terça-feira, 3 de junho de 2014

Universidade Estadual do Ceará. VII Semana Universitária, 2002

 CONFERÊNCIAS MAGNAS

ANIMAIS E CIÊNCIA. AS TÉCNICAS NO BRASIL

“Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor : sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso”. Vezes infindáveis lemos as frases de Guimarães Rosa sobre o ermo físico ou espiritual. Estamos frente à natureza ameçadora, forte o bastante para amedrontar. Ela nos apresenta a vida e a morte em cada clareira. Precisamos produzir, com nossas mãos, instrumentos para viver um pouco mais, um átimo pelo menos. Com isto, nosso pensamento eleva-se e domina, durante tempo limitado é verdade, o espaço, o lugar. Parece impossível, no Brasil, deixar o estado de natureza onde os homens são lobos. Nele, “não se tem convívio que instruir”. Cada um defende o próprio corpo e alma, destruindo os demais. Viver é perigoso. Diz o mesmo personagem de Grande Sertão: Veredas, “A gente viemos do inferno -nós todos”. Sem ilusões : “Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim ?”.
Que outra vista podemos apresentar, numa fala sobre a técnica, a universidade, a vida nacional, a não ser o pandemônio brasileiro onde povos erram conduzidos pela propaganda de elites alheias ao presente e sofrem o confisco de corpos e almas, aos milhões ? Dentre os confiscos mais graves, está o que seqüestra o futuro da ciência e tecnologia no Brasil, através dos cortes nos financiamentos da pesquisa. Gostaria de introduzir em nosso debate certos pontos teóricos sobre a produção científica e tecnológica. Somos universitários. Sem parâmetros de pensamento, perdemos nossa identidade, reduzimos nossa consciência e atos à simples recusa ou aplauso dos poderosos .
Retomo algumas teses enunciadas por Andre Leroi-Gourhan, um dos maiores etnólogos de nosso tempo, dedicado ao estudo da origem e desenvolvimento das artes e dos saberes humanos, desde a pré-história até o século 20. Como não se trata de um tratado sobre as teorias de Gourhan, apenas assinalarei os pontos essenciais de sua análise. Em Evolução e Técnica, [1] o autor examina de forma meticulosa o conjunto dos procedimentos humanos de engendramento, aquisição ou consumo de saberes Ele expõe o quanto o campo técnico é determinante, em última instância, da vida social. E mostra a existência forjada naquele setor como sistema onde, dado um traço, todos os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. Todo sistema de saberes e técnicas ergue-se contra o que desafia os homens desde os seus primeiros instantes enquanto gênero : o acaso. Assim, “o processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é um processo cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia”. [2]
Desse modo, todas as partes do processo tecnológico e científico foram lentas conquistas da humanidade, ao longo dos milênios : a postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória. Gourhan aceita a idéia de que o aumento de nosso cérebro vem da solidariedade funcional entre ele e as mãos. O primeiro ganhou com a adaptação locomotora, e não a provocou. Afirma Gourhan: “Tudo se passa como se o cérebro viesse progressivamente ocupar os territórios anteriores, na medida que eles se liberavam dos constrangimentos mecânicos da face”[3]. Cede o prognatismo, o qual diminui progressivamente “em coesão estreita com a base de sustento do edifício craniano”.Com a regressão dentária, segue-se a expansão cerebral. Numa frase sintética, mas viva : “somos inteligentes porque ficamos de pé. Também por este motivo, nossa mão pode segurar e transformar”. E como nos erguemos? Por adaptação. Este é o traço constante no processo evolutivo. Comenta o filósofo Michel Guerin : “o técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Assim, só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma este controle em tendência adquirida pela espécie. Todas as faculdades mobilizadas pelo cérebro e pelas mãos, durante milênios, tornam-se algo próprio, tendências inconscientes mas ativas nas sociedades humanas.
As teses de Gourhan têm um imenso pretérito de reflexões atrás de si. De Aristóteles até Hegel, chegando a Marx e aos antropólogos modernos é uma constante a reflexão sobre o elo entre a capacidade mental e as mãos, entre ciência e técnica. Críticos do pensamento ocidental, como Heidegger, enxergam na técnica a presença da metafísica que aprisionou o ser humano, exilando-o do Ser. Não sigo esta vertente do pensamento, apenas a indico pela sua valorização negativa da técnica. Adepto das Luzes e da ciência, eu valorizo positivamente as artes, as técnicas, os saberes científicos.
As mãos, pensam os filósofos do ocidente, constituem o primeiro instrumento que abre para o homem o convívio com a natureza e com seus iguais, ou o conduz para a guerra permanente, tanto contra o cosmos quanto no interior do coletivo humano. As mãos podem seguir direções as mais diversas. Se ignorarmos Platão, o grande cantor do engendramento mecânico do universo e da política (a República é autêntico projeto de certa máquina para se viver coletivamente) vemos, em Aristóteles, no De partibus animalium , que o homem, porque é o mais inteligente dos animais, possui mão. Esta é polimorfa e multi-funcional, sua técnica é politécnica. “A mão parece bem ser não um instrumento, mas muitos, como se ela fosse um instrumento que representa muitos instrumentos” (687 a 20). O homem é desprovido de roupagem natural, e não possui nenhuma arma para usar, como força. Enquanto isto, a natureza dotou os outros animais com uma arma, mas uma apenas, da qual, aliás, eles não podem se desfazer, donde a rigidez de sua conduta : “Eles são forçados por assim dizer, a manter suas sandálias para dormir ou para fazer qualquer coisa, e nunca devem depor a armadura que têm ao redor de seu corpo, nem mudar a arma que receberam”. A mão do homem constitui um instrumento que é em potência vários instrumentos, um instrumento para se servir de instrumentos. Sua morfologia lhe permite todas as transformações: “A mão se torna garra, serra, chifre, ou lança ou espada” (687 b 3). A mão tátil, e não apenas a mão motora, torna-se o símbolo do homem inteligente, na perfeita análise de G. Romeyer-Dherhey (Cf.“Voir et toucher. Le problème de la prééminence d´un sens chez Aristote”. Révue de Métaphysique et de Morale 4/1991).
As mãos definem um campo de troca do corpo humano com a natureza que os demais sentidos não asseguram integralmente. Elas são estruturadas fundamentalmente pelo tato. Este sentido, embora presente em todo o corpo, torna-se mais ativo nas mãos. No De anima, Aristóteles declara que o tato é a “sensação mais precisa no homem”. É pelo tato que o ser humano ultrapassa os outros animais. “Nos outros sentidos, o homem se distancia em muito dos animais, em troca, no tato ele ultrapassa em muito a precisão dos animais” (De anima).
No elogio das mãos note-se o símile posto por Aristóteles, entre elas e os instrumentos de morte, que nos animais constituem apenas um. No homem, as mãos se diversificam indefinidamente. Quanto mais precisão das garras, mais inteligência. Isto pode conduzir à vida, com os instrumentos que servem ao conhecimento científico, às artes liberais, ou pode conduzir à morte, com as lanças, etc. Tool making animal, o homem reproduz, com engenho e arte, a partir dos olhos e das mãos, o mundo onde vive ou morre. Cada homem tem acesso à ciência e à tecnologia da morte e da vida. No século 18, a doutrina de Aristóteles foi retomada por vários pensadores das Luzes. "O sentido da vista é o mais superficial", diz Diderot na Carta sobre os cegos. Enquanto isto, o tato seria "o mais profundo e filosófico". Esta tese é concomitante à busca de novas técnicas e de sua divulgação, como fez ainda Denis Diderot na Encyclopédie raisonné des arts et des métiers.  
Junto com o entusiasmo pelas mãos polivalentes, veio o elogio do tato e a tese de que o conhecimento técnico e científico constituem conditio sine qua non para que o povo seja soberano de fato, e não apenas de direito. Mas o século 18 não acreditou unilateralmente nos benefícios da arte e da técnica. Ele sabia que desde o início, ambas podem seguir para campos diversos e conflitantes, a vida e a morte dos indivíduos e das coletividades humanas.

Semelhante doutrina é retomada, no século 19, por Hegel para quem “todo ser vivo visto isoladamente permanece na contradição de ser para si mesmo como esta unidade fechada, mas de depender ao mesmo tempo dos outros. A luta para a solução da contradição não sai desta procura e continuidade da guerra permanente". (Lições sobre a Estética, idem). Na Lógica (Livro III, 1, B), hegeliana, quando ainda se descreve o processo vital, o impulso de eliminar toda alteridade conduz o ser vivo ao choque entre sua interioridade e o mundo externo, de que depende. O sentimento deste embate é a dor. "Quando se diz que não é possível pensar a contradição, lembremos que ela o é, entretanto, sobretudo na dor do ser vivo, onde ela surge como uma existência efetiva". A violência já se define,pois, no encontro entre o ente vivo e a natureza. Genérica dor na geração da vida. A marca dolorosa, cujo apaziguamento é sempre passageiro, segue o itinerário humano rumo à cultura, mundo intelectualizado, "reino animal do espírito".
Hegel discute a posse e mostra que esta, ainda não pleno direito de propriedade, dá-se através das garras humanas. A posse, eu a exerço com as minhas mãos, mas seu domínio deve ser ampliado. "A mão é este grande órgão não possuído por nenhum animal. O que eu pego com ela pode também se transformar num meio com que eu agarro (greife) outra coisa" (Lições sobre a Filosofia do Direito, § 55 e adição). Aí temos a idéia do conceito, Begriff, enquanto garra. Dentre os principais instrumentos para ampliar minha posse e poder sobre os outros, sublinha Hegel, estão as "forças mecânicas e as armas".
No século 20, um grande pensador, o premio Nobel Elias Canetti, no monumento de filosofia política e de antropologia intitulado Massa e Poder, analisa detidamente a mão humana, fonte do aperfeiçoamento animal que produziu o homem e, neste último, conduz ao convívio e à produção técnica para a vida e para a morte, na indústria, no comércio, na guerra. Canetti põe a imaginação a serviço da captura da essência dos atos técnicos e da gênese antropológica. A mão teria sido produzida pela vida nas árvores. Sua primeira marca de origem é a separação do polegar. A constituição vigorosa daquele dedo, o maior espaço entre ele e os demais, permite o uso daquilo que, antes, foi “apenas garra para segurar nos galhos”. As mãos, com esta ajuda, permitem aos animais conhecidos como macacos o deslocamento em todas as direções, nas árvores.
Mas um detalhe é relevante, pensa Canetti. As mãos, assim liberadas, adquirem um mister novo. As duas mãos podem fazer a mesma coisa num só momento. Enquanto uma busca alcançar o galho seguinte, a outra segura o anterior. Note-se esta passagem estratégica do tempo: antes, um ato vem depois do outro. Agora, o sincronismo permite modificar o movimento no espaço e no tempo. Isto permite a rapidez nos atos dos animais, rapidez sincronizada. A mão que segura, não pode soltar o corpo. Ela adquire, pois, uma tenacidade inédita. Mas ela precisa soltar o corpo rapidamente, seguindo a velocidade da outra mão, a que agarra o próximo galho. “Portanto, é o soltar com a rapidez de um relâmpago a nova aptidão que se agrega à mão; antes a presa nunca era solta, a não ser sob coerção extrema e de forma pouco habitual”. Assim pegar e soltar se sucedem, e conferem aos macacos”a leveza que tanto admiramos neles”.
Nós conservamos essa propriedade das mãos, que lhes permite que uma faça sempre o jogo da outra. E desta função manipulativa surge, pensa Canetti, o comércio. Nele, enquanto a mão segura um objeto, a outra é estendida, cheia de desejo, rumo a ele. “A alegria difundida e profunda que o homem encontra no comércio, em parte pode ser explicada porque perpetua uma de suas mais antigas configurações de movimento sob a forma de atitude psíquica. Em nada o homem ainda está tão próximo do macaco como no comércio”. Mas voltemos, diz Canetti, a um instante anterior da gênese do ser humano. Porque as mãos puderam aprender a agir simultaneamente, em sincronismo, vencendo as primeiras barreiras da existência diacrônica ? “Nos galhos das árvores a mão aprendeu um modo de segurar que já não tinha mais a finalidade alimentar imediata. O caminho curto e monótono da mão para a boca foi interrompido desta maneira. Quando o galho se quebrou na mão, nasceu o porrete (…) um instrumento com o qual se consegue criar distância. Assim como a postura ereta jamais perdeu sua característica patética, da mesma forma o porrete, com todas as suas transformações, jamais perdeu sua função primária: como vara mágica e como cetro, ele se manteve como atributo de duas importantes formas de poder”.
Essas afirmações de Canetti são ilustradas num dos mais belos filmes já produzidos, um poema trágico sobre a técnica e os saberes humanos. Refiro-me a 2001, uma Odisséia no Espaço. Nele, se atenuarmos o exagero evolucionista, percebemos uma rigorosa análise sobre a invenção do porrete, a sua passagem para níveis sofisticados de instrumentalização, a sua permanência enquanto meio, ao mesmo tempo, de vida e morte. Macacos reunidos mostram medo. Outro grupo de símios se aproxima e começa a luta corpo a corpo. De repente um indivíduo agarra certo osso (não um galho, como em Canetti) e o bate sobre o corpo macio de outro. E o mata. O osso, na seqüência fílmica, é jogado para o alto e surge uma nave que segue pelo cosmos e cuja forma externa é a de um fino e elegante porrete. O foco da máquina de filmar passa para o interior do meio de transporte, e agora uma caneta, finíssimo porrete, flutua no ar e depois é recolhida pela aeromoça. A sombra da guerra entre os homens vai do início ao final da película. A cena última, no quarto barroco imaculadamente branco onde alguém come e bebe, exibe uma taça de cristal que se quebra e o seu usuário morre. Na frágil vida humana, do embrião às mais sofisticadas formas de morar e se alimentar, a morte é onipresente. Todos os instrumentos gerados ao longo da diacronia, buscam afastar o nada e conservar o ser. Na cultura barroca, sabemos, a morte sempre se instala, em anamorfose, nas pinturas da vida. Como numa fábula, não mais das 1001 noites, mas de 2001 anos, ou em tempo incontável, tudo fazemos para adiar a nossa execução final enquanto espécie. Mais do que nunca adquire verdade o enunciado de Spinoza : “o esforço para conservar a si mesmo é o único e primeiro fundamento da virtude” (Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum (Ethica, p. 4, prop. 22, corolário).
Canetti segue sua exposição e afirma estar a grandeza das mãos na sua paciência. “Os processos tranqüilos e compassados da mão criaram o mundo em que queríamos viver. O oleiro, cujas mãos sabem como modelar formas na argila, aparece como o Criador já no princípio da Bíblia”. Não sigo todos os passos de Canetti nesta genealogia do ser humano a partir das modificações manuais. Ele mostra o nexo entre ela e a palavra, por intermédio da mímica das mãos. Sabemos bem que esta via, a passagem da oralidade à expressão manual, e desta às mais esplêndidas encenações teatrais, foi tema explorado por Luciano de Samosata, no escrito De saltatione, retomado no século 18 por Diderot, o campeão das técnicas, das artes e do teatro, nas Conversas sobre o flho Natural. Em meu livro, Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot, analiso este aspecto com detalhes.
Canetti termina o exame desse tema recordando a inocência dos atos digitais, a sua facilidade para nós, homens. Esta facilidade é fonte de nossos progressos técnicos, mas ao mesmo tempo ela permite um descuido com as conseqüências destas mesmas progressões. A mão ágil, não opera de imediato tendo em vista matar e pegar. Ela se transformou num instrumento puramente mecânico e as suas invenções têm esta marca. Por isto ela é perigosa, “o que ela provoca aparentemente diz respeito apenas às mãos, à sua agilidade e capacidade de realização, à sua inócua utilidade. Em qualquer momento em que esta mania mecânica de destruição das mãos, transformada num complexo sistema técnico, se associa com a intenção real de matar, ela fornece a parte automática, irreflexiva, do processo resultante, o vazio e o que existe de especialmente inquietante para nós neste processo; uma vez que ninguém quis que isto acontecesse, tudo ocorreu como que por si mesmo”. As considerações extremas do pensador são desalentadas: “as múltiplas ramificações deste impulso de destruição mecânica estão vinculadas à evolução da tecnologia. Apesar de o homem ter aprendido a dominar o duro com o duro, a mão continua sendo para ele a última instância de tudo isso. A vida independente da mão teve as mais monstruosas conseqüências. Ela foi, sob mais de um aspecto, nosso destino”. (Massa e Poder, trad. Krestan, R. Brasilia, Ed. Universidade de Brasilia, 1986, pp.233-242.)
Tais amostras de textos filosóficos bastam para situarmos a importância das teses enunciadas por Leroi-Gourhan sobre as mãos e a mente. No entender do etnólogo, a mão encontra-se na encruzilhada dos meios naturais -a matéria- e o campo humano. A vida dos homens, em sentido estrito, começa nas técnicas de fabricação, aquisição e consumo, ordenando-se atos que podem ser comuns. Os atos de colher, bater, cosinhar, humectar, ventilar, levantar por meio de uma alavanca, aplicam-se a vários processos. Estes itens todos são examinados no livro L’ homme et la matière (Paris, Albin Michel, 1972, pp. 43 e ss). “Os meios elementares são inicialmente as preensões em diferentes dispositivos que unem a ação direta da mão humana, depois as percussões que caracterizam a ação no ponto de encontro do utensílio e da matéria; os elementos que estendem e complementam os efeitos técnicos da mão humana a saber o fogo, a água, e o ar. Os utensílios, em sua parte ativa, são estreitamente solidários do gesto que os anima: força motriz e transmissão”.
A mão, os gestos, a palavra, a vida em comum. Esta cadeia segue um ritmo cada vez mais célere, a cada passo da humanidade no sentido de tatear as forças da natureza. “Os diferentes modos de agir empregados pela mão em seu papel preensor podem se colocar em quatro categorias de gestos: apertar com os dedos, pinçar entre os dedos (preensão interdigital), colher com a mão cheia (preensão digito palmar), conter nas mãos ajustadas como se fossem recipientes. Uma das características mais espantosas da evolução humana é a liberação do utensílio, a substituição dos utensílios naturais por utensílios mais eficazes. Desde os primeiros testemunhos da atividade técnica, as ações de martelar, cortar, raspar se materializam através de utensílios, mas nada sabemos sobre os substitutos eventuais da mão na preensão (…) há uma trintena de milhares de anos, que objetos como o bastão furado, sugerem a existência de objetos de preensão, de modo que os exemplos pertencem praticamente todos aos tempos históricos”.
Assim, a seqüência das mãos para o cérebro é a via mestra do pensamento. O retorno, o caminho do cérebro às mãos, o mundo de instrumentos mecânicos, com toda a sua progênia eletrônica e assemelhados, é fundamental em nossa vida de sociedade humana. Não se define, muito pelo contrário, a possibilidade de uma ruptura entre pensamento “puramente teórico” e a inovação técnica. Ambos se exigem mutuamente. Para que exista sociedade, conditio sine qua non é o trabalho que produz, pela técnica, os instrumentos, a linguagem, as trocas matrimoniais. Com as mãos surge o instrumento, marca-se “a fronteira particular da humanidade, por uma longa transição durante a qual a sociologia continua a zoologia”. O instrumento é conseqüência da mão. “O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. Deste modo, a vida social é “uma opção biológica” estratégica, produzida pela técnica humana. Isto, para Leroi-Gourhan, faz a humanidade viver, desde época remota, já num “meio técnico”, cuja tendência, cada vez mais, é substituir o natural. Leroi-Gourhan, não se chamando Rousseau, nem vendo na técnica o declínio da natureza humana, sublinha que tanto um meio, quanto outro, não se excluem, nem definem uma ruptura inevitável.
Se a sociedade é induzida pelos procedimentos técnicos, ela, por sua vez, e de modo circular, é “a força atrativa ... que precipita o progresso técnico”. Os instrumentos tomam lugar no prolongamento das condições biológicas, mesmo desnaturando estas últimas. Deste modo, inexistem instrumentos e saberes isolados, como inexistem indivíduos abstraídos uns dos outros. O primeiro caráter “social do grupo, é o de ser tenicamente polivalente”. Sem a solidariedade funcional, impossível a “passagem da espécie zoológica à espécie étnica”. Ocorre uma similitude evolutiva “entre o desenvolvimento biológico do homem e o desenrolar de suas virtualidades sociais”. O instrumento está na base de toda vida social. Deste modo, “a tecnologia se mantém na zona mediana entre a biologia e a sociologia, exatamente na linha instável onde, imperceptivelmente, a espécie se faz etnia”.
O dado essencial é a matéria a que se apega o homem, a sua escassez e resistência que forçam a produção dos órgãos e dos instrumentos, artifícios humanos. O homem abre-se para o real por dois setores liberados de seu corpo: a mão e a face. Por eles, é possível agarrar e percutir. Os instrumentos repetem, de modo mediato, estas ações. Sem instrumentos e sem linguagem, não existe acúmulo de tendências que permitem produzir o próprio homem em sociedade. Se todo homem-animal possui instrumentos, a evolução dos instrumentos e do homem só interessa ao homem. “Ele é o único animal que constitui um meio técnico. Esta evolução, esta ‘humanização’ do instrumento depende da linguagem , e se apresenta como fábrica de instrumentos dotados de linguagem ou memória, de capacidades simbólicas (programação). O instrumento e a linguagem fabricam a memória. Sua convergência dota a humanidade de um capital tecno-simbólico cuja consequência última é situar o futuro da espécie fora dela mesma” (Guerin). Nas palavras de Gourhan: “O fato material mais espantoso, certamente, é a ‘liberação’ do instrumento, mas na realidade, o fato fundamental é a liberação da palavra, e esta propriedade única que possui o homem de colocar sua memória fora de si mesmo, no organismo social”. Ou seja, sem memória coletiva, inexiste futuro para o homem enquanto espécie e também enquanto individuo.
E o que se armazena na lembrança ? “Cada grupo humano é animado por duas forças contrárias e, no entanto, conjugadas : uma, o integra sempre mais nele mesmo, intensifica e conforta as tendências internas, força de fechamento e índice de suficiência; outra, o torna permeável ao exterior, abre-o para o empréstimo, força de descompactação”. Estas duas forças definem as bases e os ritmos de um crescimento técnico dos coletivos humanos. Elas orientam o processo de face dupla chamado “empréstimo”, de um lado, e “invenção”, de outro. Ambos contribuem para a existência de um todo social autônomo no meio tecnológico global, com seus matizes e diferenças, devidos às várias tendências historicamente adquiridas.
Emprestar instrumentos e sistemas de instrumentos, saberes e sistemas de saberes de uma outra coletividade e, ao mesmo tempo, inventar novos instrumentos e saberes não é algo contraditório. Pelo contrário, ilusão é imaginar que um grupo humano possa viver apenas de empréstimo ou de pura invenção original. Nem todos os grupos possuem todos os instrumentos e saberes iguais, ao mesmo tempo. Uns desenvolvem certos recursos, outros, aumentam sua habilidade por meio de outros. Dentro do mesmo coletivo, alguns setores possuem formas diversas de produzir e utilizar mecanismos, com grandes ou pequenas desigualdades na forma e nos alvos. Deste modo, há mais de uma técnica. Esta última, “ou é politécnica, ou não existe”.

Desse modo, todos os grupos emprestam, e todos são dotados de força inventiva. “Privilegiar a invenção em detrimento do empréstimo seria suprimir a História e a contingência do que advém”. Por outro lado, ficar apenas com o empréstimo, significaria “afetar o grupo com uma passividade total” tornando o meio inane, por “uma permeabilidade absoluta à força externa”.Esta, se é única, torna-se ruinosa para a continuidade de um povo. Empréstimo e invenção se temperam, e a sua medida é a necessária adaptação do grupo às condições do meio natural e técnico anteriores, postos diante de indivíduos concretos, trazendo constrangimentos bio-étnicos a serem dominados, através de saberes e instrumentos novos, frutos do empréstimo e da invenção, para que o coletivo continue existindo. Para isto, o conceito de fixação é nuclear.
Através da fixação, o meio anterior -especialmente o técnico- absorve os empréstimos, tornando-se capaz de inventar. “O importante no empréstimo” segundo Gourhan, “não é o objeto que entra num grupo técnico novo, é o destino que lhe é dado pelo meio interior”. Quem empresta “pode utilizar e, no limite, inventar” (Guerin). Há diferença entre “ter” um instrumento, ou um saber, e o “fixar”. Só no segundo caso “o instrumento é digerido pelo meio, integrado em seu capital, porque ele é harmônico com a politécnica pré-existente do grupo. O conceito de fixação é, pois, um índice de pertinência”. O importante não é saber, digamos, se um povo possui computadores ou carros, ou técnicas médicas e cirúrgicas avançadas. Importa, e muito, constatar se ele as fixou, aumentando a sua força interna, a sua tendência. Instrumentos separados do sistema, pouco significam para a sobrevivência de uma coletividade.
Desse modo, não é o par “empréstimo/invenção” o que mais permite entender como um povo sobrevive e se amplia, com força biológica e técnica. O par “fixação/flutuação” é mais importante, em termos conceituais. Se a técnica é uma politécnica, esta é uma técnica fixada. Trata-se de um sistema. As forjas, por exemplo, no pretérito, ou os computadores, hoje, não constituem instrumentos únicos, mas complexos instrumentais de princípios tecnológicos. “Todos os meios de ação elementar sobre a matéria encontram-se, aí, representados”. Sem a fixar tendências, os coletivos não continuam sendo autônomos, verdadeiros indivíduos grupais diante de outros. Mas, segundo Leroi-Gourhan, de tudo o que ele observou em milênios de história técnica dos homens, pode-se dizer que “massas, grupos, indivíduos, manifestam, com os mesmos constrangimentos, o mesmo esforço de individualização”. Se perde a memória e a força de inventar, se não fixa os empréstimos feitos de outros povos, produzindo novos instrumentos e conceitos, os quais, por sua vez, entram de mil modos em contacto com outros instrumentos e conceitos, num equilíbrio sempre instável mas progressivo e de refinamento, em suma, se um povo é condenado à só consumir os resultados técnicos dos outros seres coletivos, ele tende a perder sua individualidade. Com isto, realmente, ele passa à sua morte passiva.
Deixemos o etnólogo e interroguemos o significado das atitudes tomadas pelo Estado brasileiro, no plano da ciência e tecnologia.Não irei, aqui, fazer uma história das ciências e das técnicas no Brasil. Basta lembrarmos que na Colônia, proibidos de inventar e, até mesmo, de emprestar saberes e técnicas, fomos condenados ao puro e simples estrativismo do meio natural. Pedras preciosas, ouro e prata. Depois, as técnicas mais rudimentares de plantio e colheita de produtos únicos, sem politecnia e polivalência. Não por acaso, os donos do Brasil vetaram fábricas e universidades. Vivíamos em outros e para os outros, em termos técnicos. Nossa adaptação ao meio foi rudimentar se comparada à que se produziu na Europa no mesmo período. Desenvolvemos, sobretudo o nosso caipira, técnicas emprestadas dos índios, para a sobrevivência imediata. O bonito livro do Prof.Antonio Cândido,Os Parceiros do Rio Bonito com o qual dialogou o clássico de Maria Sylvia Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata traz elementos importantes sobre este prisma. Os chamados “inconfidentes”, pretendiam, ao mesmo tempo, fundar fábricas e universidades. Foram esmagados também neste item.
Com a família real portuguesa no Brasil, missões científicas e artísticas aportaram em número maior nestas paragens. Com isto, bibliotecas e laboratórios toscos, salvo a biblioteca do Rei, hoje Biblioteca Nacional, começaram a se formar. Nossos estudantes, muitos futuros estadistas, foram para a Europa, formando-se em matérias que não se restringiam ao direito. O Patriarca da Independência estudou geologia, mineração e matérias afins no Velho Mundo. Mas, por força política e religiosa, nossos institutos de ensino voltaram-se especialmente para as leis, a medicina, as letras. No segundo império, tivemos a presença do ensino politécnico nas escolas militares, assegurado com hegemonia pelos positivistas. Este núcleo gerou escolas de engenharia, civil e militar, com esquadrões castrenses dedicados à construção de obras públicas em todo o Brasil. Teóricos como Pereira Barreto, positivista, foram contra o projeto de instalação, apresentado em 1881, de uma universidade no Brasil, recebendo o apoio de muitos pensadores laicos. Cito um trecho de seu pronunciamento: “é esse ‘ monstro’ que se quer recriar com a fundação de uma universidade na Corte. Nela viverão, lado a lado, escolas positivas, como a de Medicina, de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais, escolas metafísicas como a de Direito,e, em parte, a de Letras, e até ultramontanas como a de Teologia. (...) O país precisa, não dessa instituição de caráter ambíguo e contraditório, mas sim de submeter-se às exigências do espírito moderno. (...) É preciso sacrificar a teologia e a metafísica e ensinar exclusivamente a ciência, em estabelecimentos para isso apropriados, seguindo a tendência geral das nações civilizadas. Que se criem verdadeiras casas de instrução superior científica e se abandonem os sonhos maléficos da universidade”. [4]
Embora com boas razões, a tese positivista contra a universidade se fundamentava numa atitude estrita sobre a ciência e a técnica. Pereira Barreto, por exemplo, aplica à engenharia uma fé que só pode ser comparada à que se oferece, hoje, à economia :”os engenheiros sabem, portanto prevêm. Saber para prever, a fim de prover, é a fórmula do pensamento que deve preponderar na educação do homem moderno”.Este argumento retórico, exposto em 1901 no Clube de Engenharia, coloca na mão dos engenheiros a produção do Brasil enquanto “poderosa nacionalidade”. O dogmatismo é explícito nos positivistas : os intelectuais, poder espiritual, acima do povo ignorante e preso às crendices teológicas ou metafísicas, devem planejar e manter o todo societário, porque os cientistas “pensam pela espécie inteira”. Embora tenha trazido muitos conhecimentos e técnicas ao país, o positivismo, com esta atitude de elite, não contribuiu para fixar socialmente os saberes.
Se positivistas e católicos conservadores [5], inimigos fraternos, impediram o empréstimo e a invenção de novas técnicas e conceitos em massa, fixando-os na população, pelo menos eles era contrários ao saber crítico, de modo aberto e definido. No caso dos liberais, o problema é mais grave. Seguindo o paradigma organicista da época, eles buscaram travestir sua atitude excludente com formulas “científicas”, extraídas da medicina e da farmacologia. Deste modo, para um líder do jornal O Estado de São Paulo , os pretos seriam, e cito diretamente suas frases, “uma toxina”, definida pela “massa impura e formidável de dois milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais (...) fazendo descer o nível da nacionalidade na mesma proporção da mescla operada”.[6] Com esta visão foi pensada a Universidade de São Paulo, produtora de elites acima do povo “impuro”. A universidade, neste ideário, cumpre no “organismo social”, o papel do “sistema nervoso no organismo animal”. Cabe-lhe, além disto, “restaurar a disciplina na mente popular”.[ 7]
Apesar dessas atitudes anti-democráticas, setores da universidade e dos governos desenvolveram entre nós a dialética do empréstimo e da invenção tecnológicas, buscando fixar tendências. Durante a ditadura Vargas e o governo JK, houve o esforço para incentivar as ciências e as técnicas no Brasil. O contrário ocorreu no governo Dutra, onde imperou a política consumista que destruiu nossas reservas monetárias na importação de instrumentos, sem integrá-los em sistema. Houve o trabalho importante da indústria e do comércio: o Sesi, o Sesc e o Senac, contribuíram para espalhar entre setores da população procedimentos técnicos, o que ajudou a formar classes operárias e trabalhadoras com bons conhecimentos e treino para assumir novos saberes. Mas o que resultou de nossa crônica, elitista e preconceituosa face ao coletivo maior, foi uma comunidade científica pequena para as necessidades do País. Mesmo assim, conseguiu-se, através da pós-graduação, iniciação científica, pesquisa, formar um contingente de jovens estudiosos que ajudariam a fixar,com abrangência social, a capacidade de empréstimo e de invenção no Brasil.
Os senhores percebem o porque de minha passagem pelos enunciados de Leroi-Gourhan, após esta rápida lembrança de nossa história. Produzimos um sistema de ciência e tecnologia, em termos humanos, pequeno para atender a todas as necessidades de adaptação do povo brasileiro ao meio tecnológico mundial. Com isto, a própria adaptação ao meio natural ficou ameaçada, de modo permanente.
Não é fruto do acaso se nossos sistemas de saúde pública, educacional, agrário, destinam-se a poucos entes humanos, deixando os demais, a grande maioria, sem meios para o empréstimo de técnicas e saberes, e sem possível invenção. O máximo conseguido é distribuir instrumentos, dos quais a massa ignora os princípios básicos de seu fabrico. As televisões se apresentam em todos os cantos do país, ignorando o povo as suas bases técnicas e científicas e modelos de produção.Isto, para citar apenas um exemplo. As mortes permanentes em máquinas hospitalares, sem que estas possam ser trocadas por outras, ou pelo menos mantidas, é o lado mais patético deste desconhecimento, não apenas da massa, mas de boa parte dos operadores.
E quando se diz conhecimento, um pressuposto é o gasto que ele requer. Investir em saúde, educação, ciência e técnica, não é algo que possa ser visto pelo ângulo financeiro: investimentos nestes setores definem, em termos econômicos e antropológicos, a sobrevivência e a expansão bio-etnológica de um povo. Sem eles, o que se faz, na verdade, é condenar o coletivo inteiro à morte lenta. Os pobres fogem do país, rumo ao Japão, aos Estados Unidos, à Europa. A classe média, que ainda possui meios de vida aqui, renova suas ilusões de superioridade e de sobrevivência apartada do povo.
Os ricos, em todos os coletivos do mundo, só têm compromissos com sua própria vida. Desde tempos imemoriais, eles já estão globalizados. Em artigo escrito em 1982, na revista Educação e Sociedade [9] alertei para o grande erro do populismo acadêmico, o qual olvidou que o Estado, sobretudo o governo, possui meios para se reproduzir, formando pessoas em instituições próprias. As igrejas, idem. Os setores ricos do povo brasileiro jamais dependeram in totum dos campi oficiais. Seus filhos são dirigidos, no Brasil, para setores de ponta das escolas públicas, confessionais e particulares. Nas públicas, eles vão para a Politécnica, as Faculdades de Economia, alguns cursos de medicina. Nas confessionais e particulares, idem, como no caso da Fundação Getúlio Vargas. Significativo é o número dos que se formam em Oxford, Harvard, MIT, na França, etc. Embora diminutos, estes corpos servem perfeitamente para reproduzir a fortuna paterna ou grupal, e também esta abarca conjuntos pequenos de gente que açambarca o excedente econômico, as terras, os saberes, o domínio das línguas estrangeiras, as técnicas de ponta. Eles servem enquanto “filtro” na dialética do empréstimo e da invenção. Bloqueiam, assim, o acesso das grandes massas ao conhecimento.
Nos Estados Unidos e na Europa também existem essas elites. Como o diz Thomas R. Dye, autor não incendiário, “um grande poder, na América do Norte, se concentra em poucas mãos. Alguns milhares de indivíduos, fora e acima dos 238 milhões de americanos, decidem sobre guerra e paz, salários e preços, consumo e investimento, emprego e produção, lei e justiça, taxas e lucros, educação e ensino, saúde e bem estar social, propaganda e comunicação, vida e lazer”. [10] Apesar disto, o coletivo norte-americano, desde o século 19 até hoje, soube emprestar, e muito bem, de outros povos, técnicas e conhecimentos, fixando-os em tendências que, unidas à força física brutal (das bombas de Hiroshima e Nagasaki à última e à próxima guerra do Golfo), e somadas a um protecionismo inédito na história do comércio mundial, tentou recuperar a economia americana, ameaçada pelo Japão tecnificado e seus filhotes, os tigres asiáticos. Se os americanos tivessem seguido, para si, os conselhos do Banco Mundial, do FMI, e a grande inteligência do Ministro Paulo Renato, que prega o fim das universidades no Brasil, “porque não estamos sob o modelo de substituição de importações”, hoje eles estariam na situação japonesa ou coreana. Estamos naquela situação, com um óbice : não emprestamos nem inventamos o bastante para fixar tendências que nos permitissem emergir da crise estrutural.
Não irei analisar, uma a uma, as recentes medidas do Executivo federal que prejudicam, a educação, a ciência e a tecnologia. Os senhores conhecem todos os números e todas as suas conseqüências imediatas. Quis ressaltar o fato : danificando a pós-graduação e as iniciações científicas, trazendo obstáculos alfandegários para a importação de instrumentos e saberes para a pesquisa, impedindo a vinda de cientistas estrangeiros, e a saída dos nacionais, o governo estreita ainda mais o filtro entre nosso povo e os outros, em termos tecnológicos. O pouco que emprestamos, o pouco que inventamos, é atacado no seu prisma mais estratégico, a fixação em tendência. Esta perda não se recupera com o aumento do índice Bovespa. Anos de pós-graduação podem seguir para o nada. Mas eles resgatavam séculos de atraso. Os estudiosos futuros saberão o quanto um povo pode resistir, sem instrumentos próprios, num ambiente técnico e natural hostil.
Pesquisa recente, coordenada pela professora Helena Nader, pró-reitora de graduação da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), mostra que pela primeira vez, após de três décadas de crescimento contínuo, caiu a participação do Brasil na produção científica mundial, passando de 1,08%, em 2000 para 0,95% no ano passado, o que representa uma queda de cerca de 12%. (Cf.jornal O Estado de São Paulo, 18 de setembro de 2002). A professora Nader indica, seguindo os índices ISI de 1973 a 2001, que “a produção brasileira cresce, que o Brasil e o mundo investem em ciência, mas o nosso país está investindo menos que os demais". Como salientam a imprensa e vários outros pesquisadores, como os ligados diretamente ao MCT, a estimativa da pró-reitora pode não ser absolutamente certa. A participação brasileira teria crescido de 1,33% em 2000 para 1,44% em 2001. Nas duas versões, entretanto, ressalta o problema grave da política nacional de C\T: a falta de recursos materiais. O reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos Henrique Brito da Cruz julga ser preciso verificar o número de citações feitas de trabalhos brasileiros, que demonstram a aceitação e importância dada pelo meio acadêmico. "O ideal é fazer uma análise do conjunto. Número de publicações, de citações, impacto provocado por elas. Nesse aspecto,vemos que a produção científica brasileira ganhou prestígio nos últimos tempos." Ele admite entretanto, que o setor de ciência e tecnologia vive um momento delicado. "Agências de financiamento como o CNPq passam por um problema de verba que até hoje eu não havia presenciado". No seu entender, o contingenciamento de verbas num período em que a pesquisa brasileira demonstra respeito internacional revela uma necessidade urgente: "O Brasil ainda não conseguiu fazer uma conexão entre ciência, tecnologia e riqueza." Como exemplo, ele afirma que atualmente empresas no Brasil abrigam 9 mil pessoas na área da pesquisa. Na Coréia do Sul, onde a população é menor, esse número chega a 80 mil. "Precisamos criar um sistema integrado de pesquisa- produção tecnológica", afirma. Para que isso seja possível, completa, o ideal seria que o governo incentivasse medidas de pesquisa e desenvolvimento.

Já Fernando Galembeck , professor da Unicamp, pensa que “O quadro de hoje repete o que conhecemos dos últimos 20 anos, mas tem uma infeliz originalidade: é a perda de uma singular oportunidade, que não tem antecedente em toda a história brasileira. Pela primeira vez, temos no país uma população de pesquisadores realmente significativa, que incorpora a cada ano milhares de jovens muito bem formados, internacionalmente competitivos. Também pela primeira vez, temos uma convergência de motivações e de ações entre os acadêmicos, os empreendedores e os executores de políticas. Empresários buscam ativamente nas Universidades os temas e projetos que moldarão portfólios futuros de suas empresas, e também buscam o apoio da já rica (em conteúdo) ciência brasileira, para resolverem problemas e gargalos dos portfólios atuais.

Pesquisadores e empreendedores são recebidos e são ouvidos nas empresas e Universidades, surgindo cada vez mais casos importantes de trabalho conjunto, em busca da inovação produtora de emprego, de riqueza e bem-estar.Nunca antes vivemos uma tal situação, talvez por isso mesmo muitas pessoas não consigam reconhecê-la diante dos seus olhos. Certamente os que controlam os recursos da República não a reconhecem.

Estas pessoas não percebem que, se hoje ainda existem importantes recursos, é porque o Brasil se tornou inovador em muitos setores econômicos, graças à sua vigorosa, embora recente, prática de C&T. Não fossem casos notáveis como os da soja, do açúcar e álcool, do petróleo de águas profundas, das siderúrgicas, petroquímica e mineração, da indústria aeronáutica, bem como a nossa capacidade de atrair empresas de tecnologias de informação e de outras tecnologias avançadas, os controladores de boca de cofre não teriam cofre para controlar.

Por outro lado, se temos hoje uma capacidade de produzir riquezas, é porque outros controladores de cofre, no passado, foram lúcidos o suficiente para fazerem recursos fluírem para as atividades de ciência e tecnologia.Eles sabiam que estes recursos eram sementes, que se multiplicariam. As sementes se multiplicaram, por isso ainda somos uma nação e ainda podemos aspirar a termos um futuro.Hoje, o campo está mais fértil que nunca, e mais do que nunca necessitamos da colheita dos resultados da ciência, tecnologia e inovação. Por isso, precisamos insistir no discurso e nas ações mobilizadoras, até que os donos do cofre adquiram um mínimo de senso de estratégia”. (“Controladores da boca do cofre minam desenvolvimento da C&T no Brasil,” artigo para o para o Jornal da Ciência da SBPC, e- mail). 

Todos os citados acima, apesar de suas diferentes posições e doutrinas, afirmam a carência de recursos para a produção científica e a desejável passagem da pesquisa acadêmica para a indústria. E neste ponto, retomam, talvez de modo não voluntário, as teses de Leroi-Gourhan, sobre a passagem imanente do elemento técnico ao teórico e vice-versa. Não existe ruptura entre a produção científica e tecnológica quando se trata de pensar o processo de humanização e de socialização. Os dois lados precisam ser valorizados, de modo que um não seja obstáculo ao outro. Sob pretexto de incentivar a inovação tecnológica, não se pode diminuir os recursos para a pesquisa de ponta. Mas esta última não pode atrair para si todos os investimentos do Estado e da sociedade, em prejuízo da produção. Sem a pesquisa de ponta, não há empréstimo. Sem aplicações técnicas, não ocorre fixação de tendências.
Que a nossa produtividade científica, apesar dos poucos investimentos estatais e privados, mantêm às duras penas o ritmo e progresso, é algo inegável. No Jornal da Ciência, a Sra. Anelise Souza, Assessora de Comunicação do MCT, citando a revista Nature, em número recente (12\09\2002) indica que o Brasil, com a Coréia do Sul se destacam pela publicação de artigos científicos em publicações indexadas. Segundo dados preliminares do novo relatório do (ISI), a produção científica do Brasil cresceu 11% de 2000 para 2001, passando de 9.511 para 10.555 artigos. A produção mundial, no mesmo período, apresentou o crescimento de 2,8%, passando de 714.171 para 734.248 artigos. No período entre 81 e 2000, pelos dados do ISI, o número de artigos brasileiros publicados em periódicos científicos internacionais passou de 1.889 (em 81) para 9.511 (em 2000), um crescimento de 403,49%, que coloca o Brasil entre os 17 países do mundo que mais produzem conhecimento. Esta conclusão, muito otimista na verdade, recebe duro golpe quando é lido o artigo do Prof. Sergio Ferreira, “A inadimplência da Fapesp” no mesmo número do Jornal da Ciência. Os termos do título e o conteúdo do artigo merecem atenção. Mas fica a pergunta: qual os limites dos recursos em inovação tecnológica? Neste instante, considerando-se a crise global de nossa economia e finanças públicas, tanto a pesquisa de ponta quanto a aplicação técnicas estão ameaçadas.

Tal é o cenário. O que podemos fazer ? O primeiro passo, é lutar contra o monopólio das políticas de C\T exercido pelo Executivo. Nossa história está centrada na ditadura do governo sobre os demais setores do Estado. Legislativo e Judiciário, não raro, aceitam estas condições, vendendo, em prol de sua corporação, o direito de representar os povos e de lhes fazer justiça. É preciso alertar, dia e noite, de mil formas, parlamentares e magistrados, sobre o seu dever de controle sobre o Executivo, qualquer que seja o seu dirigente. E o setor de C|T é básico. É tempo de produzir, de estudar, com profundidade, todas as técnicas e saberes ao alcance do Brasil. É tempo de propor e lutar pela autonomia das agências de fomento à pesquisa e à pós-graduação, diante dos gabinetes da área econômica. O CNPq, a Capes,o próprio Ministério de Ciência e Tecnologia, não podem mais depender das decisões de uma equipe que só domina uma técnica, a dos cortes orçamentários, e o manuseio do livro caixa, sendo alheia à física, biologia, matemática, engenharia, educação, lógica, medicina, direito. É tempo de luta pela autonomia universitária, fazendo sentir aos parlamentares a importância estratégica deste passo.

É tempo, enfim, para a universidade, de assumir seu nome, sendo ao mesmo tempo universal e particular, servindo como instrumento eficaz de aquisição e invenção de saberes, transmitindo-os em larga escala ao povo. Isto supõe, inclusive e sobretudo, produzir instrumentos de conexão entre o saber acadêmico e a indústria. A universidade precisa entrar num plano nacional de ciência e tecnologia que a posicione como produtora de pesquisas, cujos nexos com laboratórios, fábricas, etc., sejam os mais eficazes. Caso contrário, ela estará apenas colaborando para a morte coletiva, calada, como os doutores silentes e cúmplices nos regimes totalitários. Não temos força física, não ordenamos leis, não temos o controle do excedente econômico. Estas são as marcas do poder. Ainda possuímos autoridade científica e alguma elevação ética. Bem dizia Riobaldo : “Viver, é muito perigoso”.Tenhamos dignidade, pois sem ela não existe conhecimento científico e moral. Lembremos a frase de Leroi-Gourhan : “somos inteligentes, porque ficamos de pé”.

Dr. Roberto Romano (Unicamp) Fortaleza, 18 de novembro de 2002

Citações

[ 1] Evolution et Technique. Paris, Albin Michel, 1973.
[2] Michel Guerin, “Leroi-Gourhan, notre Buffon”. Révue de Métaphysique et de Morale, 2, 1977, página 174. Para efeito de comodidade, seguirei passo a passo este comentario de Guerin aos trabalhos de Leroi-Gourhan. Deste modo, seja em paráfrases, seja diretamente entre aspas, esta parte de minha exposição usa diretamente o artigo citado.
[3] Gourhan, Le Geste et la Parole, T.I. Paris, Albin Michel.
[4] Citado por Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil. SP, CEN, Coleção Brasiliana, V. 322, página 77.
[5] Não há tempo, nem espaço, aqui, para discorrer sobre a política da Igreja Católica diante das ciências e técnicas modernas. Remeto, para uma análise desta instituição, para o meu livro, Brasil: Igreja Contra Estado. SP.Kayrós, 1979.
[6] Citado por Maria Helena Capellato. O Bravo Matutino. SP.Alfa Ômega Ed. 1983.
[7] Capellato op.cit.. Cf. também, Roberto Romano, “A Fantasmagoria Romântica”.in Corpo e Cristal. Marx Romântico. RJ, Guanabara Koogan Ed., 1985.
[8] “Progressismo e Conservadorismo. Questões sobre a Universidade”. Republicado em Corpo e Cristal. Marx Romântico.
[9 ] Who’s Running America ? Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1986, página 1.



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