quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Gulag Santo, na Irlanda dos santos padres pedófilos e criminosos.

Após reproduzir, abaixo, a notícia do Gulag eclesiástico na Irlanda (cuja existência é conhecida desde longa data, incluindo a hipocrisia fascista dos que dirigem a Igreja nacional irlandesa e a internacional) reproduzo um artigo de 2002, publicado na Folha de São Paulo. É sempre o drama dos inocentes diante dos poderosos, o que piora quando os últimos tem a autoridade divina ao seu lado. É o mesmo espetáculo doloroso: crianças punidas com a perda de órgãos (a mão, sobretudo) nos regimes islâmicos, crianças punidas com o inferno, nos regimes dominados por Suas Reverendíssimas. Diderot alertava: "não se deve transformar Deus num punhal". Eles fazem pior, reduzem o divino ao papel do Carrasco sem nenhuma justiça. Um carrasco enceguecido. Todos os que leram as considerações de Joseph De Maistre sobre o carrasco, sabem a violência daquela imagem, quando aplicada ao poder sem limites.

É por tal motivo que a democracia, livre das tutelas religiosas, permite atenuar o fanatismo e a hipocrisia dos sacerdotes de todo e qualquer ritual ou dogma. Tantum religio potuit suadere malorum (Lucrécio, De rerum natura). Este lamento, "o quanto a religião pode convencer para que se faça o mal", atravessou os tempos e ainda hoje possui plena atualidade. Basta ver os pastores eletrônicos, os padres e pastores que violentam crianças, os conúbios de Suas Excelências Reverendíssimas com as ditaduras e as demagogias, etc. A laicidade do Estado não cura todos os males políticos, longe disso. Mas ela impede que os malefícios sejam praticados em nome de Deus, suprema blasfêmia.

RR


São Paulo, quinta-feira, 21 de maio de 2009



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Irlanda teve "abuso endêmico" cometido por padres e freiras
Estado delegou cuidado de crianças a reformatórios onde eram violentadas, conclui comissão


Apuração levou dez anos entrevistando ex-internos; vítimas se revoltaram com ausência de nomes dos molestadores no texto


DA REDAÇÃO

Comissão instalada há dez anos pelo governo da Irlanda para investigar casos de maus-tratos contra crianças em reformatórios, orfanatos e escolas técnicas geridos pela Igreja Católica concluiu em relatório divulgado ontem que a prática de abusos físicos e sexuais nesses locais era "endêmica".
Segundo o relatório, elaborado por uma comissão liderada pelo juiz Sean Ryan, da Corte Suprema irlandesa, instituições administradas por ordens religiosas da década de 1930 aos anos 90 e encarregadas pelo Estado de cuidar de crianças e jovens infratores ou provenientes de "famílias disfuncionais" impunham um "terror" cotidiano a seus internos.
A reação das vítimas ao tão aguardado relatório foi de revolta, já que nenhum nome dos agressores e molestadores foi divulgado. A omissão é resultado de decisões judiciais conseguidas nos últimos anos pelas ordens religiosas encarregadas pelo Estado de administrar os reformatórios.
Foram entrevistados cerca de mil ex-internos de mais de 200 instituições que, estima-se, receberam cerca de 30 mil pessoas em seis décadas e meia.
O relatório responsabiliza os administradores diretos dos reformatórios -padres e freiras católicos-, seus superiores hierárquicos -bispos e arcebispos- e o Estado irlandês pelos abusos. "Crianças viviam o terror cotidiano de não saber de onde viria a próxima surra", diz o texto.


Fome e humilhações

O documento fala que muitos, com fome, tinham que procurar comida em latas de lixo. Num dos exemplos de maus-tratos e humilhações, é descrito o castigo de um garoto que teve que lamber excrementos da sola do sapato de um padre.
Os responsáveis diretos pela administração dos reformatórios, apurou a comissão, praticavam rotineiramente violências físicas e, em alguns casos, estupraram crianças.
"Quando confrontados com provas de abusos sexuais, a resposta das autoridades religiosas era a transferência do acusado para outros locais, onde, muitas vezes, estavam livres para agir de novo", diz o texto.
O Estado é responsabilizado por não ter impedido os abusos. Quando autoridades eram alertadas sobre os problemas, "mantinham-se em silêncio".
Com a ausência de nomeação dos responsáveis, ninguém deve ser processado com base no documento.
O coordenador do grupo Sobreviventes de Abuso Infantil (Soca, na sigla em inglês), John Kelly, diz ter recebido ligações ontem, ao longo do dia, de vítimas dessas instituições. "Eles sentem que suas feridas foram reabertas a troco de nada. Prometeram-lhes justiça, e agora se sentem traídos."

Muitas das crianças que chegavam a esses reformatórios e escolas administrados pela igreja eram filhos de mães solteiras ou acusados de pequenas infrações.



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A G O S T O D E 2 0 0 2


Fascismo e pecados sexuais.
Roberto Romano


A Igreja enfrenta uma situação nova no mundo todo, sobretudo nos Estados Unidos. A notícia não reside nos atentados cometidos por alguns padres contra crianças e mulheres. Essa prática, desde a noite dos tempos, subsiste na instituição religiosa. Para constatar isso, basta abrir livros idôneos de história.O novo é a consciência jurídica dos religiosos que recusam a tutela civil da hierarquia. Os processos apresentados à Justiça mostram que amadureceu a consciência política dos fiéis. Esta via, a do Estado de Direito, é a mais eficaz para resolver malefícios humanos.

Enganar os leigos tornou-se, desse modo, tarefa muito difícil. Contrabalançando o lado triste dos abusos, esta perspectiva traz esperanças de rumos inauditos, não apenas na igreja, mas no Estado, que possui instituições democráticas.Quando um povo imenso, solto pelo mundo, como o católico, assume os seus direitos e sua maioridade (bendito Kant!), é impossível fazê-lo retornar ao guante de padres ou de líderes seculares.O nó da questão sexual que abala a comunidade religiosa encontra-se, em grande parte, no papel político que ela reserva às mulheres. Quando elas forem mais valorizadas, inclusive no plano sacerdotal, o desequilíbrio afetivo será atenuado entre o clero. Mas os erros nunca serão abolidos.

A pedofilia é um aspecto do horror humano. Existem inumeráveis faces do mal. A catolicidade jamais aceitou o maniqueísmo. Desde Santo Agostinho até os nossos dias, a experiência religiosa mais profunda percebe e tematiza a luta entre bem e mal nos indivíduos, sejam eles padres, militares, políticos, comerciantes, cientistas, juízes, velhos ou moços.Segundo a ortodoxia, o mal é um mistério sem localização limitada, e seu reino é o mundo inteiro. Ninguém o monopoliza, como ninguém pode exibir a posse exclusiva do bem.Os ensinamentos antropológicos que a igreja encerra nos seus meandros doutrinários, a sua aguda percepção da beleza e dos horrores escondidos nas dobras das almas fornecem numerosos exemplos de necessária prudência quando se trata de enfrentar a questão do mal.

A notícia de hoje, no plano dos costumes, é o abuso da inocência infantil. No setor político, temos a ressurreição fascista. Quando a igreja foge da luta em prol do bem comum democrático, como sucede sob João Paulo 2º, sobram, como fonte de interesse da mídia por ela, as suas teratologias sexuais.É possível ir mais fundo: a indiferença dos hierarcas quanto aos males políticos é sinal de que eles colaboram para o desarmamento dos povos diante dos regimes de força.Quanto mais o problema do mal se reduz às subjetividades, no ensino religioso, mais o campo está livre às formas objetivas da pornografia fascista.Seria urgente que padres, bispos, leigos católicos, amigos e inimigos da igreja lessem Georges Bernanos, autor que trata dos dois assuntos, pecados da carne e fascismo . Bernanos veio ao Brasil para fugir da catástrofe totalitária, gerada com as bênçãos de setores eclesiásticos.

Aqui, Bernanos redigiu textos densos e violentos. Tratou, sobretudo, dos padres e das freiras. Seu romance mais negro, Monsieur Ouine (1946), mostra que o mal se transmite de modo sutil e imperceptível.O desespero domina, como num imenso campo de concentração, a alma dos que vivem na sociedade "normal". Naquele romance, a presença e a ausência divinas jogam o leitor na mais dura bestialidade, travestida de espírito.O escritor, que realizou em cada um de seus livros a descida aos infernos (termo de Jean Starobinski), publicou em 1926 o tremendo Sob o Sol de Satã O sinal de Lúcifer marca o desgraçado século 20. Em 1928, veio A Impostura.Em 1931, quando boa parte dos católicos flertou com os fascismos, surgiu O Grande Medo dos Bem-Pensantes. Na hora em que o nazismo inaugurava sua fábrica de horrores, Bernanos publicou o Diário de um Padre do Interior (1936). O romance Caminho da Cruz das Almas (1948), no dizer de um analista, "quebra todas as juntas do leitor".

O renascimento fascista na Europa, com Le Pen e seus amigos, mostra a importância, não só para a vida eclesiástica, mas para a política em geral, dos escritos de Bernanos. O fascismo não vem ao mundo como um raio em dia calmo. Ele brota da mistura de tédio e lama, luz e opacidade que define cada um dos mortais, sobretudo os bem-pensantes.No ápice das obras daquele grande profeta e romancista, encontra-se a peça teatral que deveria ser encenada em nossos dias: O Diálogo das Carmelitas. A morte domina todos os homens, sobretudo os que deveriam estar mais próximos do sagrado.O desespero os impele a agarrar lambões de vida, sujando toda e qualquer inocência, em matéria de sexo ou de política. Os danados, massas ou lideranças, padres ou fiéis, aderem às promessas do mal, quando alardeadas pela propaganda do fascismo como a única saída para os "bons".Nos escritos de Bernanos, não existe lugar para divisões metafísicas entre bons e maus. Nenhum açúcar estraga o sabor ácido da vida humana. Padres e freiras pecam e os inocentes podem praticar os piores malefícios. O perdão e a morte se complementam, em especial na banalidade cotidiana.

Para os que imaginam "resolver" o problema dos padres pedófilos com o casamento, ou pensam equacionar problemas de psicologia social através de medidas policiais, a leitura de Bernanos alerta e recomenda muita prudência.O mal se espalha e se espelha em tudo e em todos. É preciso combater as suas infinitas formas, mas urge, sobretudo, fugir de seu avatar mais perigoso e sutil: a hipocrisia fascista.

Roberto Romano é filósofo e professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp.