”.

E o que isso significa, na prática?

Isso significa que o Brasil é um país onde não existe, de fato e de direito, a soberania popular. O público, o povo, é soberano só nominalmente, mas não de forma real. Então, você tem esse “espetáculo”: as pessoas não se sentem responsáveis pelo elemento público. E isso é muito grave. 

Qual o impacto que isso tem no inconsciente coletivo, na postura ética do cidadão, em decorrência desse processo de negação da cidadania?

Para começar, juízes e promotores têm prerrogativa de foro [foros especiais]. Os políticos, também. Advogados têm cela especial. E o cidadão comum não tem direito a nada. Isso é uma realidade que define a norma. O que é a ética? A ética é aquele conjunto de hábitos que, reiterados pela educação ou pela repressão, durante muito tempo, se tornam automáticos. Se você não é dono da coisa pública, se o dono da coisa pública é o oligarca José Sarney [ex-presidente da República e senador], é o oligarca Renan Calheiros [atual presidente do Senado], ou é o oligarca Moisés Lupion [ex-governador do Paraná, de 1947 a 1951 e de 1956 a 1961], não há qualquer estímulo à cidadania. (...) Na Bahia, [o jurista e político] Ruy Barbosa, que é o grande intelectual baiano, dá nome a 70 escolas. Padre Antônio Vieira, a 50 escolas. [O ex-governador] Antônio Carlos Magalhães, a 385. As pessoas, na Bahia, aprendem que o dono das escolas é o Antônio Carlos Magalhães. Esses políticos não se apropriam apenas de bens físicos, financeiros. Eles se apropriam dos bens simbólicos. Para que você tenha uma república, e você tenha uma ética republicana, é necessário que esses bens simbólicos, como a educação, sejam, de fato, coletivos, e não sejam de uma família, ou de um indivíduo. Diante desse quadro generalizado no país, os cidadãos relaxam sua vigilância, seu interesse e sua responsabilidade. A responsabilidade não é apenas de quem governa, mas também é do cidadão. E isso é, sistematicamente, desestimulado no Brasil.



O que é de todos não é de ninguém. Essa percepção, embora politicamente incorreta, por revelar a face mais horrível de uma parcela considerável da sociedade brasileira, se materializa a todo instante, nos mínimos atos, comentários e comportamentos. O adjetivo “público”, quando utilizado para designar o que for, de escolas a hospitais, de banheiros a espaços culturais, passando pelo transporte coletivo, invariavelmente evoca imagens de abandono, descaso, inoperância e, ainda em certa medida, de falta de perspectiva.

O Caderno G Ideias desta semana tenta decifrar esse enigma. Descobrir por que o que pertence a toda a população é considerado sinônimo de má qualidade. E é destinado ao pobre, a quem não dispõe de meios para desfrutar da qualidade e da eficiência – muitas vezes também apenas aparente – do que é resultado de empreedimentos da iniciativa privada.

Público e o privado: uma parceria possível
Nas primeiras semanas de 2013, Curitiba testemunhou uma polêmica insólita. A Prefeitura, em um investimento de R$ 3,5 milhões contratado na gestão passada, começou a instalar calçadas de concreto com acabamento de granito ao longo da Avenida Bispo Dom José, no bairro do Batel, uma das regiões mais abastadas da cidade. 

As obras, que chegaram a ser interrompidas por decisão do recém-empossado prefeito Gustavo Fruet durante alguns dias, causaram revolta e suscitaram intenso debate. Enquanto bairros mais afastados do Centro sequer têm calçadas, o projeto no Batel tornava evidente a falta de critérios no emprego de recursos públicos em áreas distintas da cidade.

Para o vereador Jonny Stica (PT-PR), que acaba de assumir a presidência da Comissão de Urbanismo da Câmara Municipal, não haveria nada de errado no fato de o Batel ganhar calçadas de granito, ou de qualquer outro material mais nobre e oneroso, se a obra não fosse financiada pelos cofres do município. 

Segundo Stica, que é arquiteto de formação, o que é inconcebível é justamente esse tratamento diferente, com privilégios, dado a uma parte da cidade já muito bem atendida. 

Stica diz ter elaborado um projeto de lei, ainda a ser levado a votação, que prevê o que ele chama de contribuição para melhoria. Caso uma associação de moradores, um grupo de comerciantes ou residentes de uma determinada região da cidade, decidam por um conjunto de obras em sua região, que impliquem em um gasto maior, terão de pagar por isso, via um acréscimo no valor de seu IPTU.

A proposta, explica Stica, seria encaminhada ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba da Prefeitura Municipal de Curitiba (IPPUC), que estudaria sua viabilidade, e aprovaria ou não, conforme sua necessidade e pertinência.

Stica foi responsável por encabeçar a campanha A Pedreira É Nossa, que mobilizou, por meio de um abaixo-assinado, mais de 20 mil pessoas para que a Pedreira Paulo Leminski voltasse a ser utilizada como espaço para eventos culturais em Curitiba, depois de ter sido interditada judicialmente por uma liminar em 2008, movida por interesses privados: alguns moradores da região se queixavam do barulho e da movimentação ao redor de seus imóveis. 

O espaço, assim como a Ópera de Arame e o Parque Náutico do Iguaçu, passou a ser administrado pelo grupo liderado pela produtora DCSet, uma empresa privada. 

O vereador não vê qualquer incoveniente em haver parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, contanto que o Estado – no caso da Pedreira, a prefeitura de Curitiba – regulamente seu funcionamento, de datas, horários e escolha de programação ao controle do valor dos ingressos. (PC)
Espaço
Passeio Público tem alto valor simbólico 

Há que se pensar, no entanto, na forma como o dinheiro público é empregado na criação e manutenção de espaços públicos. O professor do curso de Ciências Sociais da PUCPR e doutor em Sociologia Lindomar Wessler Boneti diz que, historicamente, o Estado no Brasil tem investido de formas diversas em diferentes áreas da cidade, dependendo de quem as frequenta e delas desfruta. 

Essa política de emprego do dinheiro público, constata ele, tende a aprofundar a fragmentação das cidades. Exemplo disso é a criação de condições para a construção de shoppings de alto padrão e de condomínios de luxo em uma mesma região. Essas áreas se tornam cidadelas de prosperidade e riqueza, de vocação evidentemente privada, o que as faz se parecerem com os burgos na Europa medieval, onde os comerciantes enriquecidos, mas também ainda separados pela falta de sangue azul da aristocracia, se cercavam de muralhas, para proteger seu patrimônio das classes inferiores.

Boneti cita o Passeio Público como símbolo da degradação dos espaços comuns, públicos – como seu próprio nome diz –, que são, em tese, propriedade de toda a população.

O sociólogo lembra que, até a década de 80, o parque, instalado no coração do Centro de Curitiba, era frequentado por todas as classes sociais. Com a construção do Shopping Mueller, a poucos metros dali, o Passeio foi sendo aos poucos abandonado pela classe média, que passou a fazer seus passeios e compras nos corredores do centro comercial, em um espaço privado, embora o acesso a ele seja público, mediante a promessa do consumo. 

Aos poucos, o Passeio foi se tornando um local identificado com a pobreza, a marginalidade e a prostituição, o que fortalece a tese de que o que é público, no Brasil, estaria quase sempre ligado à miséria e à precariedade. (PC)

Paulo Camargo, repórter da Gazeta do Povo

Para o doutor em História pela Universidade Federal do Paraná Valter Fernandes da Cunha Filho, professor das Faculdades Integradas do Brasil (Unibrasil), as raízes desse pensamento privatista foram ampla e profundamente discutidas pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em toda a sua obra.

“A colonização do Brasil, embora tenha sido feita pelo Estado português, teve um caráter fortemente privado”, diz Cunha Filho. A ocupação do território do país se deu, explica ele, desde seus primórdios, por famílias que buscavam a autossuficiência, em propriedades de terra, muitas de grandes extensões, que se tornavam mais do que unidades produtivas. Eram unidades sociais, onde tudo era produzido, consumido dentro dos limites das fazendas, desde a comida para os humanos e para os animais até utensílios domésticos e peças de vestuário, havendo assim pouca necessidade de troca ou de socialização em espaços públicos.

Nessas propriedades, se produzia de tudo que era necessário e o comércio, a necessidade de contato com o outro, e, assim, o surgimento de laços de dependência, era muito limitado, e se dava, por exemplo, por meio da religião, nas igrejas e suas festas, onde as pessoas se encontravam, e se socializavam. E, mesmo assim, muitas das famílias mais abastadas tinham capelas particulares, e se mantinham até certo ponto reclusas. “Por conta disso, a sociedade brasileira sempre teve um caráter privatista, familiar, pouco voltado ao incentivo de iniciativas que tivessem caráter público, a serem desfrutadas por toda a população.”

Cunha Filho cita o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), um dos pais da Sociologia, para quem essa autossuficiência, essa ausência de laços externos, é perigosa. E, historicamente, justifica o comportamento da elite brasileira, replicado pela classe média, que também associa bem-estar, sucesso e ascensão social à ideia de poder pagar, do privado e, portanto, distante do popular, do que é de todo mundo. 

O historiador acrescenta que até mesmo a educação por séculos se deu apenas dentro dos limites do lar, por meio da contratação de preceptores. As primeiras escolas começam a surgir apenas no século 19, e ainda assim particulares, muitas de caráter religioso, católicas, com a separação das crianças por sexo. 

A educação pública e universal é um conceito muito tardio no desenvolvimento da sociedade brasileira. E começa a se consolidar apenas com o processo de urbanização do país, e o crescimento das cidades, por conta da migração da população rural para os grandes centros, em busca de trabalho e de melhores condições de vida. E, ainda assim, esse processo foi muito lento, o que também explicaria a gigantesca quantidade de analfabetos existentes no país, até mesmo na virada do século 21.

O doutor em Sociologia e professor dos cursos de mestrado e doutorado em Educação da PUCPR Lindomar Wessler Boneti também vai buscar na colonização explicações para o comportamento dos brasileiros em relação à coisa pública. “Em uma sociedade como a nossa, construída desde sempre em cima da ideia dos privilégios, aos quais muito poucos tinham acesso, o público sempre esteve sujeito aos interesses do privado.”

Replicando um modelo europeu feudal, essa relação, dentro da qual alguns poucos detêm o poder de decisão e determinam o que uma imensa maioria deve pensar e como deve agir, se vê, primeiro, na relação dos senhores de terras com seus escravos. E, depois, com seus empregados. Em algumas regiões do país, ainda se faz presente de forma visível.

Dessa maneira, como conceitos de qualidade e de eficiência quase sempre estiveram associados à ordem da propriedade particular, do privado, o público sempre foi destinado ao pobre, ao despossuído, e, portanto, não precisava – e não precisa – ter qualidade, eficiência.

Sociedade
 
Uma relação algo perversa

O público apenas tem, ou já teve, qualidade quando desfrutado pelos mais privilegiados

Há um mito de que os serviços públicos já foram muito melhores, bem mais eficientes do que hoje em dia. Essa concepção, em certa medida, não é de todo equivocada, porém também é parcial. E, assim, passível de questionamento e relativização. Segundo o doutor em História pela UFPR Valter Fernandes da Cunha Filho, se a escola e o hospital público tiveram, de fato, qualidade, isso ocorria porque atendiam, sobretudo, aos interesses da classe média para cima.

O historiador lembra que instituições de ensino públicas, como o Colégio Estadual do Paraná, eram associadas à qualidade e eficiência, quando serviam a uma classe média abastada, que lá matriculava seus filhos. Tanto que figuras públicas importantes na história recente do estado passaram por seus bancos. Isto reafirma, entretanto, a constatação de que o público apenas tem (ou tinha) qualidade quando é desfrutado pelos detentores dos privilégios, que datam dos tempos do Brasil Colônia, como diz o doutor em Ciências Sociais e professor da PUCPR Lindomar Wessler Boneti.

Cunha Filho lembra que os hospitais tinham qualidade quando estavam a serviço do abastado, “do bem situado na vida”, e não do pobre miserável, que não tinha para onde correr, ou onde se tratar. 

Alguma mudança começa a se dar apenas a partir da década de 30, com o governo do presidente Getúlio Vargas, que passa a se preocupar com questões relativas a aposentadorias, pensões e à saúde pública. A população mais pobre passou a desfrutar de algum acesso a atendimento médico que não fosse “de caridade”. E, mesmo com o surgimento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, como consequência desse processo, passaria a ter direito a tratamento público de saúde apenas quem fosse assalariado e com registro em carteira de trabalho. 

Ainda assim, a estrutura de atendimento público aos poucos foi sendo sucateada, como consequência direta da falta de investimentos, da corrupção e do crescimento da população. Quem podia pagar começou a migrar para os planos de saúde particulares, que, por sinal, hoje também passam por grande crise, por conta do aumento da demanda e da baixa remuneração dos médicos. 

“No Brasil, tornou-se muito forte a ideia de que o que é público é para o pobre. Ainda que se defenda, por questões de eficiência e de combate à corrupção, a ideia de que os serviços públicos sejam executados pela iniciativa privada. Os mais ricos não usam esses serviços, mas sabem que eles podem ser lucrativos como negócio”, disse Lindomar Wessler Boneti.

No caso específico da educação, as universidades públicas, ainda consideradas ilhas de excelência no país em algumas áreas, continuam tendo muitas de suas vagas ocupadas por estudantes das classes mais altas, que, ironicamente, estudaram a vida inteira em escolas particulares. 

Com a criação de cotas raciais e sociais, que reservam lugares nessas instituições de ensino superior públicas a descendentes de negros e índios, e, agora, a alunos do ensino público, há um clima de desconfiança de que a presença de estudantes “menos preparados” vá culminar em uma inevitável queda da qualidade de ensino nessas universidades: a presença de estudantes “menos preparados” acabaria por nivelar por baixo a qualidade de ensino.

“Não partilho desse ponto de vista. Sou professor de uma instituição privada, e alguns dos melhores alunos que temos são bolsistas do ProUni”, disse Cunha Filho, referindo-se ao Programa Universidade para Todos (ProUni), criado em 2004, pela Lei N.º 11.096/2005, com a finalidade da concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior. 

Curitiba chama, e ignorar é um risco

A ocupação de espaços públicos da cidade por eventos culturais gratuitos faz com que a população se sinta mais responsável pelo que é comum a todos

Cristiano Castilho

Sábado à tarde, Curitiba. Gente de toda idade circula pelo São Francisco, pragueja contra a pichação, compra uma bebida, canta “Cadê Você”. Domingo à noite: jovens pulam o pré-carnaval no Largo, seguem o trio elétrico com dedicação. Quarta-feira à noitinha: uma tela de cinema ascende no meio da Praça Generoso Marques, e cria instantaneamente um refúgio em que vigora a troca de experiência, a capacidade de compreensão, o respeito ao próximo e, em suma, a segurança.

Não é novidade que, de uns tempos para cá, Curitiba saiu da toca. E isso atarantou os ânimos dos que preferem pantufas e lareira a havaianas e óculos de sol. “Que vergonha”, me escreveram. “Se essas pessoas tivessem um lar decente não estariam na rua.” O julgamento rápido é um baita equívoco a respeito da pulsação da cidade e um preconceito contra a sua própria evolução natural – aquela realizada por seus habitantes.

Como diz Jane Jacobs em seu livro Morte e Vida de Grandes Cidades, esse pensamento “não faz mais sentido do que comparecer a um jantar comemorativo em um hotel e concluir que, se aquelas pessoas tivessem mulheres que cozinhassem, dariam a festa em casa.”

Contatos

O ponto fundamental da discussão, que requer entendimento e preparo – o pré-carnaval do ano passado não terminou bem, todos lembram –, é o fato de entender esses lugares (a rua, a calçada) como públicos. Porque há algo de mágico, de impressionante: os eventos, apesar de sociais, reúnem pessoas que não se conhecem intimamente. É o zeitgeist do zeitgeist. Se os contatos entre os moradores se limitassem à convivência privada, ditada por ambientes de consumo, como os shopping centers (os vampiros da cidade, diz Cristovão Tezza), a cidade não teria serventia alguma. E os contatos seriam menos interessantes e significativos porque o objetivo motivador é outro.

Um abaixo-assinado corre pelas mãos de moradores do São Francisco, pregando contra a Quadra Cultural, que, aliás, tem nova edição hoje (leia mais na página 8). A discordância é legítima. Mas há dois pontos a esclarecer. O primeiro é o porquê dela, e isso se resume a confiança. A confiança na rua se constrói aos poucos, a partir de pequenos contatos públicos na calçada, na porta de casa. Nasce, sim, de gente que para na banca de revista, que fala sobre o futebol na padaria, que dá bom dia ao vizinho, que vai a pé para o trabalho que está a cinco quadras, e não de carro. São hábitos que acabam por gerar confiança. Através da experiência do outro (a experiência pública) entendemos cada vez mais o nosso próprio espaço. Outro ponto é um certo egoísmo inexorável, como o verificado pelo lobby que um shopping fez também contra o evento que acontece hoje no São Francisco. Uma das ruas será bloqueada, impedindo assim o acesso a um dos estacionamentos do estabelecimento. Seria uma trégua de 11 horas, em um único dia. O privado não pode superar o público. Não neste caso.

Caso contrário, corremos o risco de nos transformarmos em uma pequena cidade dos Estados Unidos: tanto Newtown, onde um jovem matou 27 pessoas em dezembro de 2012, quanto Aurora, onde aconteceu o massacre dentro do cinema, em julho do ano passado, não têm praças. Praticamente não há calçadas, o que mina o contato humano, a troca de experiência e acaba criando pessoas mais frias. Pois lá, até para entrar em um supermercado é preciso estar de carro; e os pontos de encontro espontâneos estão ligados ao consumo. São províncias fake, espectros de cidade. Mas, sorte nossa, Curitiba chama, grita. É hora de aceitar o convite.