De virtudes e vícios
Roberto Romano
31 Maio 2014 | 16h 00
Professor de ética analisa a complexa figura de Barbosa, o fato novo na história nacional
Joaquim Barbosa é um fato novo na história do Estado
brasileiro. Ele pode ser visto pelo ângulo de seu rigor intelectual:
poucos magistrados de nossa terra podem ostentar um saber polifacetado
como o adquirido por ele. Não se trata de um acadêmico pedante que abusa
do latim e das línguas estrangeiras, as quais ele domina muito bem. Ele
não invoca clássicos do direito e da filosofia em vão, suas falas
primam pelo uso breve das citações e as traz a lume apenas para ilustrar
seus pontos de vista, respeitando os ouvintes e leitores. O mesmo rigor
da mente educada ele exibe quando se trata de matéria ética. Sua
coragem na Ação Penal 470 será reconhecida por muitas gerações futuras
de brasileiros, sempre desencorajados pela demagogia, falta de firmeza e
populismo dos nossos políticos. Durante todo o debate sobre o
famigerado mensalão, Barbosa mostrou que seguia princípios jurídicos e
morais em níveis superiores de integridade. Acossado pelos sectários de
todos os calibres, manteve alta sua dignidade pessoal e honrou o cargo
ocupado.
Como toda personalidade que precisa vencer obstáculos
fortes, ele usou a vontade como poucos juízes brasileiros o fizeram.
Egresso do Ministério Público, uma das mais relevantes instituições
nacionais na luta contra a endêmica corrupção brasileira, sua busca de
aplicar a lei aos crimes ressaltou um querer férreo, inquebrantável.
Mesmo antes de presidir o STF, ele mostrou plena
combatividade quando, em discussão acirrada com seus pares, defendeu
pontos de vista impopulares entre os que tendem para a leniência nos
assuntos públicos. Primeiro negro a ocupar uma cadeira presidencial no
Supremo, ele pouco se valia da cor para vencer disputas. Chegou aonde
chegou pelo brilho do intelecto e pela vontade indômita.
As mesmas qualidades que o tornaram um fato inédito no
Estado brasileiro dele fizeram, no entanto, uma pessoa inflexível,
cujos traços de autoritarismo aumentaram quanto mais desafiado ele era.
Algumas vezes chegou às raias da injustiça, como ao dizer em seu voto
sobre a reforma da Previdência (encaminhada pelo presidente Luiz Inácio
Lula da Silva) que não existem direitos adquiridos, caso contrário a
escravidão ainda seria vigente entre nós. A situação era totalmente
outra face ao alegado histórico: no caso dos aposentados, o problema não
era de escravidão ou de propriedade de seres humanos, mas de trabalho
duro exercido durante décadas. Com seu voto, ele deu a vitória à reforma
da Previdência, a derrota aos trabalhadores que pediam justiça.
Outras medidas também intempestivas foram assumidas
por ele, como a prisão dos chamados mensaleiros em pleno feriado
nacional, deles extraindo a mínima segurança jurídica de prisão à luz do
dia e com acompanhamento público. Se foi voluntarioso diante dos réus,
também usou de maneira intolerante sua autoridade de presidente do STF
para humilhar seus pares de escalão inferior, fugindo às regras básicas
da etiqueta que exige respeito do superior pelos subordinados. O
ex-presidente do STF, Ayres Brito, costuma dizer que a etiqueta é uma
ética de bolso. Parece irrelevante, mas quem, num plano hierárquico
superior, desrespeita as normas de boas maneiras corrói sua própria
autoridade. Ao receber seus pares de pé, usando termos ríspidos como se
eles fossem seus inimigos, Barbosa exibiu para a nação inteira um pleno
desprezo pela dignidade magistral. Ele não só fugiu às normas como
deslustrou toda a hierarquia do poder Judiciário.
Ao ser aplaudido por grande quantidade de cidadãos,
sem mais paciência para os olhos fechados diante dos crimes, sobretudo
os de corrupção política, sua vontade imperial aumentou, diminuindo a
cautela diante dos escolhos e objeções. Por sua atitude imperial, perdeu
apoio dos colegas, prenunciando uma solidão grave após deixar o comando
do STF. Com certeza tal fator foi decisivo em sua opção pela mais do
que precoce aposentadoria.
Falou-se muito numa possível candidatura de Barbosa à
presidência da República. Conto entre os que temiam tal hipótese. Já
tivemos vários presidentes com perfil autoritário que, em nome da
moralidade pública, deixaram o País em situação dramática. Jânio
Quadros, cujo moralismo histriônico protagonizou cenas ridículas e
patéticas no seu curto período administrativo, abriu a porta para os
golpes de Estado que vieram após sua renúncia. E foi a causa não muito
remota do golpe de 1964. Fernando Collor, o caçador de marajás, deixou o
país em situação caótica, após ter imposto aos cidadãos um plano que,
na verdade, foi um confisco inútil.
O mais grave no perfil de Barbosa é sua personalidade
autoritária, que poderia causar malefícios enormes com sua possível
elevação ao Palácio do Planalto. Tudo indica que ele seguirá o caminho
do Legislativo como senador. Talvez seja o posto mais adequado ao seu
perfil. No Congresso ele poderá usar seu imenso saber jurídico e
humanístico na proposição de leis, além de bem usar sua vontade férrea
para fiscalizar os poderes do Estado nas três vertentes, Executivo,
Legislativo, Judiciário.
De qualquer modo, o juízo sobre sua pessoa, embora
polêmico, resulta em todas as mentes brasileiras no seguinte: trata-se
de um homem à altura dos nossos tempos.
Roberto Romano é filósofo, professor de Ética na Unicamp e autor de O caldeirão de Medeia (Perspectiva)