Sobre o posto anterior, relativo à insegurança das urnas eletrônicas, cumpri meu dever ainda em 2002. Não me ouviu quem não desejou. Pior para o eleitor...
JC e-mail 2051, de 11 de junho de 2002
Urnas eletrônicas, Abin e Unicamp, artigo de Roberto Romano
'A Agência Brasileira de Inteligência ainda não provou isenção política, reconhecida por todos os setores do país'
Roberto Romano é professor titular de ética e
filosofia política da Unicamp, onde foi presidente da Comissão de
Perícias. Artigo publicado na 'Folha de SP':
Grave preocupação da
cidadania, no processo eleitoral que logo definirá os rumos da
República, diz respeito às urnas eletrônicas. Não se trata de simples
problema técnico.
Caso não seja garantido o controle dos
procedimentos na apuração dos votos, podemos enfrentar uma nova e
desastrosa crise política. Num país que viveu boa parte do século 20 sob
ditaduras, as autoridades não têm o direito de abandonar as cautelas
éticas.
Se ocorrer alguma irregularidade na apuração do pleito, a
fé pública receberá um golpe pior do que os produzidos pelas tristes
experiências de corrupção, censuras, despotismos vários que geraram no
povo brasileiro a descrença na democracia e no Estado de Direito.
Quando
a Unicamp aceitou analisar as urnas eletrônicas, eu presidia a sua
Comissão de Perícias. Fui consultado pelo então reitor, dr. Hermano
Tavares, apenas pro forma, pois aquele trabalho não integrava as
atribuições da comissão.
Esta última foi instituída para definir
normas nas atividades ligadas ao extinto Depto. de Medicina Legal.
Respeitosamente, lembrei ao reitor os riscos do novo empreendimento.
A
Unicamp era chamada a fornecer um aval técnico, positivo ou negativo,
em setor político explosivo, nas próximas e tensas disputas
majoritárias. Pedi uma nota advertindo que a comissão por mim dirigida
nada tinha a ver com a peritagem das urnas.
A solicitação foi
feita diretamente ao reitor, na presença do chefe-de-gabinete. A
proximidade de nomes e funções, argumentei, traria equívocos
indesejáveis entre o que fazia a Comissão de Perícias e os laudos sobre
as urnas.
Após o dispêndio de muito tempo para equacionar
gravíssimos problemas na sua área própria, a comissão finalizava os seus
trabalhos, tendo defendido a Unicamp, sobretudo no setor médico,
caluniado por grupos que atribuíam ao todo acadêmico os erros cometidos
por ínfima parcela de professores.
A nota não foi publicada.
Restou espaço para o equívoco temido por mim. A Unicamp realizou a sua
perícia com a competência acadêmica de sempre. E fez recomendações
graves para o uso de códigos e chaves protetoras do sigilo eleitoral.
Honrando
o rigor ético e científico, os nossos técnicos perceberam consequências
que envolvem problemas axiológicos na condução do caso. E fizeram
recomendações cautelares, não acatadas pela Justiça Eleitoral.
Esse
ponto já evidencia um perigo para a Unicamp: seu laudo é utilizado como
garantia de fiabilidade das urnas eletrônicas, mas suas recomendações
sobre a segurança na manipulação das mesmas são ignoradas.
Devido
ao meu trabalho de pesquisa em ética e filosofia política e às funções
que exerci, mantenho intenso contato com magistrados, promotores,
procuradores federais e outros encarregados da aplicação da lei em nosso
país.
Muitos deles agora me procuram para indagar sobre a minha
responsabilidade e a da antiga Comissão de Perícias no trato
estabelecido com a Justiça Eleitoral para a peritagem das urnas.
A
todos, por falta da nota que deveria ter sido publicada pela antiga
reitoria, agora esclareço: nem a comissão nem eu respondemos pelo
convênio com a Justiça Eleitoral para a peritagem das urnas. Ele é de
exclusiva responsabilidade da reitoria mencionada.
Pessoalmente,
tenho receios sobre o que pode ocorrer. Há pouco tempo, a 'Folha de SP'
publicou documentos da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em que
os seus agentes confessam que podem 'arranhar direitos' da cidadania.
A
mesma agência tem exercido tarefas não compatíveis com a intimidade e
os direitos constitucionais dos indivíduos. Por enquanto, a
integralidade de seus quadros não goza da confiança irrestrita do mundo
político, tanto entre eleitores quanto entre lideranças.
Integro o
número dos que defendem a existência da Abin, tendo em vista a inserção
brasileira nas lutas internacionais, do comércio à produção científica e
tecnológica.
Mas considero que semelhante organismo ainda não
provou isenção política, reconhecida por todos os setores do país. A
imprudência do seu uso para manter o sigilo das urnas é manifesta.
A
imprensa cumpre seu papel e noticia os fatos. A população precisa se
manifestar. As autoridades democráticas, que respeitam o Estado de
Direito, devem explicações à nação. (Folha de SP, 11/6)