sábado, 11 de abril de 2015

Um blog do jornal O Estado de São Paulo

Tea Party à brasileira

Um debate com a nova direita
por Claudia Antunes

Da plateia, o rapaz corpulento, de camisa polo desbotada, jeans e boné, falou ao microfone. “Trabalho com tecnologia e nas horas vagas exorcizo esquerdistas. A gente vai estar enxugando gelo enquanto não fechar a fábrica de idiotas que é o sistema educacional brasileiro”, declarou, sob palmas e gritos de “É isso aí!”. O mediador aproveitou para anunciar que na semana seguinte receberia Miguel Nagib, da ONG Escola sem Partido, “um herói brasileiro”. Kim Kataguiri, um dos três convidados da noite, expressou seu “apoio completo” a Nagib. Renan Ferreira Santos, a seu lado no palco, arrematou: “Você sai do colégio sabendo o que é latifúndio, mas não quanto paga de imposto na sua lancheira.”

O debate acontecia no teatro do shopping Fashion Mall, em São Conrado, no Rio, oito dias depois do protesto de 15 de março, que levou milhares de pessoas às ruas contra o governo de Dilma Rousseff. Kataguiri, 19 anos, e Santos, 31, são fundadores do Movimento Brasil Livre, o MBL, que defende o impeachment de Dilma. Juntamente com o Vem pra Rua e o Revoltados Online, constitui a tríade que convocou a manifestação. Estavam acompanhados de Alexandre Santos, 26 anos, irmão de Renan, produtor dos vídeos do MBL, nos quais Kataguiri encarna um samurai de desenho animado que combate a esquerda com tiradas como “justiça social é outro nome para caridade com dinheiro alheio, ou gozar com o pau dos outros”.

Desde 1º de novembro, quando organizou o primeiro protesto contra Dilma em São Paulo, o trio do MBL já aparecia na tevê e dava entrevistas a jornais e portais. Mas as cerca de oitenta pessoas que compareceram ao teatro não eram curiosos, tampouco o público do shopping, um dos mais luxuosos do Rio. Eram em sua maioria militantes já convertidos, a quem os líderes do MBL – vestidos como profissionais liberais, de camisa sem gravata – deram dicas de como fazer amigos e ganhar adeptos.

Além do exorcista de esquerdistas, na plateia havia gente como um médico revoltado com o Mais Médicos; um senhor que frequenta o Clube Militar; oito jovens de um grupo liberal de Niterói, além de uma pequena empresária do setor de óleo e gás, aplaudida quando anunciou que seus funcionários petistas seriam os primeiros a ser demitidos devido à perda de contratos provocada pelo escândalo da Petrobras. Também estavam lá Felipe Moura Brasil, blogueiro da Veja, e Bernardo Santoro, diretor executivo do Instituto Liberal, o IL, que na campanha presidencial atuou como coach do pastor Everaldo, o candidato do Partido Social Cristão – no debate, o pastor foi elogiado por ter defendido a privatização da Petrobras no Jornal Nacional.

Kim Kataguiri e os irmãos Santos se definem como liberais quanto à economia, a favor do Estado mínimo. Direita para eles é elogio – até fizeram troça de um artigo na Folha de S.Paulo que os chamou de “centro-direita” (“Talvez porque a gente não defenda o golpe militar”). Da imprensa, só pouparam a Veja. Ficaram especialmente irritados porque o Datafolha contou 210 mil pessoas na avenida Paulista em 15 de março – depois que a Polícia Militar anunciara que a multidão havia batido a marca de 1 milhão. Os argumentos do trio pelo impeachment, porém, foram tirados de um artigo e de uma entrevista dos advogados Ives Gandra Martins e Modesto Carvalhosa publicados no jornal paulista.

Renan Santos estudou direito na USP, onde, citando Michel Foucault, disse ter conhecido a “microfísica” do poder petista. Em 2014, atuou com o irmão na campanha de Paulo Batista, candidato a deputado estadual em São Paulo pelo Partido Republicano Progressista. O vídeo em que Batista atacava a USP com seu “raio privatizador” fez sucesso na internet, mas não na urna: com menos de 19 mil votos, ele não se elegeu.

Kim Kataguiri abandonou a faculdade de economia e criou no Facebook a página Liberalismo da Zoeira. Na eleição presidencial, participou com os irmãos Santos da elaboração do vídeo Jornal do Futuro – Danilo Gentili 2018, em que o comediante apresenta um telejornal da República Bolivariana do Brasil – a foice e o martelo aparecem no canto do vídeo, o governo importa policiais cubanos e “Chico Buarque está na França, mas mandou avisar que apoia essas medidas”.

No debate, os fundadores do MBL citaram seu livro-texto, As Seis Lições, de Ludwig von Mises, economista da escola liberal austríaca, antikeynesiano e contrário a qualquer política distributivista (Milton Friedman o considerava intolerante). O livro pode ser baixado no site do IL e do Instituto Ludwig von Mises, ambos parte de um conjunto de centro de estudos de direita que vem ganhando corpo no país. O IL lista como seus parceiros o Instituto Millenium, o Instituto Ordem Livre e o Instituto de Formação de Líderes, que organiza anualmente o Fórum Liberdade e Democracia.
 
Guardadas as proporções, há vários pontos em comum entre o proselitismo ultraconservador no Brasil e nos Estados Unidos – onde a partir dos anos 70, tempo de recessão e crise política que resultou na renúncia de Richard Nixon, uma série de think tanks passou a desafiar o consenso social da Era Roosevelt, iniciada com o New Deal.

Como também vem se esboçando no Brasil, a direita americana ocupa, grosso modo, duas vertentes que se entrecruzam: uma, ligada às igrejas neopentecostais, dá ênfase aos “valores morais”; outra, liberal, prega cortes nos impostos e na previdência social. Os libertários, uma subcorrente desta última, se distinguem por rejeitar qualquer ingerência na vida do indivíduo, defendendo por isso a legalização das drogas. Os propagandistas dessa direita ressurgente tacharam Barack Obama de socialista e muçulmano. Seu subproduto mais recente é o Tea Party, movimento que se tornou influente no Partido Republicano e acaba de lançar seu primeiro pré-candidato à Presidência, o senador pelo Texas Ted Cruz.

Em 2008, o articulista Olavo de Carvalho, guia espiritual da ultradireita, apoiou a tese marginal mas barulhenta dos denominados birthers – a de que Obama teria nascido no Quênia e apresentara uma certidão de nascimento falsa para concorrer à Presidência. Carvalho, que já foi favorável à intervenção militar no Brasil contra uma suposta conspiração comunista, hoje é uma referência para os líderes do MBL. Kataguiri gravou conversas em vídeo com ele, disponíveis na internet. A sintonia entre os rapazes e o veterano se reflete, por exemplo, na posição de que falar de reforma política agora é diversionismo. Para não romper a unidade da direita nem tirar o foco do impeachment, o MBL não se pronuncia sobre temas como aborto, drogas, casamento gay e aquecimento global.

Tal qual a direita americana, a brasileira ataca a ampliação dos direitos sociais que aqui marcou a transição para a Nova República e a Constituição de 1988. Cultiva a aversão à elite acadêmica e vê as universidades como “antros de Marilenas Chauis” – segundo Renan Santos, uma “esquerda estética”, que anda de bicicleta e se entusiasma com as recentes vitórias eleitorais do Podemos, na Espanha, e do Syriza, na Grécia. “Eles estão se sentindo nos anos 60, é meio vintage, podem usar uma bolsa com franjinhas e uma boca de sino”, disse Santos.

Quando um rapaz do grupo de Niterói – vestindo uma camiseta com a inscrição “Menos Marx, mais Mises” – perguntou se valia a pena “tentar mudar o pessoal da Universidade Federal Fluminense”, Santos disse que achava perda de tempo. Mas ressaltou a importância de sair da internet e “tomar a rua”. Deu como exemplo a aula pública com banda de música que o MBL fez no vão do Museu de Arte de São Paulo, em janeiro, para mostrar que “é uma falácia” a reivindicação de passe livre no transporte público. “O pessoal ia lá pensando que era um show de rock e tomava liberalismo na cara”, disse Kataguiri.

Outra característica que a direita brasileira compartilha com a americana é a exploração do ressentimento de setores que se consideram prejudicados pela legislação trabalhista, a rede de proteção social para os pobres, as cotas para negros – também nos Estados Unidos, programas destinados a equalizar as oportunidades foram qualificados de “socialistas”. “O PT te culpa por ser homem, branco ou heterossexual”, disse Renan Santos. “Um empreendedor no Brasil enfrenta a Justiça trabalhista e fiscais da Receita estadual, até piores que os da Federal.”
 
Renan Santos e Kataguiri votaram em Aécio Neves nos dois turnos em 2014, mas demonstram fastio com o PSDB – que, a despeito de ter conclamado seus apoiadores a protestar no dia 15, ainda não aderiu à tese do impeachment. Como na simbiose que ocorreu entre setores republicanos e o Tea Party, o MBL “adoraria obrigar” o PSDB a incorporar suas ideias. “O liberalismo é totalmente minoritário no partido, fizeram privatizações a contragosto.”

Santos reconheceu que os protestos “são úteis até certo ponto” para os tucanos, que falaram em “sangrar” o governo, mas emendou: “Eles não querem que a gente traga o tema do impeachment. O ideal para o PSDB é a gente organizar manifestações todo mês até 2018, reivindicando qualquer outra coisa. Aí o Aécio ou outro candidato deles seria o favorito.”

Questionado se o MBL planejava formar um partido, Santos, ciente do sentimento antipolítica no ar, perguntou ao auditório: “Vocês veem algo de errado na gente lançar candidato?” A resposta foi não. Depois, elogiou o Partido Novo, fundado em 2011 e ainda pleiteando o registro, mas disse que não sabe como a agremiação poderá enfrentar a máquina tucana. Em sua página no Facebook, o Novo defende o fim das estatais, do voto obrigatório e do fundo partidário. Num post do dia 13 de março – quando a CUT e outros grupos fizeram um ato em defesa do governo –, considerou que a rua é para “pessoas livres”, e não para partidos e sindicatos, que devem utilizar “canais próprios de reivindicação”.

Para quem se queixa de que estão “sozinhos, sem ninguém ajudando”, os líderes do MBL demonstraram uma desconcertante autoconfiança. A plateia queria saber como pressionar Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, a pôr o impeachment na pauta. “Dois milhões de pessoas na rua é voto. O Cunha não tem opção”, afirmou Kataguiri. (Havia um novo protesto contra Dilma convocado para 12 de abril.)

O tema da corrupção, dominante nas ruas, surgiu nas perguntas do público. Os rapazes disseram que reduzir o Estado seria uma maneira de “não deixar o dinheiro na mão do bandido”, mas ressaltaram que no momento “o problema não é a corrupção em si”. Alegaram que, enquanto peemedebistas e tucanos embolsariam o roubo, o PT o utilizaria para dominar o Legislativo. “Isso é golpe contra a República, ou Montesquieu estava louco”, disse Renan Santos.

O MBL não se furtou a alimentar a obsessão da plateia contra o Foro de São Paulo, que reúne organizações de esquerda latino-americanas. Mas atribuiu a teorias conspiratórias a especulação de que teria recebido dinheiro dos irmãos Koch, donos de um conglomerado industrial, fundadores do Instituto Cato e financiadores de causas ultraconservadoras nos Estados Unidos. O tema surgiu por causa da publicação de textos de integrantes do grupo Estudantes pela Liberdade, o EPL, no site do MBL. O EPL é a versão nacional do Students for Liberty, bancado pelo Cato.

“A elite branca está pouco se lixando para a gente”, disse Kataguiri. O trio diz que 70% de sua sobrevivência decorrem de microdoações pela internet. O resto vem de “um empresário ou outro”. O MBL não divulga nomes de doadores.

No Facebook, o Brasil Livre tem menos curtidas do que seus parceiros – e concorrentes – na convocação das manifestações. Enquanto o Vem pra Rua se diz acima das ideologias e o Revoltados Online é o mais ostensivamente raivoso, o MBL tem como alvo o público jovem – e os protestos do dia 15 tiveram uma presença forte de pessoas mais velhas e de famílias, mas menos jovens em grupos, como é comum nos atos da esquerda. “A gente criou uma linguagem que mescla diversão, provocação e um pouco de rock and roll, o que confunde o adversário”, disse Renan Santos. Depois dos atos, é preciso cuidar da narrativa. “Em tempos de pau de selfie, o importante não é tanto a história que você faz, mas a história que você conta.”
A estratégia comunicativa visa, segundo os rapazes, superar o estigma de que a direita é “coxa”, pesada e convencional. “Eu vou a festas boas, tenho amigos gays, negros, artistas. Dá para ser legal sem votar no PT ou no PSOL”, disse Alexandre Santos. No fim do debate, a plateia logo se dispersou. Não houve chope nem pizza coletivos. O trio do MBL foi jantar com um grupo restrito em um restaurante no próprio shopping.