Vestidas de vermelho e com faixas em punho, 15 mil pessoas
tomaram a ponte Estaiada, uma das principais de São Paulo, debaixo de
chuva e sob frio intenso. Liderados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST),
o grupo repetiu há dez dias o trajeto feito por milhares de
manifestantes em junho de 2013, ao fechar importantes vias da capital,
como a Marginal Pinheiros e avenidas Faria Lima e Cidade Jardim. A
bandeira do protesto, no entanto, já não era mais a mesma: a luta pela
redução da tarifa do transporte deu espaço à pressão por moradia
popular.
A reportagem é de Cristiane Agostine, Renata Batista, Guilherme Serodio e Sérgio Ruck Bueno, publicada pelo jornal Valor, 02-06-2014.
Um ano depois das mobilizações de junho de 2013, mudou o perfil dos protestos em São Paulo e no Rio, principais palcos dos protestos.
Em São Paulo, o MTST assumiu o
protagonismo das grandes mobilizações e em mais de 20 atos neste ano
levou milhares de sem-teto às ruas, em protestos pacíficos.
Desde junho, o MTST fez pelo menos duas grandes ocupações: a Nova Palestina, na zona sul, com 30 mil pessoas, e a Copa do Povo, na zona leste, com 8 mil moradores. O movimento foi recebido pelos governos federal, estadual e municipal.
Já as manifestações contra a Copa do Mundo, com
bandeiras pulverizadas na saúde, educação, transporte e infraestrutura,
têm registrado mobilização menor - e mais casos de violência,
depredações por black blocs e prisões. No sábado, cerca de 500 pessoas
participaram, segundo a PM. Na anterior, foram 300.
No Rio, apesar de serem quase diários desde junho de
2013, os movimentos mais recentes têm pouca relação com os do ano
passado. Os novos atos têm sido mais localizados e liderados por grupos
organizados como o MTST e profissionais de ensino. Os manifestantes de junho estão mais distantes das ruas e a violência de ativistas diminuiu.
Integrante da coordenação nacional do MTST, Guilherme Boulos
diz que as mobilizações demonstraram que é possível ter conquistas com o
povo na rua. "A tarifa baixou e isso foi um sinal", afirma. "A
habitação é uma das pautas das ruas. Existia um barril de pólvora por
conta da especulação imobiliária, do déficit habitacional e da
sobrevalorização dos alugueis. Em junho estourou a tampa da caldeira. A
população viu que a mobilização traz resultados".
O Movimento Passe Livre (MPL), responsável pelas
manifestações em São Paulo que resultaram na onda de protestos, reduziu a
participação nas ruas depois que o aumento da tarifa foi revogado no
Estado. O grupo apartidário, fundado em 2005, comemorou a redução da
tarifa em dezenas de cidade e a manutenção do valor da passagem em São
Paulo neste ano. "Foi a principal vitória", diz Nina Cappello,
do MPL. "Com o florescimento das manifestações de junho, o povo se
empoderou de outras lutas. A luta pela moradia é uma delas", diz.
"Habitação é uma das áreas com relação direta com a Copa. Milhares de famílias foram expulsas para obras para os jogos", diz.
Para Monique Felix, também integrante do MPL, a
população viu que é possível ter vitória "fora da burocracia sindical".
"A população passou a acreditar mais na auto-organização, não só na luta
por transporte, mas também por moradia", diz.
Em São Paulo, além da redução da tarifa, a licitação
das empresas concessionárias de transporte na capital, de R$ 46
bilhões, foi adiada e só deve ser lançada no próximo ano. O governo
estuda mecanismos de acabar com o monopólio das empresas e enfrenta
pressões de empresários. A recente paralisação dos ônibus é vista pela
prefeitura como chantagem contra mudanças no sistema.
Na capital, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para
investigar contratos de transporte pouco avançou e terminou sem mostrar
se os recursos municipais são revertidos para o povo e se os lucros das
empresas estão corretos.
No Rio Grande do Sul, as manifestações levaram à
implantação do passe livre estudantil intermunicipal pelo governo do
Estado e serviram de estímulo ao lançamento do primeiro leilão de
concessão de ônibus em Porto Alegre. Em vigor desde o fim de 2013, o
passe livre beneficia 22,4 mil estudantes universitários e secundaristas
com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo em cerca de 380
municípios. Segundo a secretária da Assessoria Superior do Governo, Mari Perusso, o custo é de R$ 8 milhões por semestre.
O sistema de fretamento, no qual o Estado repassa os recursos às
prefeituras para subsidiar até R$ 217 por mês por aluno na contratação
de transporte privado, recebe R$ 7 milhões por semestre e já teve a
adesão de 20 mil pessoas. O Estado banca dois passes livres por dia.
Neste modelo, 2,4 mil alunos são atendidos e outros 1,6 mil aguardam
aprovação do benefício, mas o número ainda está bem abaixo da
expectativa inicial de 30 mil interessados. O sistema recebe R$ 1 milhão
pode mês para cobertura das tarifas.
As manifestações aceleraram o lançamento do edital de licitação das
linhas de ônibus urbanos, que funcionam sob o regime de permissão. As
propostas das empresas interessadas serão entregues no dia 3 de junho e a
divulgação dos vencedores está prevista para agosto. A Empresa Pública de Transporte e Circulação espera que a tarifa fique abaixo do teto de R$ 2,95, valor vigente hoje.
No Rio, a CPI proposta para apurar atos de
vandalismo na Assembleia após a morte do cinegrafista da TV
Bandeirantes, atingido por um rojão, não se concretizou.
No Estado, um dos líderes do movimento que levou milhares de moradores da Rocinha a protestarem no Leblon, o estudante Denis Neves
se diz desanimado com a forma como o movimento evoluiu. Segundo Neves,
as discussões acabaram dominadas por grupos com interesses políticos.
Novas lideranças se afastaram sem respostas concretas às suas demandas.
"Desanimei. Estamos em ano eleitoral e a gente já sabe o que vai
acontecer", diz.
De acordo com Neves, as manifestações que continuam
na comunidade têm pouca relação com as de junho de 2013. Na época,
moradores da Rocinha e do Vidigal se juntaram para pedir melhores
condições de vida e protestar contra o governo. O coro engrossou com a
morte do pedreiro Amarildo. "Ainda tem manifestações por causa da violência e da falta de água, mas nada como naquele momento", diz.
"Nenhuma mobilização perdura tanto tempo. O número de pessoas
diminuiu, mas o sentimento de indignação permanece", diz o presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Alerj, deputado Marcelo Freixo
(PSOL), que desde junho acompanha o caso do único manifestante detido
durante as manifestações de junho já julgado e que permanece preso, o
morador de rua Rafael Braga Vieira. "O que houve desde então foi uma
escalada da violência do Estado", diz.
A advogada Rafaela Lopes, do Instituto de Defensores
dos Direitos Humanos (DDH), diz que a organização também observa o
aumento da repressão. "Rafael vive em uma situação de muita
vulnerabilidade. Estava com uma garrafa de pinho sol e outra de água
sanitária e foi condenado por porte de material explosivo e incendiário
porque havia álcool em uma das garrafas. Está em Bangu 5", diz a
advogada.
No Rio Grande do Sul, os manifestantes viram a aprovação de leis contra o uso de máscaras em protestos, como em Porto Alegre e Gravataí.
Apesar da linha mais conciliadora do governo gaúcho a Polícia Civil
indiciou sete manifestantes, a maioria ligada ao PSOL e ao PSTU. Após o
indiciamento, o Ministério Público Estadual denunciou os envolvidos à
Justiça por associação em quadrilha armada, dano ao patrimônio público e
com violência à pessoa, explosão e furto qualificado. Se os réus forem
condenados podem ser sentenciados a penas que variam entre seis meses e
oito anos de reclusão e podem ser aplicadas cumulativamente.
Em São Paulo, centenas de pessoas foram presas para
averiguação nos protestos e foi aberto um inquérito para investigar os
manifestantes. Na sexta-feira, o MPL fez um protesto em frente à
Secretaria de Segurança Pública do Estado contra a forma como a
investigação tem sido conduzida. Reclamaram que desde integrantes de
movimentos sociais até pais de manifestantes receberam intimações e
foram ameaçados de condução coercitiva para esclarecimentos. "A
investigação não é sobre Black Blocs, mas sim para fomentar medo na
militância", diz Monique Felix. A secretaria, em nota, diz que as
investigações são para apurar "atos de vandalismo, agressões e
associação para o crime" e que "seguem os princípios da legalidade".
Apesar da tentativa de criminalização dos movimentos sociais, o
sucesso das mobilizações de 2013 colocou as lideranças dos protestos na
mira de partidos e grupos políticos.
O MPL reclama do "sequestro" da sigla e uso indevido do nome. O grupo denuncia ação de integrantes da União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao PCdoB, por usar o nome do movimento em negociações com governo em Osasco
(SP) e de ter tentado aparelhar o grupo na região da Baixada Santista
(SP). O movimento aponta oportunismo também em Salvador, São Luís e
Curitiba. O presidente nacional da UJS, Renan Macaxeira,
diz não ter conhecimento de irregularidades envolvendo integrantes da
entidade. "Tanto o MPL quanto a UJS são organizações muito amplas. Não
tenho notícia de irregularidade. Não é nossa prática".
Partidos que estiveram próximos às manifestações buscaram nomes capazes de mobilizar a onda de insatisfação nas urnas. O PSOL lançará no Rio como candidato ao governo o professor Tarcísio Motta, integrante do Sepe, o sindicato que bancou uma greve de 45 dias entre novembro e dezembro. Em São Paulo, filiou o filósofo Vladimir Safatle,
mas o lançamento dele ao governo paulista enfrentou problemas dentro da
sigla e não vingou. O PSOL tenta ampliar a atual bancada de três
deputados federais e aposta no vereador carioca Renato Cinco, nome próximo à juventude e aos professores.
O PSTU tem um nome como certo nas eleições: Julio Anselmo, um líder das mobilizações dos jovens no Rio.
Para o filósofo da USP Pablo Ortellado
são os partidos longe do poder que têm maiores chances de capitalizar
com as mobilizações atuais. "Esse novo fenômeno é uma mobilização em
certo sentido anti-institucional, uma mobilização que tem muita
desconfiança dos partidos. Partidos menores de esquerda, como o PSOL,
estão em uma situação mais cômoda porque não estão no poder", diz.
Para o coordenador executivo da Rede Nossa São Paulo, Maurício Broinizi,
o movimento refratário aos partidos, que marcou os protestos de 2013,
tem de servir de alerta inclusive para legendas como PSOL e PSTU. "As
manifestações levantaram uma enorme advertência ao sistema político",
diz. "A população está muito desconfiada. O alerta está no ar".