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Sinceridade à brasileira
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Quando as relações objetivas do mercado, da ordem política, da universidade e mesmo das igrejas estão ameaçadas de insignificância, os tratos comuns perdem relevo, visto que ocorreu uma "democratização" pervertida de valores e qualidades. Em aglomerados urbanos corrompidos, tudo se equivale. Assim, as regras de comportamento tendem a se esvanecer e, em seu lugar, aparece o arbítrio disfarçado de sentimento subjetivo. Você compra um aparelho de TV. O vendedor promete maravilhas sobre a coisa adquirida: cores magníficas, imagens perfeitas etc. Você a leva para casa. Ali, estranha: os matizes brilhantes somem, as imagens não têm o delineamento correto etc. Você retorna à loja e chama o mesmo vendedor. Esse, não mais premido pela necessidade de vender, vem de cara amarrada. Quando a reclamação se inicia, cai sobre seu ouvido a frase cálida: "vou ser sincero com você, quando mostramos o aparelho, não é com o sinal da TV comum, mas usamos um CD" . Tal atitude deveria ser analisada pelos estudiosos da ética comercial.
E assim caminha a sociedade que não respeita os direitos humanos, as leis, as regras de etiqueta. Com o "vou ser sincero" caem por terra a honestidade objetiva, o tratamento digno das pessoas, a legalidade sem a qual o mundo é terra de feras. Claro que todas elas, as feras, matam com os olhos lacrimejantes de "sinceridade" , como crocodilos cuja forma apenas lembra o humano. O marido traiu a esposa? Receita infalível na sociedade machista nacional: ele é "sincero" e confessa tudo para ela, garantindo impunidade e recomeço das aventuras a que, afinal, ele julga ter direito. Caso a traição, suposta ou real, venha dela, resulta o assassinato "para defesa da honra ofendida" . O Brasil é o país onde mulheres são batidas no lar, crianças são violentadas por genitores ou padrastos, a insegurança se instala no umbral da própria morada. Este é o lado mais sombrio do "homem cordial" que não se move pela razão, mas por desejos e sentimentos insaciáveis.
Outro traço ético hediondo nessa cultura, com origem em Rousseau e no romantismo ordinário, também recebe o nome de "sinceridade" . Trata-se da maneira covarde de agressão. Se uma pessoa não atende aos alvos dos "sinceros" , eles se permitem dizer, na face do interessado, tudo o que dele se afirma na vida "social" . Hobbes, no