Malogros educacionais
Maria Sylvia Carvalho Franco - O Estado de S. Paulo
04 Abril 2015 | 16h 00
O Fies nem sequer consegue igualar oportunidades: a maior parte de seus alunos tem renda familiar superior a 20 salários
Pouco se lembra, hoje, nos debates sobre política e
economia brasileiras, o peso da Cepal (Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe), órgão cuja presença foi clara quando alguns
de nossos políticos e intelectuais refugiaram-se no Chile, nos idos do
golpe militar. Esses liames persistiram, com seus projetos e sequelas: a
industrialização corretora da dinâmica dos mercados internacionais, a
substituição de importações, a melhoria de renda e nível de vida, o
mercado interno menos sujeito a importações e de viés exportador, a
produção competitiva, adequada ao comércio externo. Acoplados a esse
mecanismo, preconizou-se a intervenção do Estado, a “cooperação” do
capital internacional (de bancos como BID, FMI, Bird, Banco Mundial), o
progresso tecnológico, embutido na esperança de uma burguesia nacional
inovadora, digna de incentivos e privilégios.
Esse quadro se apoiou na distinção centro/periferia elaborada
por R. Prebish (ligado a bancos). Sua influência exerceu-se desde
Juscelino, era em que, ampliando o nacionalismo populista de Vargas, é
reconhecível a engrenagem cepalina, ampliada pela ditadura. Nessa fase,
governo e empresários, associados, mantiveram o nacionalismo
desenvolvimentista, o recurso ao endividamento e à industrialização e
outras medidas, que levaram ao “milagre brasileiro”. Contudo, a
repressão atalhou o ilusório pacto entre patrões, trabalhadores e
poderes públicos, base do modelo imaginado pela Cepal. O automatismo
concebido em sua engrenagem, com as benesses fluindo de alto a baixo no
sistema, exclui a fortuna e os conflitos políticos, advogando a paz
perene. Desatento ao exercício de poder, o aparato doutrinário da Cepal
moveu-se no melhor dos mundos, qual ideologia de Pangloss, presumindo a
harmonia universal.
São notórios os males do esquema suposto “progressista”, mas
conservador, se não regressivo, contíguo ao formulário neoliberal. Face
aos danos, a Cepal buscou diferenciar-se dos amargos remédios-venenos
que receitara. Admitindo não haver nexo direto entre desenvolvimento
econômico e social, reconhecendo inexistir filtragem de benefícios para
os grupos carentes, o neoestruturalismo dirigiu seu diagnóstico antes
para condições históricas próprias aos países que para a política
econômica, preservando, porém, o serviço da dívida externa. Ao Estado
caberia complementar o jogo do mercado e enfrentar os novos desafios da
industrialização a fim de - superando a lógica de Prebish, sem excluir o
investimento externo - apoiar processos endógenos de acumulação
conjugados à eficiência, ao progresso técnico, ao frugal consumo público
e privado, à disciplina fiscal, aos incentivos e isenções tributárias
cautelosos, à boa distribuição da renda e benefícios sociais, a inserção
vantajosa do País na dinâmica da economia mundial.
Essa política supõe a trama de empresas, educação,
tecnologia, infraestruturas, relações trabalhistas, instituições
públicas, sistema financeiro. Seu desígnio é gerar equidade e justiça
social, garantir a democracia, erradicar a pobreza, impedir a
concentração da riqueza, alavancar empregos, corrigir a informalidade no
mercado de trabalho, redistribuir renda, promover o amparo mútuo entre
governante e governados. Tudo isso implica modernizar o sistema
produtivo, reeditando a imagem de patrões e empregados dinâmicos,
criativos e responsáveis, aptos ao consenso e coordenação (O.Sunkel e G.
Zuleta, Neo-Structuralism Versus Neo-Liberalism, Cepal Review, nº 42 ).
Assistimos à falência dessa quimera no governo Dilma, a qual,
enquanto chefe de Estado,
comprometeu-se com as posições cepalinas. Em
sua Mensagem no 34º Período de Sessões da Cepal (2012), enumera os
feitos de seu governo, coincidentes com aquelas teses: o ataque aos
malefícios implica a “visão integrada para a qual a contribuição da
Cepal tem sido decisiva”. Invocando a exigência moral e econômica
necessária ao crescimento, vangloria-se de ter construído “um mercado de
consumo de massa, com a retirada de milhões de pessoas da miséria e da
pobreza, o que permitiu a criação de um círculo virtuoso em nossa
economia”.
Antes (2010), os laços com a Cepal já eram estreitos: sua
secretária executiva foi a Brasília para, com autoridades federais,
preparar o próximo encontro da Comissão. Nesse contexto, os vínculos
Cepal-Brasil metamorfosearam-se em Cepal-PT, com a designação de Antonio
Prado para secretário executivo adjunto da entidade. Seu currículo
inclui cargos em instituições como o BNDES e a coordenação do programa
de governo de Lula em 2002, conotando “a clara indicação do governo
petista à Cepal” (Sergio Leo, Valor Econômico).
Os compromissos do governo brasileiro com as fórmulas
cepalinas subjazem aos reveses de nossas políticas públicas, tal como na
educação superior. Nesta, as ações político-pedagógicas ajustam-se em
minúcia ao documento Educacion y Conocimiento, Eje de la Transformacion
Productiva con Equidad (CEPAL,1992). Destacarei só uma de suas partes,
suficiente para delinear seu conservadorismo, se não apologia do
capitalismo avançado. Nele, é esmiuçado o ideário acima referido.
Nessa plataforma, o “progresso científico-tecnológico”
sustenta a “transformação das estruturas produtivas” com “progressiva
equidade social”. Esses alvos supõem o treino técnico-científico, vital
à competitividade dos países e ao desempenho democrático. Isso suporia
um consenso nacional abrangendo governos, empresários, universidades,
partidos políticos, parlamentares, investigadores educacionais, igrejas e
sindicatos. No fulcro dessa ordem jaz o mecanismo dos mercados: o
aprendizado instrui para o trabalho produtivo, a tecnologia que o
informa leva à inserção nos negócios globais, a equidade e democracia - a
moderna cidadania - visam ao domínio dos “códigos” da modernidade, o
saber tecnológico. Fecha-se o círculo: a técnica funda a educação e a
última garante a hegemonia da primeira, ambas norteadas pelo trato
mercantil em vários âmbitos, do indivíduo ao cosmos.
O crescimento e competitividade geradores de cidadania
conjugam-se ao nacionalismo e à ética fundadora da expansão econômica
benfazeja. Nessa estratégia, entende-se por nacionalismo a “identidade
cultural dos povos”, com os mores locais operando como articuladores
entre prosperidade econômica e bonança democrática. Assim entendidos, os
valores nacionais projetam as outras cláusulas para o equilíbrio
econômico e a coesão social: competitividade, integração e
descentralização. O argumento que as legitima está em fruir as
diversidades culturais modernas, os novos rumos abertos ao sistema
educativo, mais eficiente se integrado e conduzido por dirigentes
locais, que melhor podem ajustar os programas didáticos à coletividade
tornando-se mais afinados com as necessidades produtivas e as demandas
locais de profissionalização e competitividade. Desse prisma, pedagogia e
políticas públicas destinam-se a otimizar a produção e circulação de
mercadorias, critérios decisivos para o ensino e o trabalho. Novamente
as exigências dos mercados ingurgitam as boas intenções (ou asseguram
seu próprio êxito).
Nesse quesito, o documento cepalino sucumbe à contradição
própria ao liberalismo: garantir a intervenção do Estado até onde
sustente o processo de dominação socioeconômica e recusá-la quando essa
ingerência limite as liberdades pretendidas. Essa antinomia é clara no
projeto de ensino descentralizado e autônomo. De um lado, ele requer o
apoio do Estado provedor, compensando pontos de partida desiguais,
equiparando oportunidades. De outro, os requisitos de eficiência e
autonomia não se confundem com privatização institucional ou
transferência de custos aos agentes privados. De fato, esse “conjunto
essencial de capacitação, de investigação e de desenvolvimento devem
ser realizadas pela sociedade e contar com o patrocínio e o
financiamento público”. Por “sociedade”, entenda-se “escolas privadas”,
restando ao setor governamental despojar o patrimônio público. De fato,
opera-se vasta privatização do ensino superior, arcada pelo Estado.
Os malogros educacionais da administração Dilma ajustam-se às
regras da Cepal. Na intenção, caberia às escolas colocar ao alcance dos
jovens os “códigos da modernidade”; de fato, a elas foi outorgada plena
autonomia, sem controle público, sem exigência de êxito em exames
oficiais para a admissão nos cursos. Os imensos recursos investidos no
Fies, sem fiscalização, tornaram o ensino superior um grande negócio.
Essa magnitude é exemplar na expansão da Ser Educacional, de Pernambuco,
que além da compra da Universidade de Guarulhos (cinco unidades em São
Paulo), visa a multiplicar sua presença nas principais cidades do Norte e
Nordeste (pedido ao MEC de 25 câmpi nessa região) e, mais, tem
interesse no ensino a distância (Valor Econômico).
Grande parte da renda nas escolas privadas vem do lucro sem
risco, garantido pelo Estado. Dadas suas subvenções, o valor das
mensalidades aumentou, o número de estudantes cresceu, os ágios subiram.
(Estadão Dados) Do lado oposto, os juros subsidiados e o dilatado prazo
de pagamento, nos contratos com o governo, mesmo eliminando possível
inadimplência, acarreta largos prejuízos à União. Ganhos privados
versus perdas públicas não seria um cômputo irônico se as escolhas
estudantis recaíssem sobre as áreas ditas estratégicas. Ao revés,
observa-se o desvio dos fins postos para o progresso do conhecimento e
do País - os saberes tecnológicos. Cerca de 1/3 dos contratos do Fies em
2013 foram para direito, administração e enfermagem. Entre as matérias
próximas ao “eixo para o desenvolvimento”, apenas engenharia civil
cresceu (Estadão Dados). Outro malogro vem da clientela assistida pelo
Fies: em vez de suscitar equidade, ou “igualização de oportunidades”, a
maior parte dos alunos subvencionados é de jovens cuja renda familiar é
superior a 20 salários mínimos, aptos a pagar escolas privadas.
A autonomia das universidades particulares refluiu com as
recentes medidas do governo, que freou os repasses financeiros, conteve o
aumento de mensalidades, introduziu condições acadêmicas, definindo
graus de avaliação e coeficientes requeridos nos exames públicos.
Concebidas como empresas mercantis, essas escolas não foram apenas
afetadas nas áreas funcionais e discentes, mas também no circuito
financeiro, nas bolsas, que oscilam face às projeções de sua
lucratividade. Diante das ameaças, seus donos pressionaram o MEC e
conseguiram amenizar as restrições.
Apesar dessas alterações no campo universitário, sua
exploração é um negócio da China: grande volume, no geral baixa
qualidade, salários parcos, lucros altos. Tanto é assim que, com a
redução do aporte federal, o crédito universitário privado ressurgiu
atraindo bancos e outras financiadoras das escolas. Na medida
inversa, as universidades federais foram deixadas à míngua. Também
abandonados foram os estudantes aos quais muito se prometeu. A perversão
do ensino universitário privado não passou despercebida à reflexão
pedagógica: em artigos, teses, blogs especializados, há profusão de
investigações sobre o tema. Não foi por falta de alerta, mas por
dogmatismo ideológico, que o governo federal caiu na própria
armadilha.