terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Enviado pelo amigo virtual, Grozny Arruda.
Agradeço-lhe!
Filhos
de presos torturados carregam a dor do passado
Décadas
depois, homens e mulheres não esquecem das imagens que viram nos porões da
ditadura
O Globo - 23/02/13
“Mãe, por que você está
azul e o pai está verde?”, perguntou Janaína Teles à mãe Maria Amélia ao
visitá-la na carceragem do Doi-Codi, órgão da repressão subordinado ao
Exército, em São Paulo. Tinha apenas 5 anos e ficou presa junto com o irmão
Edson, de 4, em uma sala trancada, de onde saíam apenas para ir ao banheiro,
sob o comando do general Brilhante Ustra. Ernesto Nascimento, filho de Manoel
Dias e Jovelina, já tinha sido entregue à adoção pelos agentes do regime quando
os pais foram libertados para serem trocados pelo embaixador alemão.
Telma e Denise Lucena não se
esquecem da imagem do pai sendo morto na porta de casa. Gino Guilardini foi
torturado aos 8 anos de idade para dizer onde o pai estava. Violência
semelhante à que foi submetido Carlos Alexandre Azevedo, quando tinha apenas 1
ano e 8 meses de idade. Ele foi agredido por militares que queriam pressionar
seus familiares a fornecer detalhes das organizações contra o regime.
Suicidou-se na última semana, após 39 anos de sofrimento e muita dor causada
pelos traumas da infância.
A morte de Carlos Alexandre
gerou uma rede de solidariedade em torno da família do rapaz nesta semana e
motivou a inclusão de um novo tema para resgate pelas comissões da verdade que
investigam a história da repressão no país, tanto em âmbitos estaduais (São
Paulo e Pernambuco) quanto nacional. As três comissões planejam rever a
história de crianças que sofreram em silêncio a violência e o impacto da
ditadura militar.
— Meu filho foi suicidado,
assim como ocorreu com Vladimir Herzog. Viveu um longo processo até chegar ao
limite da sua angústia.
Sempre demonstrou, desde
criança, o impacto (da repressão e da prisão dos pais) na sua vida, e na medida
em que foi tomando consciência do que havia se passado, passou a entender que
tinha sido vítima de um processo político — disse ao GLOBO o pai de Carlos
Alexandre, Dermi Azevedo, que lançou no último mês um livro de memórias sobre o
período em que foi militante político.
A luz acesa na cozinha da
casa perto do Doi-Codi onde dormia no período em que os pais estavam presos não
sai da cabeça de Janaína Teles, presa aos 5 anos, um dia depois dos pais,
militantes políticos.
— Eu tinha costume de abraçar
e beijar muito os meus pais. Quando cheguei na cela, fui dar um beijo neles e
eles não conseguiam se mexer. Eu estranhei. Falavam pra mim que eles estavam
doentes, que ali era um hospital — recordou-se a menina, que também não
conseguia dormir por causa da lembrança dos gritos e do que tinha visto durante
o dia em quartel do exército brasileiro.
Militares perguntavam a ela
informações sobre as atividades dos pais. A resposta padrão era “não sei”. Até
que um dia o interrogando se irritou: “Não sabe ou não quer dizer?”
— Não sei e não quero dizer.
Janaína ficou pelo menos seis
meses sem ter notícias dos pais. Aos 12 anos, encontrou uma mensagem na caixa
dos correios da sua casa. Endereçada aos pais, dizia que “os filhos” deveriam
tomar cuidado na hora de ir e voltar da escola. Assinado: Comando de Caça aos
Comunistas (CCC).
Brincadeira de pau de arara
Uma das brincadeiras
preferidas do irmão, Edson Teles, que também foi preso com a família quando
tinha 4 anos, era simular o pau de arara com uma boneca de pano que tinha. A
campainha do Doi-Codi e gritos variados nunca foram esquecidos por Edson.
— Quando a gente já estava em
casa e a campainha tocava, ele se trancava no banheiro, de medo. Até hoje meus
filhos sofrem consequências do que ocorreu. Eles saíram de lá (do Doi-Codi) de
um jeito que só eu sei — disse Maria Amélia, que frequentou e também levou os
filhos a sessões com psicólogos para lidar com os traumas vividos durante a
ditadura militar.
Hoje integrante da Comissão
da Verdade de São Paulo, Maria Amélia atribuiu ao general Carlos Brilhante
Ustra a responsabilidade pelas torturas que passou e também a prisão de seus
filhos. Em seus livros, o general classifica a violência no cárcere como
“invencionice”, mas admite a presença das crianças no Doi-Codi. Argumenta que
desejava evitar que eles fossem entregues ao Juizado de Menores, o que Maria
Amélia considera “um absurdo”.
— Tiveram coragem de levar
meus filhos na sala de tortura. Eu toda vomitada, urinada, suada, suja. Lembro
do Edson perguntando para mim: “Mãe, agora você é bandida?”
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Tortura
na infância gera traumas e documentário
Violência
contra as crianças marca memória das vítimas anos depois
O Globo -
25/02/13
Chamada pela direção da
escola para uma reunião por causa do comportamento da filha Maria de Oliveira,
a atual ministra de Políticas para as Mulheres Eleonora Menicucci identificou
de imediato o motivo pelo qual a garota chorava na hora de sair da sala para o
recreio: o pátio da escola lembrava a prisão onde a mãe ficou presa.
A experiência da infância
motivou a menina a dirigir o documentário “15 filhos”, sobre a lembrança de
jovens que tiveram os pais presos ou mortos pela repressão. Filmado em 1996,
época em que ainda não se falava em instalação de comissões da verdade no
Brasil, o filme relata episódios como o gesto violento de uma mulher enfiando a
mão e revirando o pacote de pipocas que a menina levava para a mãe na prisão.
Já a lembrança das irmãs
Telma e Denise de Lucena, filhas do operário Antônio Raymundo, é ainda mais
dolorosa por um motivo: assistiram a execução do pai à queima-roupa, na porta
de casa, quando tinham 3 anos e 9 anos de idade, respectivamente.
— Nunca vou me esquecer do
rosto desse rapaz, que chegou perto do meu pai, pôs a arma na cabeça (dele) e
atirou — descreve Telma, que nos dias seguintes não seria capaz de reconhecer a
mãe na prisão porque estava “deformada” e “nem tinha voz de mãe”.
— No Juizado criaram uma
imagem da gente, como se fôssemos bandidos. Falavam para as crianças: “Olha,
esses aí são terroristas.
Não mexam com eles, porque
são perigosos" — lembra Denise, cujo irmão, Adilson, era obrigado a
acompanhar agentes da repressão em diligências para localizar armas ou dar
informações, sob ameaça de espancamento.
História semelhante viveram
três dos quatro filhos de Ilda Martins da Silva, mulher do guerrilheiro
Virgílio Gomes da Silva, que foram presos junto com a mãe e levados para a sede
da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, em 1969. No período em que os
pais estiveram detidos, os militares levavam as crianças de 7 anos, 8 anos e
quatro meses para “passear”.
— Eles mostravam eles para
outras famílias, diziam que seriam adotados por elas. Os mais velhos tinham
tanto medo de se separarem da irmã que dormiam amarrados no berço dela — conta
Ilda.
O silêncio geral sobre a
violência na ditadura militar nos anos 80 e 90 foi algo que tornou ainda mais
difícil essa experiência, conta Janaína Teles, e foi praticamente um “segundo
trauma”. Ela buscou a aproximação teórica com o tema como forma de lidar com
este incômodo. Hoje já tem o título de doutora em história social. Mas não fala
em superação.
— A ressignificação deste
passado acontece em vários momentos. Quando você é adolescente tem certas
implicações, perto dos 40 anos são outras. Até o fim da vida a superação será
relativa. Os traumas são profundos — diz.