Ética, violência, vergonha
*Roberto Romano
30 de Maio 2014
Na vida coletiva educada importa sobretudo o uso correto do corpo. Um
significado relevante da ética reside no termo hexis, palavra grega que indica
se o indivíduo tem, ou não, boa postura física ou de caráter. “Caminhar, nadar,
todas as espécies de coisas assim são específicas de sociedades determinadas”,
ensina o antropólogo Marcel Mauss. O mimetismo que reproduz gestos corporais é
adquirido inconscientemente. Mauss notou que as enfermeiras dos Estados Unidos,
ao andar, seguiam o molejo das estrelas hollywoodianas. O modelo do cinema foi
assumido pelas profissionais, delas extraindo a originalidade somática.
A imitação irrefletida de atos incorretos gera sociedades em que vigora
a guerra de todos contra todos. O péssimo uso dos corpos e de seu habitáculo, o
solo comum, transforma o coletivo num inferno. As massas e suas manifestações
que resultam em violência física causam temor. Multidões ou indivíduos, no
entanto, integram o gênero humano. Todos, sem a disciplina educativa, agem fora
do controle racional. Platão aconselha os genitores: se o recém-nascido chora,
verifiquem o corpinho. Caso ele grite no dia posterior, fiquem alertas. Se
berrar sem motivo grave, ignorem: o tirano está se revelando. O filósofo, em As
Leis, diz ser preciso ensinar aos jovens a diferença entre a caça ao animal e a
perseguição contra outros humanos. A tarefa caberia aos pais, professores,
juízes. Nas ruas dominadas por sectários, ou nos shopping centers brasileiros,
existe a tirania ruidosa dos que não respeitam a alteridade. Neles, muitos
indivíduos se juntam para a caçada, desviam atividades legítimas e
democráticas.
Tempos atrás, a pessoa que me seguia em shopping center paulista
advertiu a genitora de uma criança que ali rodopiava aos berros, sem controle.
Em vez de acatar o aviso (dado em tom gentil), a mãe vociferou que o alerta
vinha de alguém ressentido, porque não percebia “tratar-se de uma inocente”.
Segundos depois a inocente esmagou o pé da minha acompanhante e arrancou-lhe a
unha. Foi preciso o socorro dos bombeiros para o curativo. A mãe da criança nem
sequer pediu desculpas. Foi embora sem receber advertência dos seguranças.
No mesmo local, em época natalina, uma dama empurrou o ser humano que me
acompanhava, jogando o indigitado ao chão. “Desculpa (notemos o uso do verbo,
que põe o atingido no papel íntimo ou inferior do tu, sem tratamento
civilizado), eu não vi”. Sem ajudar a vítima, ela rosna impropérios como
réplica aos reclamos: “Sou de família importante, viajo sempre para Nova York e
Paris”, etc. Felizmente, tudo resultou em escoriações menores.
Ver os demais seres humanos integra o primeiro treino de quem usa o
espaço coletivo. “Não vi” é confissão de idiotismo, na semântica da palavra
grega “idiota”: o que percebe apenas o seu interesse pessoal. Pelo menos três outros
casos similares eu teria para relatar.
Se as minhas experiências não bastam, vejam o que aconteceu com a
notável artista plástica Maria Bonomi e uma amiga em restaurante de shopping
paulista. Elas jantavam pacificamente quando, na mesa ao lado, começou o
berreiro. Reclamaram e receberam palavrões seguidos de uma garrafa de cerveja
despejada sobre suas vestes. Os funcionários nada fizeram para impedir a
cacofônica animalidade. Breve a Justiça ouvirá dois indivíduos que urinavam na
frente de todo mundo num shopping brasiliense. Certo professor de educação
física, ao exigir o necessário decoro, foi por eles atacado. Os agressores
causaram-lhe traumatismo craniano e problemas de locomoção. Como sempre, o
agredido é acusado pelos indecentes que estão presos, aguardando o
pronunciamento dos juízes.
Todas esses fatos entram na ordem do que é ruim e feio em termos éticos.
Os gregos indicavam o sentimento de quem se envergonha com as coisas odiosas
usando o termo aidós – pudor, vergonha (cf. Cairn, D.: Aidós, the Psychology
and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature). No Brasil a
vergonha vem dos belos atos, nunca dos horrendos. Os nossos políticos replicam
usos e costumes de uma sociedade que não enrubesce, nas ruas ou nos espaços de
elite.
Egocêntricos, incapazes de ver os demais seres humanos, os desprovidos
de respeito cidadão usam o carro como dirigem seu corpo: desobedecem aos sinais
e limites de velocidade, desafiam leis, ignoram a preferência do pedestre nas
faixas, estacionam em vagas de idosos e deficientes, furam as filas
preferenciais. Donos do mundo, nunca recebem sanções negativas da Justiça.
Preconceituosos, consideram engraçado ferir gays, negros, judeus, nordestinos.
Como integram o grupo dos happy few, ninguém tem coragem de lhes impor decoro e
respeito. Pelo mimetismo, seus costumes atrozes abarcam a sociedade,
transformando-a em alcateia feia e virulenta.
Se muitos indivíduos empurram os outros, ameaçam sua integridade física
em locais que deveriam ser pacíficos, no trânsito a crueza aumenta
exponencialmente, pois os veículos são usados como armas. A covardia impera nas
estradas e ruas do País, aço é movido contra carnes frágeis. Com autorização
para matar por embriaguez ou estímulo de psicotrópicos, dada a leniência dos
poderes públicos, integrantes da sociedade embrutecida matam no Brasil com
enorme facilidade. Ainda não aprenderam a distinção entre caça aos bichos e
caça aos humanos. As estatísticas de “acidentes” aqui trazem números superiores
aos de muitas guerras.
O mimetismo, retomemos, ocorre sem maiores reflexões. Digamos aos
ensandecidos do trânsito que eles são assassinos. Todos ficarão indignados
porque fantasiam para si uma integridade corporal e de caráter (hexis)
inexistente. O Brasil registrou 56.337 homicídios, o maior índice na feitura do
Mapa da Violência. Praticantes do gesto incivil ainda têm a caradura de
alardear nojo dos políticos corruptos, de quem são irmãos siameses. O belo e a
vergonha não vigoram no solo brasileiro.