A12, Padre César Moreira entrevista Roberto Romano
O que é preciso saber sobre as manifestações de rua
Por Pe. César Moreira, 27 de Abril de 2015 às 13h25. Atualizada em 27 de Abril de 2015 às 13h50.
Em junho de 2013, grupos organizados
começaram a ocupar as ruas com o objetivo de protestar contra decisões
de governantes que tornavam a vida das pessoas mais pesada. O ponto em
destaque, naquela oportunidade, era o aumento nas tarifas de ônibus, na
capital paulista. O resultado foi positivo porque os apelos alcançaram
eco tanto no meio da população quanto entre os governantes que trataram
de olhar o fato com certo cuidado.
E se a moda pegasse? E se o
descontentamento com os administradores públicos ganhassem conotação
mais séria? Pois ganharam, tanto que os protestos continuam, têm
organizadores conhecidos e passam a gritar “Fora o PT” e “Fora
Dilma”. Para se ter noção mais exata do fato, conversamos com o
professor Roberto Romano, da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, no Estado de São Paulo.
Foto de:Lula Marques
Padre César Moreira: Qual o validade e o alcance desses protestos? Eles têm futuro?
Professor Roberto Romano
- Não vivemos em democracia sólida no Brasil desde a suposta
descoberta, por Pedro Alvares Cabral. Na Colônia estivemos sob um jugo
político que nos retirava os direitos fundamentais, inclusive, e
sobretudo o de livre manifestação.
Na Inglaterra do século 17, nos EUA e na
França do 18, surgiram movimentos contra o absolutismo que resultaram
nas formas jurídicas modernas. Pois bem, no Brasil tivemos…Dom João 6,
que veio para cá com o firme propósito de criar um Estado contrário a
todas as conquistas democráticas mencionadas.
Durante o Império, sobretudo nas
Regências, os povos brasileiros, de Norte a Sul, tentaram chegar a um
Estado e uma sociedade livres. Eles foram reprimidos pelas armas, pela
censura, perseguições. Na primeira república, pouco existiu em termos
de avanço real rumo à liberdade e à igualdade cidadã. Depois tivemos uma
ditadura feroz na qual, dizia o próprio Getúlio Vargas, “os indivíduos
não têm direitos, só deveres”. Prisões, torturas, exílio, tal era o
destino dos que se levantavam contra a tirania.
Após rápido intervalo democrático,
voltamos ao governo ditatorial, conduzido por civis e militares.
Novamente torturas, censuras, exílio contra quem se ergueu em favor dos
direitos, inclusive parte da Igreja Católica e Reformada.
Assim, a validade dos protestos é
evidente: trata-se de uma forma da soberania popular reconhecida por
todos os democratas modernos, o direito de expressão. “A praça é do
povo”, diz Castro Alves, “como o céu é do condor”. Ou, nos termos do
jurista Norberto Bobbio, a praça é tão essencial quanto os palácios.
Estes últimos erraram muito no Brasil dos últimos tempos, de modo que as
críticas que recebem do povo são válidas, legítimas, necessárias..
Foto de: Tasso Marcelo
Professor da PUC de Campinas (SP) analisa manifestações
populares no Brasil.
populares no Brasil.
Quanto ao alcance, podemos dizer que os
protestos abrangem o país inteiro. Eles não podem ser medidos pelo
número de pessoas na rua, mas pela indignação geral, constatável
inclusive por pesquisas de opinião que põem instituições estatais e
dirigentes políticos em péssimas enrascadas. Os usos sem peias da
propaganda oficial e extra-oficial, as marquetagens sem restrições
éticas, não impedem as manifestações e a revolta popular. Os movimentos
contra a corrupção, mas também em favor de melhores políticas públicas
têm futuro, porque o passado nos legou uma longa fieira de arbítrio,
ineficácia e bandidagem oficial e oficiosa. Quem vive no Brasil
compreende perfeitamente o dito de Santo Agostinho sobre o Estado como
quadrilha organizada para o assalto aos inocentes.
Enquanto os dinheiros públicos seguirem
diretamente para Brasília e de lá só retornarem aos municípios por
tratos e distratos dos governos com oligarcas corrompidos, os serviços
públicos seguirão lastimáveis (mais de 60% dos municípios brasileiros
não têm água e esgoto dignos do nome) e as manifestações ocorrerão, a
cada vez mais fortes. A menos, claro, que tenhamos novas ditaduras de
direita ou esquerda. Deus nos livre desta nossa via costumeira…
Padre César Moreira: A
ampliação da pauta de reivindicações, passando da exigência de serviços
públicos para a troca de governantes, é acertada?
Professor Roberto Romano
- A ampliação da pauta obedece a via natural dos movimentos, autorizada
pelas mais prudentes doutrinas. A filosofia conhece dois tipos de
ilegitimidade: a da origem, que define como ilegítima uma autoridade
ilegalmente ou imoralmente escolhida para o governo. E a do exercício.
Uma pessoa pode ter sido eleita com legitimidade mas, no cargo faz
exatamente o contrário do que prometeu.
Infelizmente, é o caso da atual
presidente do Brasil. Ela não apenas prometeu benesses, como disse, com a
boca de seu marqueteiro João Santana, que seus concorrentes fariam
ajustes financeiros, tirariam direitos dos trabalhadores, arrancariam a
comida da mesa dos pobres. No exercício do cargo, portanto, ela mostra
sinais inquientantes de ilegitimidade. Aliás, não é um ponto a ser
notado na presidência da república apenas, mas na maioria esmagadora dos
que operam o Estado brasileiro.
Basta ver que a terceirização das
atividades fins nas empresas foi aprovada pela Câmara dos Deputados,
inclusive com o voto das “oposições”. E no mesmo tempo, os deputados
aprovam a triplicação do fundo partidário, uma provocação cínica às
massas desorientadas e obrigadas a pagar impostos maiores, taxas
abusivas, e temerosas de uma inflação que já consome parte de seus
alimentos.
Sim, um sistema de governo não opera sem
responsáveis. Em nosso caso é preciso chamar os governantes à
responsabilidade. O Estado não é apenas máquina de poder, é reunião de
seres humanos que buscam mandar. Se querem mandar, devem ser
responsáveis. Nada mais certo, portanto, que todos sejam cobrados, da
presidente ao vereador que vive dos impostos pagos pela cidadania, a
soberana nominal do Brasil que, pouco a pouco, assume o seu status de
soberana real.
Padre César Moreira: O pedido de impeachment tem razão de ser? Como ele deve ser interpretado?
Professor Roberto Romano
- A presidente da república jurou obedecer e aplicar a lei. Existe no
Brasil a lei de responsabilidade fiscal que proíbe uso de finanças
bancárias oficiais para remendar orçamentos estourados e cumprir um
superávit primário de fantasia. Há, pois, motivo para pedir o
impedimento da mandatária. Além disso, existe séria desconfiança da
população sobre a propalada ignorância da governante nos casos revelados
pela operação Lava jato. Boa parte do povo tem certeza de que ela deles
sabia, sobretudo porque dirigiu diretamente o setor durante bom tempo.
Cabe ao povo e aos partidos de oposição,
inicialmente, pedir o impedimento. Se não surgirem evidências maiores
dos fatos delituosos, cabe ao Congresso e ao STF decidir pelo não
encaminhamento da medida. Mas trata-se de um meio legítimo e previsto em
termos constitucionais. Mas talvez nem tal medida seja necessária,
visto que o poder decisório, hoje, encontra-se nas mãos do
vice-presidente da república, do ministro da fazenda, dos presidentes
das casas legislativas.
Como dizem muitas vozes, a Presidente
terceirizou seu mandato. Assim, em vez de um responsável que,
paradoxalmente não responde por seus atos, temos quatro a decidir, sem
ter de prestar contas. François Hotmann, no monumento jurídico que
embasou o Estado democrático moderno, a FrancoGallia, afirma que toda
decisão política deve levar em conta os que arcam com seus custos, os
povos. Gradativamente tal mandamento se torna efetivo no Brasil.
Padre César Moreira: Qual a
possibilidade de haver troca de presidente da República? É real? Faz-se
necessário? Por quais caminhos isso se daria?
Professor Roberto Romano
- Já houve uma diminuição grande da autoridade e do poder decisório da
Presidente. Ela hoje é tutelada pelo PMDB, pelo ministro da Fazenda e
pelos proprietários da Câmara e do Senado. Um impedimento apenas viria
dar sentido formal à sua ausência, pois os atos de Estado seguem sem o
seu consentimento.
Ela diz alto e bom som ser contra a
terceirização em curso, mas é impotente para vetá-la. Ela proclama ser
contra a diminuição da maioridade penal, mas nada pode fazer para a
impedir, e assim por diante. Nos decretos assinados pelo rei francês,
durante o absolutismo, o final sempre repetia : “Tel est notre bon
plaisir” (“tal é a nossa boa vontade”). A frase significava que ele,
rei, não tinha assinado a lei por pressão ilegítima.
A Presidente da República, quando
sancionar a derrocada dos direitos trabalhistas, não poderá dizer “tal é
a nossa boa vontade” porque assinará tangida pelo ditado dos
empresários e dos políticos, e pela imprensa que serve aos seus
interesses.
Padre César Moreira: As últimas
manifestações, sobretudo a de 15 de março, ganharam maior número de
pessoas: isso indica maior conscientização e representatividade? Ou a
hipótese de que o tempo produza efeitos de diluição das iras e dos
desejos pode prevalecer?
Professor Roberto Romano
- Retomo: o número de manifestantes não é critério fundamental.
Importa a equação seguinte: políticas públicas onerosas e corrompidas,
retiram dos municípios água, esgoto, segurança, saúde, educação,
transporte, trabalho, lazer, religião, cultura. Enquanto as políticas
públicas e os impostos forem concentrados em Brasília, o sistema
corrupto funcionará plenamente.
E os movimentos de revolta tenderão a se
manter e a se ampliar. A menos, valha-nos Deus, que nova ditadura,
repito, seja imposta a um povo que sofre com a rapinagem do Estado desde
1500. Ao contrário do mito espalhado pelos próprios corruptos e
autoritários, as ditaduras estão longe de representarem, na História e
no Brasil, um poder honesto. Júlio César, no Império romano, foi um
governante ladrão e corrompido, que aniquilou todas as instituições
política e garantias jurídicas.
O período Vargas poupou muitos corruptos
que voltaram, na figura de seus descendentes, após 1964. Combater a
corrupção com ditaduras é aplicar uma receita que manda pensar veneno
em feridas abertas. O resultado é mais corrupção, só que feita
secretamente devido à censura, às torturas, os exílios. A democracia
ainda é o melhor remédio contra tais males.