No mundo de Jack Bauer
Contardo Calligaris apresentou aqui, na quinta-feira passada,
alguns argumentos interessantes a favor da tortura. Acho que sua
intenção foi mais colocar o assunto em debate e menos defender sua
adoção no Brasil.
Mesmo porque ela já existe, com resultados discutíveis do ponto de vista da segurança pública.
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona”, escreve Contardo.
Os interrogatórios de Jack Bauer, na série “24 Horas”, também funcionam,
repete o psicanalista.
Pode ser. Não me considero um “bonzinho”, desses que querem um mundo
perfeito, utópico, ideal. Querer eu quero, mas sei que a realidade não
corresponde a todos os sonhos que temos.
O problema, eu acho, é quando se quer ser “realista” demais. Um mundo
sem tortura? Com Bin Laden e terroristas variados à solta? Loucura,
dizem os pragmáticos.
O estranho é que uma perspectiva realista e pragmática, como a
explorada pelo meu colega da “Ilustrada”, muitas vezes me parece
puramente imaginária e ficcional.
O capitão Nascimento e o agente Jack Bauer são, antes de tudo,
personagens de filmes. Por razões não apenas ideológicas, mas também de
dramaturgia, suas torturas e sacos plásticos funcionam muito bem.
Contardo Calligaris já manifestou discordância quanto à tese de que a
TV influencia as pessoas. Mas se eu começar a assistir a muitos filmes
em que o herói é um torturador eficiente e simpático, também vou
acreditar que a tortura funciona.
Se os americanos fizessem mais filmes em que a tortura não funciona
(mas aí penso num mundo ideal, não o da Fox Filmes), provavelmente
pensaríamos de outra maneira.
Só para ser um pouquinho realista, penso no seguinte. Um policial
realmente acostumado a torturar suspeitos não passa pela experiência
incólume. É de imaginar que a prática da tortura o torne insensível a
uma série de outros limites morais, do tipo “não roubarás”, “não
matarás”, “não sequestrarás criancinhas”.
Torturarás, ademais, pessoas sobre as quais pesam suspeitas não tão
fortes assim. Não sei se os cidadãos terminariam mais seguros com 300
Jack Bauers agindo por perto.
É que a tortura tem outra função, além das apontadas por Contardo
Calligaris em seu artigo. Ele fala em dar prazer ao torturador, em obter
confissões, em conseguir informações. Uma quarta função me parece
importantíssima.
Trata-se de estabelecer um regime de terror de Estado. Não é apenas o
terrorista quem está exposto à tortura. O vago simpatizante da causa, o
oposicionista pacífico, o irmão, o parente, o filho, o vizinho, estão
sob ameaça também. Numa ditadura, prender e censurar nunca é suficiente:
a tortura é a verdadeira punição.
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