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Homem, lobo do homem
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Homem, lobo do homem
Roberto Romano*
Algumas teses tendem a se transformar em moedas sem cara ou coroa. Gastas, elas dizem o contrário da semântica e da lógica que lhes deram nascimento. Consideremos o aforismo “homem, lobo do homem”. Surgida na República, de Platão, a fórmula decreta a máxima desesperança diante do pretenso “animal social e racional”. Bicho devorador, o homem poderia, no entanto, ser uma divindade benfazeja para os seus irmãos. Mas a violência apaixonada o torna mais bestial do que os bichos.
Tomás Hobbes recolhe na tradição o símile entre homem e lobo. Antes dele tivemos Erasmo, Montaigne, Francis Bacon. Este último usa a imagem de maneira relevante para a nossa vida política. No Dignitate et Augmentis Scientiarum (Aforismo 129) Bacon diz que o homem é o lobo do homem quando o próprio Estado, por intermédio de seus tribunais, comete injustiças contra um cidadão: “visto com efeito que o tribunal aderiu ao campo da injustiça, a situação se transforma numa forma de banditismo público: é então, sem dúvida possível, que o homem ‘é um lobo do homem’” (De Dignitate, Livro 8, capítulo 2, parábola 25).
Hobbes segue Bacon no ponto assinalado. Ele fala do quanto é grave o erro dos governantes que tratam os cidadãos inocentes como inimigos e transformam a amizade cívica em atitude hostil. Se os juízes são corrompidos, afirma ele, e favorecem de um modo ou de outro os delinquentes, “os bons cidadãos são abandonados aos assassinos, aos ladrões e aos impostores, o comércio mútuo e a liberdade de movimento tornam-se completamente impossíveis, a própria cidade é dissolvida e cada um retoma o direito de se proteger segundo seu próprio juízo” (De Cive, capítulo 13, § 17).
Vivemos uma inédita crise de Estado e de sociedade no Brasil contemporâneo. Bandidos de todos os calibres e tonalidades controlam os cargos públicos e assaltam o erário de modo desavergonhado. E o cidadão comum, que paga impostos altíssimos, o que encontra nos juízes? Proteção contra os larápios? Nenhum ladravaz dos recursos públicos foi condenado em nossa terra. No mesmo instante, a menor infração cometida por indivíduos e grupos empobrecidos é punida com rigor draconiano. Dois pesos e duas medidas não fazem justiça. Esta última, ou usa um peso correto, válido para todos, ou é mentira impiedosa. É o que testemunhamos todas as horas, todos os minutos, todos os segundos neste país sem garantias jurídicas para os honestos, mas com todas as garantias e privilégios dados aos improbos.
Os privilégios hediondos recebem bençãos das togas, de maneira direta ou indireta. Um dos últimos instrumento de defesa, para a cidadania inocente, é a liberdade de imprensa. Notamos com estupor a cada átimo mais forte, que a censura funciona, nas mãos dos juízes, para impedir a punição dos assaltos aos cofres públicos. O jornal O Estado de São Paulo, por noticiar os desatinos de uma elite oligárquica, não pode cumprir o múnus da livre imprensa. Apelando às camadas superiores do judiciário, o STF, tanto o jornal quanto os leitores receberam nesta semana um tapa na face, com o adendo de suposta lição ética.
Sob manobra técnica, o Excelso Pretório apunhalou a liberdade de imprensa. Alguns de seus membros, com sofisma insustentável, unem o caso da Operação Boi Barrica (assalto aos cofres públicos) e a Escola de Base (rumores encampados inclusive por setores do judiciário). Em ambos os eventos, a imprensa (a inimiga pública dos autoritários) é estigmatizada como a causa do mal, jamais como o seu remédio. “Honra”, em pessoas públicas, ou é visível ou não existe. A censura joga todas as atitudes, individuais ou coletivas, na vala comum do que é invisível. Quem se oculta sob o manto negro da censura mostra, a priori, que sua honorabilidade é garrulice, nada mais.
Com a decisão da semana passada (a mesma em que um governo corrupto, na apodrecida Brasília, lançou cavalos e bastões contra quem protestava e exigia respeito pelos cofres públicos), o STF instaurou, em definitivo, a única lei de sociedades sem direitos e garantias constitucionais: a que determina ser o homem o lobo do homem. Tenho, neste momento, vergonha de ser brasileiro.