Câmara dos Deputados
Projeto de lei tenta proibir a importação de livros
Publicado em 01/06/2014 | Chico Marés
Líder
do PT na Câmara Federal, o deputado Vicentinho (PT-SP) apresentou
um projeto que proíbe a compra de livros e outras publicações
estrangeiras por órgãos públicos brasileiros. O deputado argumenta que a
proibição seria uma forma de fomentar a produção gráfica nacional. A
lei ainda está em estágio inicial de tramitação. Mas, se for aprovada,
irá prejudicar universidades e institutos de pesquisa públicos que usam a
produção acadêmica estrangeira como um de seus instrumentos de
trabalho.
O deputado apresentou a proposta
em 25 de março. Atualmente, o projeto está na Comissão de Serviço
Público e depois passará pela Comissão de Trabalho e de Constituição e
Justiça (CCJ). Caso não haja votos contrários nas duas primeiras
comissões, o trâmite na CCJ será em caráter terminativo – ou seja, se
aprovada, a matéria segue diretamente para o Senado.
Assessoria do deputado diz que houve mal-entendido sobre proposta
A reportagem da Gazeta do Povo tentou entrar em contato com o deputado federal Vicentinho (PT-SP) para que ele explicasse o projeto e as razões para sua apresentação. Mas o parlamentar não deu resposta. Mas a assessoria da liderança do PT disse ter havido um “mal-entendido” sobre o escopo do projeto: o que o deputado buscava proibir era a compra de publicações produzidas no Brasil, porém impressas em outros países, como a China, por razões econômicas. Com isso, informou a assessoria de Vicentinho, seria possível proteger as gráficas brasileiras. Essas informações, porém, não constam nem no texto tampouco na justificativa do projeto de lei.A assessoria do líder do PT ressaltou também que o projeto prevê a compra de publicações estrangeiras que não tenham similares no Brasil. No entendimento de Vicentinho, isso possibilitaria a assinatura de periódicos acadêmicos, por exemplo.
Ditadura
Porém, o professor de Filosofia Política Roberto Romano, da Unicamp, observa que já se tentou usar esse conceito de “similaridade” para livros durante a ditadura militar, por razões econômicas, com resultados desastrosos. “Não há como existir uma ‘publicação similar’. Pode até existir uma revista brasileira nos moldes da Nature [publicação científica internacional], mas os conteúdos são diferentes. Até porque pesquisar é trazer algo novo”, afirma Romano. “Não podemos retirar da comunidade científica fontes de informação.”
Romano destaca ainda o pensamento do etnólogo francês André Leroi-Gourhan: desde a Idade da Pedra, não existiu uma sociedade que não tenha evoluído sua ciência e tecnologia sem dois elementos fundamentais, o empréstimo e a invenção. Para conseguir inventar, uma sociedade precisa necessariament, “emprestar” ideias.
No Brasil de hoje, por exemplo, o neurocientista Miguel Nicolelis comanda o que talvez seja o mais ambicioso projeto científico do país – a construção de um exoesqueleto que permita que paraplégicos caminhem. Para isso, conta com a experiência de 156 pesquisadores espalhados por todo o mundo.
Sem sentido
Professor de Direito Administrativo da UFPR, Rodrigo Kanayama diz que
a abrangência do projeto não é clara. O texto fala em “órgãos públicos”
sem especificar se autarquias, como as universidades, seriam afetadas.
De qualquer forma, o projeto é nocivo. Ainda que não inclua as
instituições de ensino e pesquisa, trata-se de uma tentativa de
restrição ao acesso à informação – o que contraria a Constituição. Caso
inclua, o retrocesso é ainda maior. Universidades federais e estaduais
teriam de cancelar a assinatura de periódicos e bases de dados usadas em
pesquisas nas mais diversas áreas.
“Não faz sentido priorizar as publicações brasileiras. O Brasil deve
incentivar a importação e exportação de conhecimento, e não o
contrário”, afirma Kanayama. Para ele, a proposta é contraditória com
outras iniciativas do governo federal – como o programa Ciência Sem
Fronteiras, que busca justamente ampliar a troca de conhecimento entre
universidades brasileiras e estrangeiras. “Se a lei for aplicada, eu
terei que desrespeitá-la para exercer o meu trabalho.”
O professor de Filosofia Política Roberto Romano, da Universidade de
Campinas (Unicamp), reconhece no projeto uma “origem de direita,
conservadora, reacionária e que tem pouco a contribuir com o
aprimoramento das instituições políticas brasileiras”. Ele relembra que
textos estrangeiros serviram como fundamento para movimentos que geraram
grandes avanços sociais ao longo da história do Brasil. Um exemplo é a
Inconfidência Mineira, que não seria possível sem a influência de
pensadores norte-americanos e franceses.
A apresentação do projeto coincidiu com um momento no qual veículos
estrangeiros, como os britânicos Financial Times e The Economist e a
revista francesa France Football, fizeram críticas pesadas à economia
brasileira e à organização da Copa do Mundo. Romano acredita,
entretanto, que esse projeto tem mais a ver com uma visão distorcida de
nacionalismo do que com esse episódio em particular. “É próprio de um
pensamento supostamente nacionalista, mas que vai contra toda uma ideia
de cultura, ciência, Estado e contra a própria vida moderna”, afirma.