Aproximação da Fiesp com golpistas de 64 virou negócio
Um conjunto de documentos dos anos 70 arquivados na ESG (Escola Superior
de Guerra) mostra que a união dos empresários paulistas com os
militares nos preparativos do golpe de 1964 ajudou a estimular negócios
para as empresas nos anos seguintes.
A conclusão surge da leitura das transcrições de palestras que os próprios industriais ministraram na ESG entre 1970 e 1976, material obtido pela Folha na instituição.
Tudo começou poucos dias após o golpe, quando a Fiesp (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo) criou um órgão de apoio aos militares
em seu próprio interior.
Tudo começou poucos dias após o golpe, quando a Fiesp (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo) criou um órgão de apoio aos militares
em seu próprio interior.
1970/Folhapress | |||
O empresário Vitório Ferraz, membro da Fiesp, recebe condecoração na Marinha em 1970 |
A iniciativa era de industriais que diziam ter ajudado com dinheiro e
equipamentos na derrubada do governo João Goulart, ação que resultou em
21 anos de ditadura.
Subordinado à presidência da Fiesp, o órgão foi batizado de GPMI (Grupo
Permanente de Mobilização Industrial). Seu objetivo era converter a
indústria paulista em fornecedora de material bélico, caso grupos de
esquerda reagissem contra o golpe e deflagrassem uma guerra civil.
Numa apresentação feita em 1972, o então presidente da Fiesp, Thobaldo De Nigris,
explicou que cabia ao GPMI planejar a "implantação do maior número de
fábricas capazes de, no menor prazo industrialmente possível, produzirem
os artigos de que necessitará o país na hipótese de uma mobilização
geral".
Uma siderúrgica precisava estar preparada para fabricar aço para
granadas de artilharia ou morteiros, exemplificou. Uma tecelagem, apta
para, com rápidos ajustes, fornecer levas de uniforme verde-oliva. E
assim por diante.
Não houve reação ao golpe de 1964, e a guerra não aconteceu. Mesmo
assim, o GPMI foi mantido pela Fiesp e passou a ter como tarefa a
organização da participação de indústrias paulistas nas concorrências
das Forças Armadas.
O grupo recebia os pedidos dos militares, encaminhava as demandas aos
sindicatos das indústrias capazes de entregar a encomenda e fazia o
contato entre o comprador e as empresas escolhidas para fornecer às
Forças Armadas.
Em sua fundação, semanas após o golpe de 1964, o GPMI era composto por
dez representantes da elite do empresariado e 11 militares.
Entre os civis estavam Raphael Noschese, presidente da Fiesp, De Nigris e
Mário Amato, empresários que assumiriam a presidência da entidade nos
anos seguintes.
No time dos militares, os mais destacados eram o major brigadeiro Márcio
de Souza Melo, que depois foi ministro da Aeronáutica no governo
Castello Branco, e o general Edmundo Macedo Soares e Silva,
ex-governador do Rio e depois ministro da Indústria do governo Costa e
Silva.
Arquivos do jornal "Correio da Manhã" mostram que já em 1966 o
industrial Vitório Ferraz, o primeiro presidente do GPMI, trabalhou com
militares pela instalação de uma fábrica de aviões no Ceará. Ele falava
em investimentos de até Cr$ 40 bilhões (cerca de R$ 440 milhões hoje).
Em 1967, o GPMI encaminhou uma intenção de compra de navios pela Marinha.
ORGULHO
Numa exposição na ESG em 1970, Ferraz afirmou que "até hoje orgulha-se o
GPMI de dizer que todas as solicitações feitas foram atendidas".
Na palestra de 1972, De Nigris disse que o GPMI havia encaminhado 61
concorrências das Forças Armadas em 1970 e 66 no ano seguinte.
O empresário mencionou como bom exemplo do intercâmbio com os militares a
venda de 10 mil unidades da "primeira ração racional de combate
totalmente brasileira, com duração de seis meses, à prova de água e
totalmente balanceada".
A primeira década da ditadura instalada pelo golpe de 1964 foi um
período de expansão dos gastos militares. Até 1964, essas despesas não
passavam de 1,7% do PIB (Produto Interno Bruto). Em 1970, elas bateram
um recorde e alcançaram 2,5% do PIB.
Em 1973, o empresário Quirino Grassi
propôs na ESG a criação de um fundo com contribuições de cada
ministério militar para facilitar os negócios com o setor privado. Ele
também pediu incentivos fiscais para "indústrias consideradas
mobilizáveis".
Já era, porém, o início de um período de esfriamento nas relações dos
militares com os empresários. Em 1974, depois do primeiro choque do
petróleo, as despesas totais das Forças Armadas despencaram para 1,3% do
PIB.
O governo Ernesto Geisel, a partir de 1974, foi o momento em que parte
do empresariado começou a se distanciar do regime, lembra o historiador
Marco Napolitano, professor da USP. Em 1979, os gastos das Forças
Armadas ficaram abaixo de 1% do PIB.