segunda-feira, 21 de Dezembro de 2009
Abuso discursivo
Ao ler o texto de Carlos Fiolhais, lembrei-me dos "quatro ingredientes" que Alan Sokal e Jean Bricmont dizem constituir, quando devidamente reunidos, o abuso discursivo no campo da ciência.
Para se perceber melhor o dito abuso, os autores dão o seguinte exemplo:
“Este diagrama [a tira de Möbius] pode ser considerado a base de uma espécie de inscrição essencial à origem no nó que constitui o sujeito. Isto vai bem mais longe do que aquilo que poderia pensar-se à primeira vista, um vez que pode procurar-se o tipo de superfície capaz de receber tais inscrições. Talvez reparem que a esfera, este símbolo antigo de totalidade, não é apropriada. Um toro, uma garrafa de Klein, uma superfície de corte cruzado, são capazes de receber tal corte. E esta diversidade é muito importante porque explica muitas coisa sobre a estrutura da doença mental. Se o sujeito pode ser simbolizado por este corte fundamental, também pode mostrar-se que um corte num toro corresponde ao sujeito nevrótico e numa superfície de corte cruzado a outra espécie de doença mental” (Lacan, 1970, 192-193).
Notas:
- A tira de Möbius é uma superfície só com uma face: a frente e o verso estão unidos por um caminho contínuo. Para a construir-se pega-se numa tira comprida de papel, torce-se 180 graus uma das pontas que se cola à outra ponta.
-Toro é uma superfície como a dum pneu ou duma bóia.
- A garrafa de Klein é semelhante a uma tira de Möbius mas sem aresta. Para a representar seria necessário um espaço euclidiano a quatro dimensões.
- A superfície de «capuz» cruzado, no texto escrito «corte cruzado» [cross-cut], provavelmente por um erro de transcrição, é um outro tipo de superfície.
E os ingrediantes acima referidos são:
"1. Falar abundantemente de teorias científicas de que não se tem, na melhor das hipóteses, mais do que uma vaga ideia. Na maior parte dos casos, estes autores não fazem mais do que utilizar uma terminologia científica (ou aparentemente científica) sem grandes preocupações com o seu significado;
2. Importar noções das ciências exactas para as ciências humanas sem fornecer a menor justificação empírica ou conceptual. Um biólogo que quisesse utilizar no seu campo de investigação noções elementares de topologia (como o toro), da teoria dos conjuntos ou da geometria diferencial seria instado a fornecer algumas explicações. Aqui pelo contrário, aprende-se com Lacan que a estrutura do nevrótico é exactamente o toro [é a própria realidade! (p. 32)], com Kristeva que a linguagem poética revela da potência do contínuo (p. 49) e com Baudrillard que as guerras modernas se desenvolvem num espaço não euclidiano (p. 145), tudo sem explicação;
3. Exibir uma erudição superficial, lançando sem vergonha palavras eruditas à cara do leitor num contexto em que não têm qualquer pertinência. O objectivo é impressionar e, sobretudo, intimidar o leitor sem formação científica (…).
4. Manipular frases desprovidas de qualquer sentido e dedicar-se a jogos de linguagem. Trata-se de uma verdadeira intoxicação de palavras associada a uma diferença alucinante pelo seu significado.”
Referência bibliografica: Sokal, A. & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva.