domingo, 10 de fevereiro de 2013
Vilipêndio! - Roberto Romano
A presidente da República denuncia uma tenaz campanha para vilipendiar a
política. Se a chefe de Estado acredita no que diz, temos o dever
imperioso de captar a semântica de seus vocábulos.
Em primeiro lugar, precisamos ir às fontes da língua portuguesa, nossa
forma de expressão e pensamento. Vilipêndio vem do baixo latim
vilipendere, uma corrupção (e não é aqui a primeira vez que a fala e a
vida, de Roma a Brasília, se corrompem) do termo clássico vili (de preço
muito baixo). O custo e a estimação das coisas em nossa cultura, antes
de Roma, vêm dos gregos. Povo achegado às disputas jurídicas, sobretudo
quando se trata da riqueza familiar e do governo (democrático...), os
atenienses faziam uma clara distinção entre os objetos mais duradouros e
os menos.
Na lei ática surge a diferença, até hoje percebida no Direito, entre
coisas móveis e imóveis. A garantia de propriedade das segundas era mais
importante do que a exigida para as primeiras. A indisponibilidade que
marcava os imóveis não se estendia ao móveis, caso contrário, a vida
econômica teria sido paralisada. Mas o legislador ateniense considerava
os móveis como vilis possessio relativamente aos imóveis. É sob tal
ideia que a lei ateniense obrigava o tutor a vender toda a fortuna
mobiliária do menor para aplicar em imóveis (Saglio e Daremberg). Os
móveis aproximam-se do que Platão chamakapeleia, o comércio de coisas
pequenas, de pouca valia e duração. Já na Atenas clássica as tentações
de consumo levam ao desejo sem limites dos compradores.
Um poder político que se apoia em trocas de insignificâncias só pode ser
instável. Daí, Platão o bane em A República e As Leis. Se o produto
perde valor quando dele o cliente se apossa, ele não pode ser a base de
um Estado saudável. Ocorre na kapeleia o vilipêndio da política. Não por
acaso, Aristófanes, crítico da democracia ateniense, lembra que o
demagogo, servidor de ilusões ao povo, oferece linguiça barata em troca
do poder. O povo, diz Aristófanes no introito da peça Os Cavaleiros, é
reclamão e surdo como uma porta. Um apolítica comercial daquele modo
envilece o Estado. Mesmo ataque o teatrólogo repete em As Vespas. Para
conseguir um dinheirinho a mais do Estado, cidadãos preguiçosos brigam
por um lugar nos julgamentos em que causas pequenas são decididas. Para
que o emprego renda é preciso que as delações sejam numerosas. Elas são
como picadas doloridas que geram discórdia política. Daí o nome dos
juízes de pequenas causas: "vespas".
Quando se instala o império ateniense, um povo inteiro se dedica ao
consumo e ao bem estar, fruto do parasitismo ático sobre as
colônias.Amassa popular vende apoio político a preço vil. A ruína de
Atenas está marcada, portanto, como sabe quem leu Tucídides. Temos o
vilipêndio da política democrática.
Deixemos a inspeção do passado (mais presente do que nunca na política
brasileira) e vejamos o que agora pode ser dito "vilipêndio". Políticos
de grandes ou pequenos partidos compram apoios em troca de obras
públicas para as regiões. É comercializar um bem perene, o Estado
federal, por coisas efêmeras. Basta ver as "obras" que geram eleições
caríssimas: em anos elas se degradam, transformam-se em ruínas se
edifícios, em crateras se estradas, placas que anunciam o nada.
Vilipêndio da política.
Vejamos o elo entre políticos (nos três Poderes do Estado) e a imprensa.
Muitos profissionais trocam informações com lideranças do Legislativo,
do Executivo, do Judiciário. Qual o preço pago se quisermos saber se
tratamos com resvilis os assuntos importantes? Muitas matérias
aproveitam "vazamentos" de autoridades (em especial contra os inimigos
dos poderosos) e da polícia, sem demasiadas preocupações com a pesquisa
rigorosa dos fatos. Em última instância, qui prodest (a quem aproveita)?
Examinadas várias "denúncias", chega-se com rapidez aos gabinetes
palacianos dos três Poderes (onde trabalham os assessores cujo título
mais apropriado seria "spin doctors", os famosos artífices de
maledicências). Qual é o núcleo do mercado negro onde são vendidos e
trocados apoios políticos, cargos, verbas, obras? Tal feira, por
excelência, está situada no Congresso Nacional. Ali se pratica, no alto e
no baixo clero parlamentar, a kapeleia, o rebaixamento do mandato ao
preço ínfimo, ou elevadíssimo, conforme a matéria.
Vilipêndio da política, quando integrantes do partido governista compram
parlamentares (não raro a preço vil) para que votem em favor da
Presidência e de seus ministérios. Tal vilipêndio custou ao País um
processo rumoroso cujo resultado foi a condenação, pela maia alta Corte
de Justiça, de lideranças como integrantes de quadrilha. Por mais caros
que fossem os "empréstimos" de Marcos Valério aos nossos bolsos de
lesados contribuintes do fisco, eles significaram um sacrilégio a custo
vil, se pensarmos na legitimidade do voto parlamentar. Foram vendidas e
trocadas a preço irrisório a fé pública e a confiança dos eleitores. Na
bacia das almas a essência do regime democrático foi posta numa obscena
banca de negócios. Tal é o vilipêndio da política.
Quando oligarcas que passaram o regime ditatorial dominando seus Estados
e pares do Congresso, sob o artifício de monstruosidades como o
Centrão, são ditos "homens incomuns" por quem deveria zelar pela
igualdade, temos o vilipêndio da política. Quando, para atender aos
interesses dos mesmos oligarcas, a Justiça censura os jornais e a mídia
em geral, temos o vilipêndio da política.
Enfim, a presidente usou a palavra certa, mas errou o alvo. No
Congresso, para nossa vergonha e tristeza, impera ainda hoje o "é dando
que se recebe". De semelhante vilipêndio a Presidência da República e
seus ministérios, infelizmente, ainda são parte.
Fonte: O Estado de S. Paulo