ANIMAIS E CIÊNCIA. AS TÉCNICAS NO BRASIL
“Aqui não se tem convívio que
instruir. Sertão. Sabe o senhor : sertão
é onde o pensamento da gente se forma mais
forte do que o poder do lugar. Viver é muito
perigoso”. Vezes infindáveis lemos as
frases de Guimarães Rosa sobre o ermo físico
ou espiritual. Estamos frente à natureza
ameçadora, forte o bastante para amedrontar.
Ela nos apresenta a vida e a morte em cada clareira.
Precisamos produzir, com nossas mãos, instrumentos
para viver um pouco mais, um átimo pelo menos.
Com isto, nosso pensamento eleva-se e domina, durante
tempo limitado é verdade, o espaço,
o lugar. Parece impossível, no Brasil, deixar
o estado de natureza onde os homens são lobos.
Nele, “não se tem convívio que
instruir”. Cada um defende o próprio
corpo e alma, destruindo os demais. Viver é
perigoso. Diz o mesmo personagem de Grande Sertão:
Veredas, “A gente viemos do inferno -nós
todos”. Sem ilusões : “Deveras
se vê que o viver da gente não é
tão cerzidinho assim ?”.
Que outra vista podemos apresentar, numa fala sobre
a técnica, a universidade, a vida nacional,
a não ser o pandemônio brasileiro onde
povos erram conduzidos pela propaganda de elites
alheias ao presente e sofrem o confisco de corpos
e almas, aos milhões ? Dentre os confiscos
mais graves, está o que seqüestra o
futuro da ciência e tecnologia no Brasil,
através dos cortes nos financiamentos da
pesquisa. Gostaria de introduzir em nosso debate
certos pontos teóricos sobre a produção
científica e tecnológica. Somos universitários.
Sem parâmetros de pensamento, perdemos nossa
identidade, reduzimos nossa consciência e
atos à simples recusa ou aplauso dos poderosos
.
Retomo algumas teses enunciadas por Andre Leroi-Gourhan,
um dos maiores etnólogos de nosso tempo,
dedicado ao estudo da origem e desenvolvimento das
artes e dos saberes humanos, desde a pré-história
até o século 20. Como não se
trata de um tratado sobre as teorias de Gourhan,
apenas assinalarei os pontos essenciais de sua análise.
Em Evolução e Técnica, [1]
o autor examina de forma meticulosa o conjunto dos
procedimentos humanos de engendramento, aquisição
ou consumo de saberes Ele expõe o quanto
o campo técnico é determinante, em
última instância, da vida social. E
mostra a existência forjada naquele setor
como sistema onde, dado um traço, todos os
demais se definem, com maior ou menor densidade
e coerência. Todo sistema de saberes e técnicas
ergue-se contra o que desafia os homens desde os
seus primeiros instantes enquanto gênero :
o acaso. Assim, “o processo humano, surgido
dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se
na ordem dos signos, apressado pela indústria
e figurado pelas técnicas da comunicação,
é um processo cumulativo. O passado da espécie
condiciona o futuro da etnia”. [2]
Desse modo, todas as partes do processo tecnológico
e científico foram lentas conquistas da humanidade,
ao longo dos milênios : a postura ereta, a
linguagem, a imaginação, a memória.
Gourhan aceita a idéia de que o aumento de
nosso cérebro vem da solidariedade funcional
entre ele e as mãos. O primeiro ganhou com
a adaptação locomotora, e não
a provocou. Afirma Gourhan: “Tudo se passa
como se o cérebro viesse progressivamente
ocupar os territórios anteriores, na medida
que eles se liberavam dos constrangimentos mecânicos
da face”[3]. Cede o prognatismo, o qual diminui
progressivamente “em coesão estreita
com a base de sustento do edifício craniano”.Com
a regressão dentária, segue-se a expansão
cerebral. Numa frase sintética, mas viva
: “somos inteligentes porque ficamos de pé.
Também por este motivo, nossa mão
pode segurar e transformar”. E como nos erguemos?
Por adaptação. Este é o traço
constante no processo evolutivo. Comenta o filósofo
Michel Guerin : “o técnico comporta-se
frente à matéria, que ele ataca, em
função de certos meios de atividade,
do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu
meio”. Assim, só há produção
para o ente vivo, para a técnica, para as
sociedades, sob constrangimento. A evolução
transforma este controle em tendência adquirida
pela espécie. Todas as faculdades mobilizadas
pelo cérebro e pelas mãos, durante
milênios, tornam-se algo próprio, tendências
inconscientes mas ativas nas sociedades humanas.
As teses de Gourhan têm um imenso pretérito
de reflexões atrás de si. De Aristóteles
até Hegel, chegando a Marx e aos antropólogos
modernos é uma constante a reflexão
sobre o elo entre a capacidade mental e as mãos,
entre ciência e técnica. Críticos
do pensamento ocidental, como Heidegger, enxergam
na técnica a presença da metafísica
que aprisionou o ser humano, exilando-o do Ser.
Não sigo esta vertente do pensamento, apenas
a indico pela sua valorização negativa
da técnica. Adepto das Luzes e da ciência,
eu valorizo positivamente as artes, as técnicas,
os saberes científicos.
As mãos, pensam os filósofos do ocidente,
constituem o primeiro instrumento que abre para
o homem o convívio com a natureza e com seus
iguais, ou o conduz para a guerra permanente, tanto
contra o cosmos quanto no interior do coletivo humano.
As mãos podem seguir direções
as mais diversas. Se ignorarmos Platão, o
grande cantor do engendramento mecânico do
universo e da política (a República
é autêntico projeto de certa máquina
para se viver coletivamente) vemos, em Aristóteles,
no De partibus animalium , que o homem, porque é
o mais inteligente dos animais, possui mão.
Esta é polimorfa e multi-funcional, sua técnica
é politécnica. “A mão
parece bem ser não um instrumento, mas muitos,
como se ela fosse um instrumento que representa
muitos instrumentos” (687 a 20). O homem é
desprovido de roupagem natural, e não possui
nenhuma arma para usar, como força. Enquanto
isto, a natureza dotou os outros animais com uma
arma, mas uma apenas, da qual, aliás, eles
não podem se desfazer, donde a rigidez de
sua conduta : “Eles são forçados
por assim dizer, a manter suas sandálias
para dormir ou para fazer qualquer coisa, e nunca
devem depor a armadura que têm ao redor de
seu corpo, nem mudar a arma que receberam”.
A mão do homem constitui um instrumento que
é em potência vários instrumentos,
um instrumento para se servir de instrumentos. Sua
morfologia lhe permite todas as transformações:
“A mão se torna garra, serra, chifre,
ou lança ou espada” (687 b 3). A mão
tátil, e não apenas a mão motora,
torna-se o símbolo do homem inteligente,
na perfeita análise de G. Romeyer-Dherhey
(Cf.“Voir et toucher. Le problème de
la prééminence d´un sens chez
Aristote”. Révue de Métaphysique
et de Morale 4/1991).
As mãos definem um campo de troca do corpo
humano com a natureza que os demais sentidos não
asseguram integralmente. Elas são estruturadas
fundamentalmente pelo tato. Este sentido, embora
presente em todo o corpo, torna-se mais ativo nas
mãos. No De anima, Aristóteles declara
que o tato é a “sensação
mais precisa no homem”. É pelo tato
que o ser humano ultrapassa os outros animais. “Nos
outros sentidos, o homem se distancia em muito dos
animais, em troca, no tato ele ultrapassa em muito
a precisão dos animais” (De anima).
No elogio das mãos note-se o símile
posto por Aristóteles, entre elas e os instrumentos
de morte, que nos animais constituem apenas um.
No homem, as mãos se diversificam indefinidamente.
Quanto mais precisão das garras, mais inteligência.
Isto pode conduzir à vida, com os instrumentos
que servem ao conhecimento científico, às
artes liberais, ou pode conduzir à morte,
com as lanças, etc. Tool making animal, o
homem reproduz, com engenho e arte, a partir dos
olhos e das mãos, o mundo onde vive ou morre.
Cada homem tem acesso à ciência e à
tecnologia da morte e da vida. No século
18, a doutrina de Aristóteles foi retomada
por vários pensadores das Luzes. "O
sentido da vista é o mais superficial",
diz Diderot na Carta sobre os cegos. Enquanto isto,
o tato seria "o mais profundo e filosófico".
Esta tese é concomitante à busca de
novas técnicas e de sua divulgação,
como fez ainda Denis Diderot na Encyclopédie
raisonné des arts et des métiers.
Junto com o entusiasmo pelas mãos polivalentes,
veio o elogio do tato e a tese de que o conhecimento
técnico e científico constituem conditio
sine qua non para que o povo seja soberano de fato,
e não apenas de direito. Mas o século
18 não acreditou unilateralmente nos benefícios
da arte e da técnica. Ele sabia que desde
o início, ambas podem seguir para campos
diversos e conflitantes, a vida e a morte dos indivíduos
e das coletividades humanas.
Semelhante doutrina é retomada, no século
19, por Hegel para quem “todo ser vivo visto
isoladamente permanece na contradição
de ser para si mesmo como esta unidade fechada,
mas de depender ao mesmo tempo dos outros. A luta
para a solução da contradição
não sai desta procura e continuidade da guerra
permanente". (Lições sobre a
Estética, idem). Na Lógica (Livro
III, 1, B), hegeliana, quando ainda se descreve
o processo vital, o impulso de eliminar toda alteridade
conduz o ser vivo ao choque entre sua interioridade
e o mundo externo, de que depende. O sentimento
deste embate é a dor. "Quando se diz
que não é possível pensar a
contradição, lembremos que ela o é,
entretanto, sobretudo na dor do ser vivo, onde ela
surge como uma existência efetiva". A
violência já se define,pois, no encontro
entre o ente vivo e a natureza. Genérica
dor na geração da vida. A marca dolorosa,
cujo apaziguamento é sempre passageiro, segue
o itinerário humano rumo à cultura,
mundo intelectualizado, "reino animal do espírito".
Hegel discute a posse e mostra que esta, ainda não
pleno direito de propriedade, dá-se através
das garras humanas. A posse, eu a exerço
com as minhas mãos, mas seu domínio
deve ser ampliado. "A mão é este
grande órgão não possuído
por nenhum animal. O que eu pego com ela pode também
se transformar num meio com que eu agarro (greife)
outra coisa" (Lições sobre a
Filosofia do Direito, § 55 e adição).
Aí temos a idéia do conceito, Begriff,
enquanto garra. Dentre os principais instrumentos
para ampliar minha posse e poder sobre os outros,
sublinha Hegel, estão as "forças
mecânicas e as armas".
No século 20, um grande pensador, o premio
Nobel Elias Canetti, no monumento de filosofia política
e de antropologia intitulado Massa e Poder, analisa
detidamente a mão humana, fonte do aperfeiçoamento
animal que produziu o homem e, neste último,
conduz ao convívio e à produção
técnica para a vida e para a morte, na indústria,
no comércio, na guerra. Canetti põe
a imaginação a serviço da captura
da essência dos atos técnicos e da
gênese antropológica. A mão
teria sido produzida pela vida nas árvores.
Sua primeira marca de origem é a separação
do polegar. A constituição vigorosa
daquele dedo, o maior espaço entre ele e
os demais, permite o uso daquilo que, antes, foi
“apenas garra para segurar nos galhos”.
As mãos, com esta ajuda, permitem aos animais
conhecidos como macacos o deslocamento em todas
as direções, nas árvores.
Mas um detalhe é relevante, pensa Canetti.
As mãos, assim liberadas, adquirem um mister
novo. As duas mãos podem fazer a mesma coisa
num só momento. Enquanto uma busca alcançar
o galho seguinte, a outra segura o anterior. Note-se
esta passagem estratégica do tempo: antes,
um ato vem depois do outro. Agora, o sincronismo
permite modificar o movimento no espaço e
no tempo. Isto permite a rapidez nos atos dos animais,
rapidez sincronizada. A mão que segura, não
pode soltar o corpo. Ela adquire, pois, uma tenacidade
inédita. Mas ela precisa soltar o corpo rapidamente,
seguindo a velocidade da outra mão, a que
agarra o próximo galho. “Portanto, é
o soltar com a rapidez de um relâmpago a nova
aptidão que se agrega à mão;
antes a presa nunca era solta, a não ser
sob coerção extrema e de forma pouco
habitual”. Assim pegar e soltar se sucedem,
e conferem aos macacos”a leveza que tanto admiramos
neles”.
Nós conservamos essa propriedade das mãos,
que lhes permite que uma faça sempre o jogo
da outra. E desta função manipulativa
surge, pensa Canetti, o comércio. Nele, enquanto
a mão segura um objeto, a outra é
estendida, cheia de desejo, rumo a ele. “A
alegria difundida e profunda que o homem encontra
no comércio, em parte pode ser explicada
porque perpetua uma de suas mais antigas configurações
de movimento sob a forma de atitude psíquica.
Em nada o homem ainda está tão próximo
do macaco como no comércio”. Mas voltemos,
diz Canetti, a um instante anterior da gênese
do ser humano. Porque as mãos puderam aprender
a agir simultaneamente, em sincronismo, vencendo
as primeiras barreiras da existência diacrônica
? “Nos galhos das árvores a mão
aprendeu um modo de segurar que já não
tinha mais a finalidade alimentar imediata. O caminho
curto e monótono da mão para a boca
foi interrompido desta maneira. Quando o galho se
quebrou na mão, nasceu o porrete (…)
um instrumento com o qual se consegue criar distância.
Assim como a postura ereta jamais perdeu sua característica
patética, da mesma forma o porrete, com todas
as suas transformações, jamais perdeu
sua função primária: como vara
mágica e como cetro, ele se manteve como
atributo de duas importantes formas de poder”.
Essas afirmações de Canetti são
ilustradas num dos mais belos filmes já produzidos,
um poema trágico sobre a técnica e
os saberes humanos. Refiro-me a 2001, uma Odisséia
no Espaço. Nele, se atenuarmos o exagero
evolucionista, percebemos uma rigorosa análise
sobre a invenção do porrete, a sua
passagem para níveis sofisticados de instrumentalização,
a sua permanência enquanto meio, ao mesmo
tempo, de vida e morte. Macacos reunidos mostram
medo. Outro grupo de símios se aproxima e
começa a luta corpo a corpo. De repente um
indivíduo agarra certo osso (não um
galho, como em Canetti) e o bate sobre o corpo macio
de outro. E o mata. O osso, na seqüência
fílmica, é jogado para o alto e surge
uma nave que segue pelo cosmos e cuja forma externa
é a de um fino e elegante porrete. O foco
da máquina de filmar passa para o interior
do meio de transporte, e agora uma caneta, finíssimo
porrete, flutua no ar e depois é recolhida
pela aeromoça. A sombra da guerra entre os
homens vai do início ao final da película.
A cena última, no quarto barroco imaculadamente
branco onde alguém come e bebe, exibe uma
taça de cristal que se quebra e o seu usuário
morre. Na frágil vida humana, do embrião
às mais sofisticadas formas de morar e se
alimentar, a morte é onipresente. Todos os
instrumentos gerados ao longo da diacronia, buscam
afastar o nada e conservar o ser. Na cultura barroca,
sabemos, a morte sempre se instala, em anamorfose,
nas pinturas da vida. Como numa fábula, não
mais das 1001 noites, mas de 2001 anos, ou em tempo
incontável, tudo fazemos para adiar a nossa
execução final enquanto espécie.
Mais do que nunca adquire verdade o enunciado de
Spinoza : “o esforço para conservar
a si mesmo é o único e primeiro fundamento
da virtude” (Conatus sese conservandi primum
et unicum virtutis est fundamentum (Ethica, p. 4,
prop. 22, corolário).
Canetti segue sua exposição e afirma
estar a grandeza das mãos na sua paciência.
“Os processos tranqüilos e compassados
da mão criaram o mundo em que queríamos
viver. O oleiro, cujas mãos sabem como modelar
formas na argila, aparece como o Criador já
no princípio da Bíblia”. Não
sigo todos os passos de Canetti nesta genealogia
do ser humano a partir das modificações
manuais. Ele mostra o nexo entre ela e a palavra,
por intermédio da mímica das mãos.
Sabemos bem que esta via, a passagem da oralidade
à expressão manual, e desta às
mais esplêndidas encenações
teatrais, foi tema explorado por Luciano de Samosata,
no escrito De saltatione, retomado no século
18 por Diderot, o campeão das técnicas,
das artes e do teatro, nas Conversas sobre o flho
Natural. Em meu livro, Silêncio e Ruído,
a sátira em Denis Diderot, analiso este aspecto
com detalhes.
Canetti termina o exame desse tema recordando a
inocência dos atos digitais, a sua facilidade
para nós, homens. Esta facilidade é
fonte de nossos progressos técnicos, mas
ao mesmo tempo ela permite um descuido com as conseqüências
destas mesmas progressões. A mão ágil,
não opera de imediato tendo em vista matar
e pegar. Ela se transformou num instrumento puramente
mecânico e as suas invenções
têm esta marca. Por isto ela é perigosa,
“o que ela provoca aparentemente diz respeito
apenas às mãos, à sua agilidade
e capacidade de realização, à
sua inócua utilidade. Em qualquer momento
em que esta mania mecânica de destruição
das mãos, transformada num complexo sistema
técnico, se associa com a intenção
real de matar, ela fornece a parte automática,
irreflexiva, do processo resultante, o vazio e o
que existe de especialmente inquietante para nós
neste processo; uma vez que ninguém quis
que isto acontecesse, tudo ocorreu como que por
si mesmo”. As considerações extremas
do pensador são desalentadas: “as múltiplas
ramificações deste impulso de destruição
mecânica estão vinculadas à
evolução da tecnologia. Apesar de
o homem ter aprendido a dominar o duro com o duro,
a mão continua sendo para ele a última
instância de tudo isso. A vida independente
da mão teve as mais monstruosas conseqüências.
Ela foi, sob mais de um aspecto, nosso destino”.
(Massa e Poder, trad. Krestan, R. Brasilia, Ed.
Universidade de Brasilia, 1986, pp.233-242.)
Tais amostras de textos filosóficos bastam
para situarmos a importância das teses enunciadas
por Leroi-Gourhan sobre as mãos e a mente.
No entender do etnólogo, a mão encontra-se
na encruzilhada dos meios naturais -a matéria-
e o campo humano. A vida dos homens, em sentido
estrito, começa nas técnicas de fabricação,
aquisição e consumo, ordenando-se
atos que podem ser comuns. Os atos de colher, bater,
cosinhar, humectar, ventilar, levantar por meio
de uma alavanca, aplicam-se a vários processos.
Estes itens todos são examinados no livro
L’ homme et la matière (Paris, Albin
Michel, 1972, pp. 43 e ss). “Os meios elementares
são inicialmente as preensões em diferentes
dispositivos que unem a ação direta
da mão humana, depois as percussões
que caracterizam a ação no ponto de
encontro do utensílio e da matéria;
os elementos que estendem e complementam os efeitos
técnicos da mão humana a saber o fogo,
a água, e o ar. Os utensílios, em
sua parte ativa, são estreitamente solidários
do gesto que os anima: força motriz e transmissão”.
A mão, os gestos, a palavra, a vida em comum.
Esta cadeia segue um ritmo cada vez mais célere,
a cada passo da humanidade no sentido de tatear
as forças da natureza. “Os diferentes
modos de agir empregados pela mão em seu
papel preensor podem se colocar em quatro categorias
de gestos: apertar com os dedos, pinçar entre
os dedos (preensão interdigital), colher
com a mão cheia (preensão digito palmar),
conter nas mãos ajustadas como se fossem
recipientes. Uma das características mais
espantosas da evolução humana é
a liberação do utensílio, a
substituição dos utensílios
naturais por utensílios mais eficazes. Desde
os primeiros testemunhos da atividade técnica,
as ações de martelar, cortar, raspar
se materializam através de utensílios,
mas nada sabemos sobre os substitutos eventuais
da mão na preensão (…) há
uma trintena de milhares de anos, que objetos como
o bastão furado, sugerem a existência
de objetos de preensão, de modo que os exemplos
pertencem praticamente todos aos tempos históricos”.
Assim, a seqüência das mãos para
o cérebro é a via mestra do pensamento.
O retorno, o caminho do cérebro às
mãos, o mundo de instrumentos mecânicos,
com toda a sua progênia eletrônica e
assemelhados, é fundamental em nossa vida
de sociedade humana. Não se define, muito
pelo contrário, a possibilidade de uma ruptura
entre pensamento “puramente teórico”
e a inovação técnica. Ambos
se exigem mutuamente. Para que exista sociedade,
conditio sine qua non é o trabalho que produz,
pela técnica, os instrumentos, a linguagem,
as trocas matrimoniais. Com as mãos surge
o instrumento, marca-se “a fronteira particular
da humanidade, por uma longa transição
durante a qual a sociologia continua a zoologia”.
O instrumento é conseqüência da
mão. “O homem não é um
resultado, ele é um produto, e mesmo seu
produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência,
aproveitar a si mesmo e ao meio”. Deste modo,
a vida social é “uma opção
biológica” estratégica, produzida
pela técnica humana. Isto, para Leroi-Gourhan,
faz a humanidade viver, desde época remota,
já num “meio técnico”, cuja
tendência, cada vez mais, é substituir
o natural. Leroi-Gourhan, não se chamando
Rousseau, nem vendo na técnica o declínio
da natureza humana, sublinha que tanto um meio,
quanto outro, não se excluem, nem definem
uma ruptura inevitável.
Se a sociedade é induzida pelos procedimentos
técnicos, ela, por sua vez, e de modo circular,
é “a força atrativa ... que precipita
o progresso técnico”. Os instrumentos
tomam lugar no prolongamento das condições
biológicas, mesmo desnaturando estas últimas.
Deste modo, inexistem instrumentos e saberes isolados,
como inexistem indivíduos abstraídos
uns dos outros. O primeiro caráter “social
do grupo, é o de ser tenicamente polivalente”.
Sem a solidariedade funcional, impossível
a “passagem da espécie zoológica
à espécie étnica”. Ocorre
uma similitude evolutiva “entre o desenvolvimento
biológico do homem e o desenrolar de suas
virtualidades sociais”. O instrumento está
na base de toda vida social. Deste modo, “a
tecnologia se mantém na zona mediana entre
a biologia e a sociologia, exatamente na linha instável
onde, imperceptivelmente, a espécie se faz
etnia”.
O dado essencial é a matéria a que
se apega o homem, a sua escassez e resistência
que forçam a produção dos órgãos
e dos instrumentos, artifícios humanos. O
homem abre-se para o real por dois setores liberados
de seu corpo: a mão e a face. Por eles, é
possível agarrar e percutir. Os instrumentos
repetem, de modo mediato, estas ações.
Sem instrumentos e sem linguagem, não existe
acúmulo de tendências que permitem
produzir o próprio homem em sociedade. Se
todo homem-animal possui instrumentos, a evolução
dos instrumentos e do homem só interessa
ao homem. “Ele é o único animal
que constitui um meio técnico. Esta evolução,
esta ‘humanização’ do instrumento
depende da linguagem , e se apresenta como fábrica
de instrumentos dotados de linguagem ou memória,
de capacidades simbólicas (programação).
O instrumento e a linguagem fabricam a memória.
Sua convergência dota a humanidade de um capital
tecno-simbólico cuja consequência última
é situar o futuro da espécie fora
dela mesma” (Guerin). Nas palavras de Gourhan:
“O fato material mais espantoso, certamente,
é a ‘liberação’ do
instrumento, mas na realidade, o fato fundamental
é a liberação da palavra, e
esta propriedade única que possui o homem
de colocar sua memória fora de si mesmo,
no organismo social”. Ou seja, sem memória
coletiva, inexiste futuro para o homem enquanto
espécie e também enquanto individuo.
E o que se armazena na lembrança ? “Cada
grupo humano é animado por duas forças
contrárias e, no entanto, conjugadas : uma,
o integra sempre mais nele mesmo, intensifica e
conforta as tendências internas, força
de fechamento e índice de suficiência;
outra, o torna permeável ao exterior, abre-o
para o empréstimo, força de descompactação”.
Estas duas forças definem as bases e os ritmos
de um crescimento técnico dos coletivos humanos.
Elas orientam o processo de face dupla chamado “empréstimo”,
de um lado, e “invenção”,
de outro. Ambos contribuem para a existência
de um todo social autônomo no meio tecnológico
global, com seus matizes e diferenças, devidos
às várias tendências historicamente
adquiridas.
Emprestar instrumentos e sistemas de instrumentos,
saberes e sistemas de saberes de uma outra coletividade
e, ao mesmo tempo, inventar novos instrumentos e
saberes não é algo contraditório.
Pelo contrário, ilusão é imaginar
que um grupo humano possa viver apenas de empréstimo
ou de pura invenção original. Nem
todos os grupos possuem todos os instrumentos e
saberes iguais, ao mesmo tempo. Uns desenvolvem
certos recursos, outros, aumentam sua habilidade
por meio de outros. Dentro do mesmo coletivo, alguns
setores possuem formas diversas de produzir e utilizar
mecanismos, com grandes ou pequenas desigualdades
na forma e nos alvos. Deste modo, há mais
de uma técnica. Esta última, “ou
é politécnica, ou não existe”.
Desse modo, todos os grupos emprestam, e todos são
dotados de força inventiva. “Privilegiar
a invenção em detrimento do empréstimo
seria suprimir a História e a contingência
do que advém”. Por outro lado, ficar
apenas com o empréstimo, significaria “afetar
o grupo com uma passividade total” tornando
o meio inane, por “uma permeabilidade absoluta
à força externa”.Esta, se é
única, torna-se ruinosa para a continuidade
de um povo. Empréstimo e invenção
se temperam, e a sua medida é a necessária
adaptação do grupo às condições
do meio natural e técnico anteriores, postos
diante de indivíduos concretos, trazendo
constrangimentos bio-étnicos a serem dominados,
através de saberes e instrumentos novos,
frutos do empréstimo e da invenção,
para que o coletivo continue existindo. Para isto,
o conceito de fixação é nuclear.
Através da fixação, o meio
anterior -especialmente o técnico- absorve
os empréstimos, tornando-se capaz de inventar.
“O importante no empréstimo” segundo
Gourhan, “não é o objeto que
entra num grupo técnico novo, é o
destino que lhe é dado pelo meio interior”.
Quem empresta “pode utilizar e, no limite,
inventar” (Guerin). Há diferença
entre “ter” um instrumento, ou um saber,
e o “fixar”. Só no segundo caso
“o instrumento é digerido pelo meio,
integrado em seu capital, porque ele é harmônico
com a politécnica pré-existente do
grupo. O conceito de fixação é,
pois, um índice de pertinência”.
O importante não é saber, digamos,
se um povo possui computadores ou carros, ou técnicas
médicas e cirúrgicas avançadas.
Importa, e muito, constatar se ele as fixou, aumentando
a sua força interna, a sua tendência.
Instrumentos separados do sistema, pouco significam
para a sobrevivência de uma coletividade.
Desse modo, não é o par “empréstimo/invenção”
o que mais permite entender como um povo sobrevive
e se amplia, com força biológica e
técnica. O par “fixação/flutuação”
é mais importante, em termos conceituais.
Se a técnica é uma politécnica,
esta é uma técnica fixada. Trata-se
de um sistema. As forjas, por exemplo, no pretérito,
ou os computadores, hoje, não constituem
instrumentos únicos, mas complexos instrumentais
de princípios tecnológicos. “Todos
os meios de ação elementar sobre a
matéria encontram-se, aí, representados”.
Sem a fixar tendências, os coletivos não
continuam sendo autônomos, verdadeiros indivíduos
grupais diante de outros. Mas, segundo Leroi-Gourhan,
de tudo o que ele observou em milênios de
história técnica dos homens, pode-se
dizer que “massas, grupos, indivíduos,
manifestam, com os mesmos constrangimentos, o mesmo
esforço de individualização”.
Se perde a memória e a força de inventar,
se não fixa os empréstimos feitos
de outros povos, produzindo novos instrumentos e
conceitos, os quais, por sua vez, entram de mil
modos em contacto com outros instrumentos e conceitos,
num equilíbrio sempre instável mas
progressivo e de refinamento, em suma, se um povo
é condenado à só consumir os
resultados técnicos dos outros seres coletivos,
ele tende a perder sua individualidade. Com isto,
realmente, ele passa à sua morte passiva.
Deixemos o etnólogo e interroguemos o significado
das atitudes tomadas pelo Estado brasileiro, no
plano da ciência e tecnologia.Não irei,
aqui, fazer uma história das ciências
e das técnicas no Brasil. Basta lembrarmos
que na Colônia, proibidos de inventar e, até
mesmo, de emprestar saberes e técnicas, fomos
condenados ao puro e simples estrativismo do meio
natural. Pedras preciosas, ouro e prata. Depois,
as técnicas mais rudimentares de plantio
e colheita de produtos únicos, sem politecnia
e polivalência. Não por acaso, os donos
do Brasil vetaram fábricas e universidades.
Vivíamos em outros e para os outros, em termos
técnicos. Nossa adaptação ao
meio foi rudimentar se comparada à que se
produziu na Europa no mesmo período. Desenvolvemos,
sobretudo o nosso caipira, técnicas emprestadas
dos índios, para a sobrevivência imediata.
O bonito livro do Prof.Antonio Cândido,Os
Parceiros do Rio Bonito com o qual dialogou o clássico
de Maria Sylvia Carvalho Franco, Homens Livres na
Ordem Escravocrata traz elementos importantes sobre
este prisma. Os chamados “inconfidentes”,
pretendiam, ao mesmo tempo, fundar fábricas
e universidades. Foram esmagados também neste
item.
Com a família real portuguesa no Brasil,
missões científicas e artísticas
aportaram em número maior nestas paragens.
Com isto, bibliotecas e laboratórios toscos,
salvo a biblioteca do Rei, hoje Biblioteca Nacional,
começaram a se formar. Nossos estudantes,
muitos futuros estadistas, foram para a Europa,
formando-se em matérias que não se
restringiam ao direito. O Patriarca da Independência
estudou geologia, mineração e matérias
afins no Velho Mundo. Mas, por força política
e religiosa, nossos institutos de ensino voltaram-se
especialmente para as leis, a medicina, as letras.
No segundo império, tivemos a presença
do ensino politécnico nas escolas militares,
assegurado com hegemonia pelos positivistas. Este
núcleo gerou escolas de engenharia, civil
e militar, com esquadrões castrenses dedicados
à construção de obras públicas
em todo o Brasil. Teóricos como Pereira Barreto,
positivista, foram contra o projeto de instalação,
apresentado em 1881, de uma universidade no Brasil,
recebendo o apoio de muitos pensadores laicos. Cito
um trecho de seu pronunciamento: “é
esse ‘ monstro’ que se quer recriar com
a fundação de uma universidade na
Corte. Nela viverão, lado a lado, escolas
positivas, como a de Medicina, de Ciências
Matemáticas, Físicas e Naturais, escolas
metafísicas como a de Direito,e, em parte,
a de Letras, e até ultramontanas como a de
Teologia. (...) O país precisa, não
dessa instituição de caráter
ambíguo e contraditório, mas sim de
submeter-se às exigências do espírito
moderno. (...) É preciso sacrificar a teologia
e a metafísica e ensinar exclusivamente a
ciência, em estabelecimentos para isso apropriados,
seguindo a tendência geral das nações
civilizadas. Que se criem verdadeiras casas de instrução
superior científica e se abandonem os sonhos
maléficos da universidade”. [4]
Embora com boas razões, a tese positivista
contra a universidade se fundamentava numa atitude
estrita sobre a ciência e a técnica.
Pereira Barreto, por exemplo, aplica à engenharia
uma fé que só pode ser comparada à
que se oferece, hoje, à economia :”os
engenheiros sabem, portanto prevêm. Saber
para prever, a fim de prover, é a fórmula
do pensamento que deve preponderar na educação
do homem moderno”.Este argumento retórico,
exposto em 1901 no Clube de Engenharia, coloca na
mão dos engenheiros a produção
do Brasil enquanto “poderosa nacionalidade”.
O dogmatismo é explícito nos positivistas
: os intelectuais, poder espiritual, acima do povo
ignorante e preso às crendices teológicas
ou metafísicas, devem planejar e manter o
todo societário, porque os cientistas “pensam
pela espécie inteira”. Embora tenha
trazido muitos conhecimentos e técnicas ao
país, o positivismo, com esta atitude de
elite, não contribuiu para fixar socialmente
os saberes.
Se positivistas e católicos conservadores
[5], inimigos fraternos, impediram o empréstimo
e a invenção de novas técnicas
e conceitos em massa, fixando-os na população,
pelo menos eles era contrários ao saber crítico,
de modo aberto e definido. No caso dos liberais,
o problema é mais grave. Seguindo o paradigma
organicista da época, eles buscaram travestir
sua atitude excludente com formulas “científicas”,
extraídas da medicina e da farmacologia.
Deste modo, para um líder do jornal O Estado
de São Paulo , os pretos seriam, e cito diretamente
suas frases, “uma toxina”, definida pela
“massa impura e formidável de dois milhões
de negros subitamente investidos das prerrogativas
constitucionais (...) fazendo descer o nível
da nacionalidade na mesma proporção
da mescla operada”.[6] Com esta visão
foi pensada a Universidade de São Paulo,
produtora de elites acima do povo “impuro”.
A universidade, neste ideário, cumpre no
“organismo social”, o papel do “sistema
nervoso no organismo animal”. Cabe-lhe, além
disto, “restaurar a disciplina na mente popular”.[
7]
Apesar dessas atitudes anti-democráticas,
setores da universidade e dos governos desenvolveram
entre nós a dialética do empréstimo
e da invenção tecnológicas,
buscando fixar tendências. Durante a ditadura
Vargas e o governo JK, houve o esforço para
incentivar as ciências e as técnicas
no Brasil. O contrário ocorreu no governo
Dutra, onde imperou a política consumista
que destruiu nossas reservas monetárias na
importação de instrumentos, sem integrá-los
em sistema. Houve o trabalho importante da indústria
e do comércio: o Sesi, o Sesc e o Senac,
contribuíram para espalhar entre setores
da população procedimentos técnicos,
o que ajudou a formar classes operárias e
trabalhadoras com bons conhecimentos e treino para
assumir novos saberes. Mas o que resultou de nossa
crônica, elitista e preconceituosa face ao
coletivo maior, foi uma comunidade científica
pequena para as necessidades do País. Mesmo
assim, conseguiu-se, através da pós-graduação,
iniciação científica, pesquisa,
formar um contingente de jovens estudiosos que ajudariam
a fixar,com abrangência social, a capacidade
de empréstimo e de invenção
no Brasil.
Os senhores percebem o porque de minha passagem
pelos enunciados de Leroi-Gourhan, após esta
rápida lembrança de nossa história.
Produzimos um sistema de ciência e tecnologia,
em termos humanos, pequeno para atender a todas
as necessidades de adaptação do povo
brasileiro ao meio tecnológico mundial. Com
isto, a própria adaptação ao
meio natural ficou ameaçada, de modo permanente.
Não é fruto do acaso se nossos sistemas
de saúde pública, educacional, agrário,
destinam-se a poucos entes humanos, deixando os
demais, a grande maioria, sem meios para o empréstimo
de técnicas e saberes, e sem possível
invenção. O máximo conseguido
é distribuir instrumentos, dos quais a massa
ignora os princípios básicos de seu
fabrico. As televisões se apresentam em todos
os cantos do país, ignorando o povo as suas
bases técnicas e científicas e modelos
de produção.Isto, para citar apenas
um exemplo. As mortes permanentes em máquinas
hospitalares, sem que estas possam ser trocadas
por outras, ou pelo menos mantidas, é o lado
mais patético deste desconhecimento, não
apenas da massa, mas de boa parte dos operadores.
E quando se diz conhecimento, um pressuposto é
o gasto que ele requer. Investir em saúde,
educação, ciência e técnica,
não é algo que possa ser visto pelo
ângulo financeiro: investimentos nestes setores
definem, em termos econômicos e antropológicos,
a sobrevivência e a expansão bio-etnológica
de um povo. Sem eles, o que se faz, na verdade,
é condenar o coletivo inteiro à morte
lenta. Os pobres fogem do país, rumo ao Japão,
aos Estados Unidos, à Europa. A classe média,
que ainda possui meios de vida aqui, renova suas
ilusões de superioridade e de sobrevivência
apartada do povo.
Os ricos, em todos os coletivos do mundo, só
têm compromissos com sua própria vida.
Desde tempos imemoriais, eles já estão
globalizados. Em artigo escrito em 1982, na revista
Educação e Sociedade [9] alertei para
o grande erro do populismo acadêmico, o qual
olvidou que o Estado, sobretudo o governo, possui
meios para se reproduzir, formando pessoas em instituições
próprias. As igrejas, idem. Os setores ricos
do povo brasileiro jamais dependeram in totum dos
campi oficiais. Seus filhos são dirigidos,
no Brasil, para setores de ponta das escolas públicas,
confessionais e particulares. Nas públicas,
eles vão para a Politécnica, as Faculdades
de Economia, alguns cursos de medicina. Nas confessionais
e particulares, idem, como no caso da Fundação
Getúlio Vargas. Significativo é o
número dos que se formam em Oxford, Harvard,
MIT, na França, etc. Embora diminutos, estes
corpos servem perfeitamente para reproduzir a fortuna
paterna ou grupal, e também esta abarca conjuntos
pequenos de gente que açambarca o excedente
econômico, as terras, os saberes, o domínio
das línguas estrangeiras, as técnicas
de ponta. Eles servem enquanto “filtro”
na dialética do empréstimo e da invenção.
Bloqueiam, assim, o acesso das grandes massas ao
conhecimento.
Nos Estados Unidos e na Europa também existem
essas elites. Como o diz Thomas R. Dye, autor não
incendiário, “um grande poder, na América
do Norte, se concentra em poucas mãos. Alguns
milhares de indivíduos, fora e acima dos
238 milhões de americanos, decidem sobre
guerra e paz, salários e preços, consumo
e investimento, emprego e produção,
lei e justiça, taxas e lucros, educação
e ensino, saúde e bem estar social, propaganda
e comunicação, vida e lazer”.
[10] Apesar disto, o coletivo norte-americano, desde
o século 19 até hoje, soube emprestar,
e muito bem, de outros povos, técnicas e
conhecimentos, fixando-os em tendências que,
unidas à força física brutal
(das bombas de Hiroshima e Nagasaki à última
e à próxima guerra do Golfo), e somadas
a um protecionismo inédito na história
do comércio mundial, tentou recuperar a economia
americana, ameaçada pelo Japão tecnificado
e seus filhotes, os tigres asiáticos. Se
os americanos tivessem seguido, para si, os conselhos
do Banco Mundial, do FMI, e a grande inteligência
do Ministro Paulo Renato, que prega o fim das universidades
no Brasil, “porque não estamos sob o
modelo de substituição de importações”,
hoje eles estariam na situação japonesa
ou coreana. Estamos naquela situação,
com um óbice : não emprestamos nem
inventamos o bastante para fixar tendências
que nos permitissem emergir da crise estrutural.
Não irei analisar, uma a uma, as recentes
medidas do Executivo federal que prejudicam, a educação,
a ciência e a tecnologia. Os senhores conhecem
todos os números e todas as suas conseqüências
imediatas. Quis ressaltar o fato : danificando a
pós-graduação e as iniciações
científicas, trazendo obstáculos alfandegários
para a importação de instrumentos
e saberes para a pesquisa, impedindo a vinda de
cientistas estrangeiros, e a saída dos nacionais,
o governo estreita ainda mais o filtro entre nosso
povo e os outros, em termos tecnológicos.
O pouco que emprestamos, o pouco que inventamos,
é atacado no seu prisma mais estratégico,
a fixação em tendência. Esta
perda não se recupera com o aumento do índice
Bovespa. Anos de pós-graduação
podem seguir para o nada. Mas eles resgatavam séculos
de atraso. Os estudiosos futuros saberão
o quanto um povo pode resistir, sem instrumentos
próprios, num ambiente técnico e natural
hostil.
Pesquisa recente, coordenada pela professora Helena
Nader, pró-reitora de graduação
da Universidade Federal do Estado de São
Paulo (Unifesp), mostra que pela primeira vez, após
de três décadas de crescimento contínuo,
caiu a participação do Brasil na produção
científica mundial, passando de 1,08%, em
2000 para 0,95% no ano passado, o que representa
uma queda de cerca de 12%. (Cf.jornal O Estado de
São Paulo, 18 de setembro de 2002). A professora
Nader indica, seguindo os índices ISI de
1973 a 2001, que “a produção
brasileira cresce, que o Brasil e o mundo investem
em ciência, mas o nosso país está
investindo menos que os demais". Como salientam
a imprensa e vários outros pesquisadores,
como os ligados diretamente ao MCT, a estimativa
da pró-reitora pode não ser absolutamente
certa. A participação brasileira teria
crescido de 1,33% em 2000 para 1,44% em 2001. Nas
duas versões, entretanto, ressalta o problema
grave da política nacional de C\T: a falta
de recursos materiais. O reitor da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos Henrique
Brito da Cruz julga ser preciso verificar o número
de citações feitas de trabalhos brasileiros,
que demonstram a aceitação e importância
dada pelo meio acadêmico. "O ideal é
fazer uma análise do conjunto. Número
de publicações, de citações,
impacto provocado por elas. Nesse aspecto,vemos
que a produção científica brasileira
ganhou prestígio nos últimos tempos."
Ele admite entretanto, que o setor de ciência
e tecnologia vive um momento delicado. "Agências
de financiamento como o CNPq passam por um problema
de verba que até hoje eu não havia
presenciado". No seu entender, o contingenciamento
de verbas num período em que a pesquisa brasileira
demonstra respeito internacional revela uma necessidade
urgente: "O Brasil ainda não conseguiu
fazer uma conexão entre ciência, tecnologia
e riqueza." Como exemplo, ele afirma que atualmente
empresas no Brasil abrigam 9 mil pessoas na área
da pesquisa. Na Coréia do Sul, onde a população
é menor, esse número chega a 80 mil.
"Precisamos criar um sistema integrado de pesquisa-
produção tecnológica",
afirma. Para que isso seja possível, completa,
o ideal seria que o governo incentivasse medidas
de pesquisa e desenvolvimento.
Já Fernando Galembeck
, professor da Unicamp, pensa que “O quadro
de hoje repete o que conhecemos dos últimos
20 anos, mas tem uma infeliz originalidade: é
a perda de uma singular oportunidade, que não
tem antecedente em toda a história brasileira.
Pela primeira vez, temos no país uma população
de pesquisadores realmente significativa, que
incorpora a cada ano milhares de jovens muito
bem formados, internacionalmente competitivos.
Também pela primeira vez, temos uma convergência
de motivações e de ações
entre os acadêmicos, os empreendedores e
os executores de políticas. Empresários
buscam ativamente nas Universidades os temas e
projetos que moldarão portfólios
futuros de suas empresas, e também buscam
o apoio da já rica (em conteúdo)
ciência brasileira, para resolverem problemas
e gargalos dos portfólios atuais.
Pesquisadores e empreendedores são recebidos
e são ouvidos nas empresas e Universidades,
surgindo cada vez mais casos importantes de trabalho
conjunto, em busca da inovação produtora
de emprego, de riqueza e bem-estar.Nunca antes
vivemos uma tal situação, talvez
por isso mesmo muitas pessoas não consigam
reconhecê-la diante dos seus olhos. Certamente
os que controlam os recursos da República
não a reconhecem.
Estas pessoas não percebem que, se hoje
ainda existem importantes recursos, é porque
o Brasil se tornou inovador em muitos setores
econômicos, graças à sua vigorosa,
embora recente, prática de C&T. Não
fossem casos notáveis como os da soja,
do açúcar e álcool, do petróleo
de águas profundas, das siderúrgicas,
petroquímica e mineração,
da indústria aeronáutica, bem como
a nossa capacidade de atrair empresas de tecnologias
de informação e de outras tecnologias
avançadas, os controladores de boca de
cofre não teriam cofre para controlar.
Por outro lado, se temos hoje uma capacidade de
produzir riquezas, é porque outros controladores
de cofre, no passado, foram lúcidos o suficiente
para fazerem recursos fluírem para as atividades
de ciência e tecnologia.Eles sabiam que
estes recursos eram sementes, que se multiplicariam.
As sementes se multiplicaram, por isso ainda somos
uma nação e ainda podemos aspirar
a termos um futuro.Hoje, o campo está mais
fértil que nunca, e mais do que nunca necessitamos
da colheita dos resultados da ciência, tecnologia
e inovação. Por isso, precisamos
insistir no discurso e nas ações
mobilizadoras, até que os donos do cofre
adquiram um mínimo de senso de estratégia”.
(“Controladores da boca do cofre minam desenvolvimento
da C&T no Brasil,” artigo para o para
o Jornal da Ciência da SBPC, e- mail).
Todos os citados acima,
apesar de suas diferentes posições
e doutrinas, afirmam a carência de recursos
para a produção científica
e a desejável passagem da pesquisa acadêmica
para a indústria. E neste ponto, retomam,
talvez de modo não voluntário, as
teses de Leroi-Gourhan, sobre a passagem imanente
do elemento técnico ao teórico e
vice-versa. Não existe ruptura entre a
produção científica e tecnológica
quando se trata de pensar o processo de humanização
e de socialização. Os dois lados
precisam ser valorizados, de modo que um não
seja obstáculo ao outro. Sob pretexto de
incentivar a inovação tecnológica,
não se pode diminuir os recursos para a
pesquisa de ponta. Mas esta última não
pode atrair para si todos os investimentos do
Estado e da sociedade, em prejuízo da produção.
Sem a pesquisa de ponta, não há
empréstimo. Sem aplicações
técnicas, não ocorre fixação
de tendências.
Que a nossa produtividade científica, apesar
dos poucos investimentos estatais e privados,
mantêm às duras penas o ritmo e progresso,
é algo inegável. No Jornal da Ciência,
a Sra. Anelise Souza, Assessora de Comunicação
do MCT, citando a revista Nature, em número
recente (12\09\2002) indica que o Brasil, com
a Coréia do Sul se destacam pela publicação
de artigos científicos em publicações
indexadas. Segundo dados preliminares do novo
relatório do (ISI), a produção
científica do Brasil cresceu 11% de 2000
para 2001, passando de 9.511 para 10.555 artigos.
A produção mundial, no mesmo período,
apresentou o crescimento de 2,8%, passando de
714.171 para 734.248 artigos. No período
entre 81 e 2000, pelos dados do ISI, o número
de artigos brasileiros publicados em periódicos
científicos internacionais passou de 1.889
(em 81) para 9.511 (em 2000), um crescimento de
403,49%, que coloca o Brasil entre os 17 países
do mundo que mais produzem conhecimento. Esta
conclusão, muito otimista na verdade, recebe
duro golpe quando é lido o artigo do Prof.
Sergio Ferreira, “A inadimplência da
Fapesp” no mesmo número do Jornal
da Ciência. Os termos do título e
o conteúdo do artigo merecem atenção.
Mas fica a pergunta: qual os limites dos recursos
em inovação tecnológica?
Neste instante, considerando-se a crise global
de nossa economia e finanças públicas,
tanto a pesquisa de ponta quanto a aplicação
técnicas estão ameaçadas.
Tal é o cenário. O que podemos fazer
? O primeiro passo, é lutar contra o monopólio
das políticas de C\T exercido pelo Executivo.
Nossa história está centrada na
ditadura do governo sobre os demais setores do
Estado. Legislativo e Judiciário, não
raro, aceitam estas condições, vendendo,
em prol de sua corporação, o direito
de representar os povos e de lhes fazer justiça.
É preciso alertar, dia e noite, de mil
formas, parlamentares e magistrados, sobre o seu
dever de controle sobre o Executivo, qualquer
que seja o seu dirigente. E o setor de C|T é
básico. É tempo de produzir, de
estudar, com profundidade, todas as técnicas
e saberes ao alcance do Brasil. É tempo
de propor e lutar pela autonomia das agências
de fomento à pesquisa e à pós-graduação,
diante dos gabinetes da área econômica.
O CNPq, a Capes,o próprio Ministério
de Ciência e Tecnologia, não podem
mais depender das decisões de uma equipe
que só domina uma técnica, a dos
cortes orçamentários, e o manuseio
do livro caixa, sendo alheia à física,
biologia, matemática, engenharia, educação,
lógica, medicina, direito. É tempo
de luta pela autonomia universitária, fazendo
sentir aos parlamentares a importância estratégica
deste passo.
É tempo, enfim, para a universidade, de
assumir seu nome, sendo ao mesmo tempo universal
e particular, servindo como instrumento eficaz
de aquisição e invenção
de saberes, transmitindo-os em larga escala ao
povo. Isto supõe, inclusive e sobretudo,
produzir instrumentos de conexão entre
o saber acadêmico e a indústria.
A universidade precisa entrar num plano nacional
de ciência e tecnologia que a posicione
como produtora de pesquisas, cujos nexos com laboratórios,
fábricas, etc., sejam os mais eficazes.
Caso contrário, ela estará apenas
colaborando para a morte coletiva, calada, como
os doutores silentes e cúmplices nos regimes
totalitários. Não temos força
física, não ordenamos leis, não
temos o controle do excedente econômico.
Estas são as marcas do poder. Ainda possuímos
autoridade científica e alguma elevação
ética. Bem dizia Riobaldo : “Viver,
é muito perigoso”.Tenhamos dignidade,
pois sem ela não existe conhecimento científico
e moral. Lembremos a frase de Leroi-Gourhan :
“somos inteligentes, porque ficamos de pé”.
Dr.
Roberto Romano (Unicamp)
Fortaleza,
18 de novembro de 2002
Citações
[ 1] Evolution et Technique. Paris, Albin Michel,
1973.
[2] Michel Guerin, “Leroi-Gourhan, notre
Buffon”. Révue de Métaphysique
et de Morale, 2, 1977, página 174. Para
efeito de comodidade, seguirei passo a passo este
comentario de Guerin aos trabalhos de Leroi-Gourhan.
Deste modo, seja em paráfrases, seja diretamente
entre aspas, esta parte de minha exposição
usa diretamente o artigo citado.
[3] Gourhan, Le Geste et la Parole, T.I. Paris,
Albin Michel.
[4] Citado por Ivan Lins, História do Positivismo
no Brasil. SP, CEN, Coleção Brasiliana,
V. 322, página 77.
[5] Não há tempo, nem espaço,
aqui, para discorrer sobre a política da
Igreja Católica diante das ciências
e técnicas modernas. Remeto, para uma análise
desta instituição, para o meu livro,
Brasil: Igreja Contra Estado. SP.Kayrós,
1979.
[6] Citado por Maria Helena Capellato. O Bravo
Matutino. SP.Alfa Ômega Ed. 1983.
[7] Capellato op.cit.. Cf. também, Roberto
Romano, “A Fantasmagoria Romântica”.in
Corpo e Cristal. Marx Romântico. RJ, Guanabara
Koogan Ed., 1985.
[8] “Progressismo e Conservadorismo. Questões
sobre a Universidade”. Republicado em Corpo
e Cristal. Marx Romântico.
[9 ] Who’s Running America ? Englewood Cliffs,
Prentice Hall, 1986, página 1.
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