quinta-feira, 16 de abril de 2015

El Pais: “Nos últimos 20 anos, homicídios no Brasil superam os da guerra no Vietnã”

Oscar Vilhena | diretor da escola de direito da fgv

“Nos últimos 20 anos, homicídios no Brasil superam os da guerra no Vietnã”

Professor defende integração da polícia, mas adverte que lobby político bloqueia iniciativa


Oscar Vilhena na apresentação do Anuário sobre Segurança Pública. / M. M.

Oscar Vilhena, diretor da DIREITO SP da Fundação Getúlio Vargas (FGV), qualifica constantemente de "preocupantes" os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os números de mortes violentas no Brasil são comparáveis aos dados de países em guerra, lamenta o professor de Direito Constitucional. Vilhena defende uma reestruturação e a integração das polícias para melhorar os indicadores de violência e coloca o desafio nas mãos do Congresso Nacional, embora adverta que os parlamentares não têm levado a questão a sério: "Há um lobby muito forte das próprias polícias, que defendem seus interesses corporativos, que, ao meu ver, não atendem à população".

Pergunta. Qual é o dado que mais lhe preocupa entre os apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública?

Resposta. Inúmeras coisas são preocupantes, mas o que deveria nos mobilizar imediatamente é a questão dos homicídios. O Brasil tem mantido um padrão profundamente preocupante para uma democracia. Especialmente para uma democracia que vem enfrentando outros problemas, como a pobreza, a desigualdade, a educação e, no entanto, na área de segurança, não consegue fazer progressos consistentes. Em alguns Estados, como é o caso de São Paulo, Minas Gerais ou Pernambuco, tem havido uma redução muito substantiva dos homicídios. São Paulo, nos anos 2000, reduz quase 70% dos homicídios, mas isso significa que em outras regiões do Brasil houve um aumento. Esse é um ponto essencial e que tem consequências do ponto de vista de vidas humanas perdidas, que somam mais de um milhão de vítimas nos últimos 20 anos, com consequências econômicas graves. As pessoas estão deixando de investir, seja o grande investidor como o pequeno, porque sabem que há riscos de ser vítima de violência no país.

P. Podemos falar que o Brasil tem um número de homicídios equiparável ao de um país em guerra?
R. Sem dúvida nenhuma. Países como a Colômbia, o México, a África do Sul e o Brasil apresentam números de violência interna que são muitas vezes superiores a conflitos armados. Se nós pegamos dados concretos de mortes no conflito como de Israel com a Palestina, são infinitamente menores. Porém, evidentemente falamos de populações muito pequenas. Mas, em guerras como a do Vietnã, que durou cerca de duas décadas, o número de mortes foi 25% inferior a essa cifra [um milhão de vítimas] apresentada no Brasil ao longo dos últimos 20 anos.

P. Como avalia o fato de que as polícias brasileiras tenham matado em cinco anos mais que as polícias norte-americanas em três décadas?

R. Essa é em alguma medida uma das razões pelas quais a polícia brasileira é tão pouco eficiente. Porque uma polícia eficiente depende, em grande medida, do seu relacionamento com a comunidade, porque será ela quem trará as informações para que a polícia investigue os crimes e os previna. Uma polícia violenta, sem dúvida, afasta a boa informação. Os dados são preocupantes. O relatório traz cerca de 11.000 pessoas que foram mortas em confrontos com a polícia, é um número muito superior ao de outras democracias. Como também é alto o número de policiais mortos. O importante a destacar nesse sentido é que o número de policiais vítimas de homicídio se dá quando eles estão fora de serviço, isto é, quando estão trabalhando, mas não como polícias, senão em casas noturnas, como seguranças privados... Então, isso também demonstra que o emprego como policial não é suficiente para a subsistência dos agentes e os leva a trabalhar em situações que os coloca em enorme vulnerabilidade.

P. Foi a Segurança Pública um assunto suficientemente tratado durante a campanha eleitoral?

R. Me parece que não. A questão da Segurança Pública aparece nas maiores cidades como o problema número um, mas ainda assim ela recebeu um tratamento na campanha eleitoral muito tímido.

P. Quais são os principais desafios do Governo federal na área de Segurança Pública?
A reforma das polícias depende hoje do Congresso, que lamentavelmente não tem levado essa discussão a sério
R. O Governo federal tem um papel relevantíssimo na questão da Segurança Pública, porque a estrutura institucional é determinada pela Constituição brasileira. Um dos elementos que os especialistas indicam e que sobre o que nós temos um certo consenso no Brasil é que nós precisaríamos criar uma polícia de ciclo único. Ou seja, a mesma polícia que participa da prevenção, está na rua, uniformizada, identificada e, quando ocorre o crime, ela participa do processo de investigação. O fluxo de informação entre quem está constantemente na rua e quem faz a investigação é essencial para que você possa chegar a bons resultados, seja de investigação, seja de prevenção. A reforma das polícias depende hoje do Congresso, que lamentavelmente não tem levado essa discussão ao sério. Há um lobby muito forte das próprias polícias, que defendem seus interesses corporativos, que, ao meu ver, não atendem à população.

P. E dos Governos estaduais?

R. No caso dos Governos dos Estados, não precisam ficar esperando que venha a reforma. Os exemplos que nós temos de Pernambuco, em alguma medida de São Paulo, e de Minas Gerais, é que você consegue avançar em uma integração operacional entre as polícias com resultados positivos. Não devemos negligenciar que São Paulo tem um índice de homicídios de menos da metade do índice brasileiro, e essa curva declinante é fruto de um conjunto de esforços: controle de armas, policiamento comunitário, integração das polícias, qualificação do departamento de homicídios... Isso é o que precisa ser feito: gestão.

P. Qual é a relação do brasileiro com a impunidade?
A questão que desestabiliza mais a confiança é a falta de expectativa de que o Poder Judiciário aplicará a lei de maneira imparcial e igualitária
R. Há alguns indicadores que devem chamar nossa atenção. O primeiro deles é que apenas 33% dos brasileiros confiam na polícia e só 32% confiam no Poder Judiciário. Isso é muito preocupante, até porque o Poder Judiciário, em outros países, está mais bem colocado em relação à polícia, mas, no Brasil, demonstra que a aplicação da lei, em geral, não merece a confiança da população. Por que isso ocorre? Há indicadores que apresentam que a Justiça é lenta e que aplica a lei de maneira desigual. A Justiça é lenta em todas as partes do mundo, mas a questão que desestabiliza mais a confiança é a falta de expectativa de que o Poder Judiciário aplicará a lei de maneira imparcial e igualitária. Em relação à polícia, é apontada sua ineficiência. O cidadão pensa que não adianta procurar por ela, porque ela não vai abrir uma investigação e, por outro lado, [critica] a questão da arbitrariedade, da polícia ser violenta e corrupta.

P. É relevante para você que dados tão importantes sobre violência sejam divulgados por uma ONG e não pelo poder público?

R. É lamentável, muito embora esses dados sejam coletados pelas diversas instâncias públicas. No Brasil, há duas fontes de coleta de dados, por exemplo, dos homicídios. Uma vem do Ministério da Justiça e, a outra, do Ministério da Saúde. Apenas há dois anos, nós temos o Sinesp, [um sistema de informação vinculado ao Ministério da Justiça] que organiza esses dados. O que seria preocupante é que o Brasil não tivesse esses números. Hoje, o Estado brasileiro produz esses números, mas evidentemente não divulga, chamando atenção sobre eles.