quinta-feira, 14 de abril de 2011

Foi-me pedida, pelo Jornal do Commercio de Recife, uma análise do artigo publicado por FHC na Revista Interrese Nacional, aqui vai.

Jornal do Commercio

foto Ana Lúcia AndradeO dia a dia e os bastidores da política

“Artigo de FHC serve até ao PT”

Publicado em 14/04/2011, Às 12:08


*Roberto Romano

Sigamos o raciocínio de FHC, um brilhante pensador e hábil político. Eu diria, em primeiro lugar, que o ex-presidente pode receber o epíteto dirigido pelo filósofo Spinoza a Maquiavel: “homem prudentíssimo”. Em toda sua carreira política, ele raramente deu um passo em falso, salvo, talvez, quando esteve prestes a aceitar um cargo no Ministério Collor. Foi dissuadido por Mário Covas. Seria desastroso para sua atuação nacional entrar, mesmo que na qualidade de “notável” (outros entraram), num governo problemático em todos os sentidos. Fora a tentação momentânea, ele sempre calculou seus passos, sendo mestre na arte de agir no tempo certo (recomendação milenar da filosofia política, louvada por Maquiavel), no tempo designado pelos gregos como Kayrós, o tempo da prudência: nem muito antes, nem muito depois.

O texto saído na Revista Interesse Nacional traz aquela marca: surge no tempo certo, quando o governo Dilma ensaia seus primeiros passos, o ex-presidente Luis Inácio da Silva está silente, a oposição se encontra desarticulada nos planos material e espiritual. FHC retoma, no seu intróito, outro tempo certo da política, quando o poder autoritário começava a mostrar sua desarticulação, mas ainda era forte o suficiente para manter projetos de permanência, com o uso de concessões e reformas. Naquele tempo certo, FHC escreveu um artigo, recorda ele, defendendo as oposições. Tratava-se de opor ao mando instalado em Brasília, um novo horizonte político cujo foco principal seria uma nova ordem democrática. Para muitos brasileiros, o texto de então, escrito por FHC, era utopia simples. Os fatos e as ações mostraram que ele estava certo. A síntese de tal peça teatral é feita com maestria pelo ex-presidente no seu texto de agora.

O que ele não diz, no entanto, é que no Brasil, dadas as marcas do Estado, a excessiva centralização do poder no âmbito federal e, alí, no Executivo, é proibido manter qualquer oposição real. Quem desafia tal verdade fica longe dos palácios e dos cofres públicos. E não foi diferente durante os dois governos chefiados por ele. Um teórico, seu amigo, chegou a escrever textos em jornais defendendo a distribuição desigual de recursos, dada a preferência popular pelos governantes. E não foi outra a política conduzida pelos seus ministros: a preferência, para a distribuição de verbas, era dada à base de apoio no Congresso (e seus beneficiários nos Estados, Prefeituras, etc). Não se trata de vezo tucano na administração: a prática vem desde o Império, passando pela Velha República, pelas duas ditaduras, pelo populismo, etc. São as condições objetivas que determinam a estrutura estatal brasileira, e que dobraram também as línguas voluntariosas e demagógicas do petismo. Deixemos o efetivo, e sigamos com a análise de FHC.

Para fazer oposição, diz ele ao fazer um jogo feliz de palavra, é preciso ter posição. Entendamos a polissemia do termo: posição doutrinária, posição física, para não falar em posição corporal, postura digna. Espinhas dobradas levemente. Ainda são dobradas e não marcam nenhuma oposição real, firme, leal para com os eleitores e para com os vencedores. As oposições de hoje, no Brasil, dobram levemente a espinha. Mas dobram-na e não mostram ser capazes de inspirar respeito geral.

Ainda no campo das formas objetivas, FHC deixa de lado sua brilhante força analítica e penetra, sem muita desenvoltura, no campo do ataque partidário. Ele critica o lulo-petismo, existiria, de fato, outro petismo? As demais tendências de esquerda no PT são apenas seitas, sem maior relevância social ou política de aderir à ordem econômica mundial. Mas os tucanos a ela aderiram antes. O máximo que FHC pode afirmar, agora, é que o petismo assumiu a forma tucana de pensar e praticar a macro economia, numa espécie de plágio político sem peias. No setor econômico, de fato, não se estabeleceu nenhuma ruptura entre os dois governos, o tucano e o petista. E tal fato explica a oposição “soft” que o mesmo FHC constata em seu texto: fazer oposição na política econômica seria, para a antiga base aliada de FHC, dar um tiro nos próprios pés. Como não existe política (social, educacional, de segurança , etc) desvinculada do patamar econômico, a suposta oposição não poderia mesmo ser exercida.

FHC, homem prudentíssimo, lembra aos seus pares que é preciso prudência diante do governo Dilma. Sua recusa do oportunismo também é louvável. Mas ele efetua, no passo, uma análise demasiado rápido da esquerda, tanto no PT quanto no PSDB, no debate sobre as privatizações. Na verdade, ele mesmo, quando na presidência (e seus ministros ) enfrentou fortes oposições para afirmar sua plataforma econômica e de passagem de empresas estatais para as mãos privadas. Não é possível apagar a resistência de Mário Covas, um dos maiores nomes do PSDB, à política de privatizações encetada pelo governo nacional tucano. O caso Banespa não pode ser silenciado com o uso de frases brilhantes. Em outro ângulo, o Proer suscita, até hoje, muitas dúvidas relevantes.

FHC tem máxima razão ao lembrar as bolsas, criticadas pelos petistas no governo tucano e depois usadas por eles sem retenção na caça aos votos. Mas este é um detalhe que, embora relevante, não dá conta de toda a estratégia que estabeleceu o elo entre petismo e setores “negativamente privilegiados”, para falar com Max Weber, autor muito presente nos textos de FHC.

Um dos pontos mais prudentes e sábios do artigo encontra-se na recomendação de auto-crítica tucana e oposicionista para os dias de hoje, após três derrotas nas campanhas presidenciais. Mas para que fosse real a auto-crítica, seria preciso que ela abarcasse os costumes dos tucanos. Raros dentre eles (não raro pelas suas origens acadêmicas ou pelo antigo autoritarismo da esquerda) não esbanjam antipatia no trato com “as pessoas comuns”. É difícil encontrar um tucano (e o problema aumenta quando se percebe o topo da pirâmide partidária) capaz de manter um diálogo com oponentes ou simpatizantes. O tom imperativo ou de zombaria impera nas alocuções daquela agremiação. Ali não se pratica o debate, mas o jogo das ordens: quem não obedece ou é iletrado, segundo os cheios de luzes científicas, ou inimigo a receber desqualificação. O problema não ocorre apenas a partir do cenáculo tucano: ele vem da modernidade, quando os intelectuais assumiram o papel de “condutores espirituais do povo inculto” (leia-a, entre muitos, os livros de Pierre Benichou, sobre os intelectuais e o autoritarismo dos tempos modernos) que não merece respeito.

A prática de ignorar ou desprezar críticas do “povão” não é própria apenas dos grandes nomes acadêmicos do tucanato. Estrelas menos brilhantes nos campi ou fora dele apresentam tal marca. Ora, como disse um dia, com plena razão, o filósofo Gérard Lebrun, “não é de prestígio acadêmico que padecem os intelectuais e seus partidos, mas de votos”. E com posturas imperiais, os votos rareiam. E não existe marketing político que possa remediar esta atitude e hábito. Não se pede que engenheiros, médicos, advogados, filósofos e sociólogos tucanos mergulhem na demagogia vulgar. O que se sugere é que eles descubram, afinal, que a democracia política é feita de empatia e persuasão. É diferente liderar subordinados em laboratórios e bibliotecas, e liderar massas.

Lance menos louvável, no excelente texto de FHC, é sua caracterização dos petistas como “camaleões” que assumiram, plagiando-a, a plataforma tucana para a macro-economia e para a administração. Se existe arte da política, aprendemos com Plutarco e Maquiavel, ela consiste na oportuna mudança de cores, na arte do cameleão. Apenas os petistas a usam? Não. Os tucanos, os demos, os que hoje dançam com Gilberto Kassab, e toda a política mundial e brasileira é camaleônica. E não se conhece outra forma possível de agir politicamente, pois a política, disse um dia o Chanceler Bismarck, “é a arte do possível”. E o enunciado do alemão de ferro foi muito usado por FHC em toda a sua carreira. Ao entrar nesta seara, o autor do artigo arrisca muito, pois além de escancarar aos governados um segredo da política, dá oportunidade para os contra-ataques em pontos vulneráveis de sua grei.

Chego ao ponto alto do texto apresentado pelo ex-presidente. Trata-se da excelente análise do Congresso que se vende por lentilhas com as medidas provisórias e outros servilismos diante do Executivo. Aqui é meu sentimento: está a maior contribuição do artigo para a inteligência da crise estatal brasileira. Sem Congresso autônomo diante da Presidência não existe possibilidade alguma de oposição. Tal linha de raciocínio ajudaria, se mais desenvolvida, a encontrar saídas inovadoras para a estagnação política, ou melhor, para a corrupção política em nosso País. Infelizmente, o truque da “governabilidade”, indicado por FHC, não é posse exclusiva do petismo. Ele vem de longa data na república dominada pela Chefia do Estado com seus cofres, impostos e Forças Armadas. Para não falar na benevolência de muitos juízes (do mais baixo ao mais elevado escalão do Judiciário) diante dos governantes e governos, em detrimento dos governados. Basta recordar os prejuízos trazidos para os cidadãos pelos “planos econômicos”, verdadeiros golpes silenciosos de Estado (leia-se Gabriel Naudé, nas “Considerações Políticas sobre os golpes de Estado”, livro antigo, de 1640, mas atualíssimo, sobretudo no Brasil).

Com a perda do Congresso enquanto poder autônomo diante do Executivo, vem o crescente enfraquecimento dos Estados e de seus dirigentes. Sem Senado que represente as unidades da Federação (e não as oligarquias regionais) não existe oposição digna do nome. E temos a “cordialidade” dos governadores tucanos diante da Presidência. Outra vez, FHC, o professor, tem nota dez em teoria do Estado nacional. A nota no setor prático, não segue a do scholar. Finalmente passo ao trecho que está causando maior celeuma entre jornalistas, tucanos e petistas: o “povão”. Já mencionei a necessária mudança de mentalidade que permitiria aos tucanos conquistar as pessoas “comuns”: menos arrogância na exibição de saberes e poderes, maior abertura ao diálogo e simpatia no trato público (FHC é exceção no seu partido, pois soube conter, em momentos cruciais, este vezo intelectual). O trecho que gerou tanto alarido deve ser cotejado com o início do artigo: a oposição, é a tese geral, deve ter posição (doutrinária), posição física (conquistar espaços no país inteiro) e posição ética (postura).

Sem doutrina própria, passível de ser transformada em propaganda, e sem lugar social, não existe plano possível de estratégias e táticas para a conquista (ou reconquista) do poder. Esta verdade geral, que não pode ser negada por ninguém, encontra um obstáculo efetivo: o partido tucano congrega, com seus poucos aliados, generais sem exército. E pouco tem sido feito para expandir a agremiação entre jovens e militantes de sua base. Eles precisam encontrar um lugar social onde ocorreria o início de sua retomada do mando estatal. Aquele terreno deve ser livre do controle absoluto dos adversários. O controle relativo pode ser revertido, e ninguém sabe dizer, com segurança, se o controle petista do “povão” é absoluto, basta notar as procelas que se avizinham dos palácios, como a inflação, a insegurança, etc.

Entramos na famigerada “classe média”. FHC perdeu a oportunidade, brilhante sociólogo que é, de mais concretamente definir a referida classe. Este conceito é pouco rigoroso em termos científicos. Ele é mais fruto da propaganda petista e, antes dela, da tucana. Propaganda aliás acolhida sem muito espírito crítico pela mídia nacional e estrangeira. Para dizer que um setor social é “médio” deve-se compará-lo ao superior (em economia, poder político, etc) e ao inferior. Ora, comparado ao superior, cujos ganhos encontram-se entre os mais iníquos do planeta dada a concentração da renda nacional, e ao inferior (ainda um enorme cinturão de pobreza), a suposta “classe média” não é média, mas pobre. Aqui, um erro de perspectiva pode ocorrer nos projetos tucanos, ou seja, o de confundir este setor pobre (nada médio) com as classes médias urbanas já estabelecidas (conservadoras, preconceituosas, adeptas de programas à direita e, não raro, proto-fascistas).

Este setor pode ser reconquistado pelos Demo e similares, ou mesmo pelo petismo se este último empregar a língua daqueles setores. O que não tem sido obstáculo em determinados petismos: basta recordar as campanhas de Genoino para o governo paulista, quando a fala petista de propaganda emulava o malufismo repressor com promessas de aumentar o poder de fogo da polícia contra os “bandidos”, etc.

É mais do que excelente a crítica de FHC aos marqueteiros políticos. Talvez aí exista uma saída realista para as oposições. Basta lembrar o fiasco da última campanha serrista à presidência: elogios ao presidente Luis Inácio da Silva e a promessa de que o candidato da oposição iria continuar o excelente trabalho do petista. Propaganda deve ser coerente com os alvos próprios da oposição, e deve contar com espaço físico conquistado antes das eleições, mesmo que tal espaço seja reduzido. Confiar integralmente uma campanha ao marketing é irrealismo político.

Um ponto que merece livro inteiro de FHC, é a natureza do capitalismo “monopolista” e “burocrático” capitaneado pelo lulo-petismo. O professor FHC nos deve uma crítica aprofundada sobre o aumento de impostos. A lição, no entanto, servirá para todos os governantes brasileiros, tanto os que estão em exercício quanto aos da atual oposição. O “remédio” usado por eles, invariavelmente, é aumentar a carga tributária, direta ou indiretamente, veja-se a recente gula do IOF e dos juros nos cartões de crédito. O contribuinte (o termo é ridículo, porque contribuição aqui é imposta e extorquida do cidadão) é sempre o prejudicado. E isto não é populismo, é apenas uma exigência básica da democracia moderna. Mas o Brasil já é moderno? Talvez, pelas vias mais obscuras. O teórico FHC contribuiu, decisivamente, para iluminar este lado do atraso nacional.

Last but not least, excelente análise de FHC sobre a reforma política e sobre a lista fechada. Só esta passagem valeu todo o texto, e poderia ser ampliada para esclarecer o debate público, com muito proveito. Em suma: o artigo é uma peça excelente de análise que pode servir até mesmo para os petistas. Mas ela corre o risco de submergir sob o escarcéu gerado ao redor de um detalhe apenas: o relativo ao “povão”. Como proposta, ele abre caminhos para a oposição e para o governo, desde que o alvo seja a edificação de uma sociedade justa e de um Estado democrático. Vozes como a do ex-presidente mostram que, sim, existe vida inteligente no planeta Brasil. Não é preciso concordar com ele, mas é mister ouví-lo.

*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia da Universidade de Campinas, São Paulo, e gentil colaborador da Pinga-Fogo.

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FHC explica ao “Valor” sua nova tese sobre “povão” e a estratégia para o PSDB

"Não sou idiota para propor que o PSDB ignore o povão", diz FHC

Cristiane Agostine | De São Paulo

"Qual é o bobo que vai deixar de lado o povão nas eleições? Eu não sou um idiota". Indignado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 79 anos, diz que foi mal interpretado no artigo de sua autoria, divulgado pelo PSDB e amplamente criticado por correligionários. No texto, o presidente de honra do partido diz que se os tucanos persistirem em disputar com o PT a influência sobre os movimentos sociais ou o "povão", o partido falará sozinho.

Em entrevista ao Valor, concedida na tarde de ontem por telefone, FHC afirma que na entressafra eleitoral o PSDB precisa construir um discurso e direcioná-lo para aqueles que ascenderam socialmente durante os anos do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Fernando Henrique, o partido precisa manter uma expectativa de poder para continuar vivo. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O senhor defendia a aproximação do PSDB com as bases sociais, mas agora diz para o partido desistir do "povão" e buscar a nova classe média. O que mudou?

Fernando Henrique Cardoso: Sempre tive a mesma posição. Agora tem de ver o que é novo, o que está emergindo. Acho que o PSDB tem de ser o porta-voz do novo. Tem que ter uma mensagem com estratégia de futuro do Brasil. O novo é que as pessoas estão mais voltadas a sua vida cotidiana. Então tem de ver como é que liga a preocupação da vida cotidiana com essa estratégia de futuro e com valores como a democracia, a luta contra a corrupção e contra o clientelismo. Tem que mostrar que há problemas de infraestrutura nas obras da Copa e dos aeroportos. Isso a população sente, percebe o que está faltando. Tem que mostrar que a questão do imposto não interessa só ao rico, mas a todos. Além disso a mensagem tem que vir de meios de comunicação novos, sem dispensar os tradicionais. É preciso usar internet, redes sociais. E não basta a oposição ficar no parlamento. Tem que ir para as ruas, se aproximar do povo. Agora boa parte do que o PT chama de povão, está mais cooptada pelo clientelismo. Mas isso não quer dizer que vou desprezar uma camada. Sou louco por acaso? Não ganhei duas vezes a eleição do Lula, no primeiro turno? Vou desprezar alguma parte? Não! Estou dizendo qual é a estratégia, como é que faz para sua mensagem se consolidar. Não falei de eleição, nem de voto. Na entressafra eleitoral devemos utilizar este momento para refazer nossa linguagem, para ver quais são as camadas mais sensíveis. Não estou tratando de eleição.

Valor: O senhor quer dizer que na eleição tem de se aproximar de todos, mas na entressafra...

FHC: Não. Não só na eleição. Quais são as camadas que estão desconectadas e como o PSDB pode se conectar com elas? Não é questão de se aproximar. Claro que um partido tem que se aproximar com todo mundo do país. O que eu fiz no governo? As bolsas quem criou, não fomos nós? Na reforma agrária, quem deu o impulso não fomos nós? Não é essa a ideia, de ter um setor que se ocupa do povo e outro da elite. O que não pode é pensar que não houve uma mobilidade grande e que setores enormes das camadas populares, trabalhadores, é pensar que não estejam conectados pela internet também e que não estejam suscetíveis a uma mensagem que não a tradicional. E também que não sejam tão suscetíveis de ser cooptação por esse assistencialismo. Não se trata de se aproximar do povo só na eleição. Tem que ter uma concepção mais complexa do que é a sociedade. Fiquei muito assustado com a rapidez com que as pessoas interpretam e criticam [o artigo] antes de ler. Foi uma interpretação equivocada do que eu penso.

Valor: Desistir dos movimentos sociais, do "povão", não é uma orientação divergente à estratégia de o PSDB se aproximar do Nordeste?

FHC: Imagina se eu seria louco de achar isso. Não, não. Agora tem que ter marca. O Nordeste também está avançando e queremos que avance mais. Não temos que ser o partido da manutenção e da transição do atraso, através dos meios sociais que sejam. Temos que dar os meios sociais, a ajuda necessária, mas não pode se contentar com isso. Tem que se medir... "Qual é o progresso? Como é que eu avanço?"

"Estou dizendo qual é a estratégia, como se faz para sua mensagem se consolidar. Não falei de eleição, nem de voto"

Valor: O senhor falou da nova classe média, como a classifica?

FHC: Sociologicamente não é classe média. Classe social não é classe de renda. Teve um aumento da renda de vários setores, mas isso não classifica automaticamente como uma mudança de classe, no sentido sociológico. Classe implica em um estilo de vida, de educação, redes sociais, conjunto de privilégios. Estamos usando, sociologicamente, de forma abusiva a ideia de uma nova classe média. Não é uma nova classe média. São novas categorias sociais. O mundo de hoje não é tão estabilizado como o do passado, que tinha o trabalhador, a classe média e os empresários, a burguesia. É um mundo muito mais fragmentado. Houve mobilidade, sim, melhorou a renda. Com o tempo, aí sim, vai estabelecer novas teias de relações sociais, participar de certos grupos de escola... Com o tempo vai ser, eventualmente, o que se chama de classe média.

Valor: As demandas da nova classe média se assemelham às das classe D?

FHC: As demandas são diferentes. [A nova classe média] Vai querer mais informação, mais atendimento e mais qualidade dos serviços sociais. Nós conseguimos dar acesso geral à educação, mas todo mundo se queixa da educação no Brasil. Vai ser um momento difícil, da passagem da quantidade para a qualidade. No fundo é o momento de o Brasil passar de país em desenvolvimento para desenvolvido. O PSDB e as oposições têm que entender isso e ir para a vanguarda, como nós fizemos no passado, quando o PT era contra a estabilização da economia. O PT era contra o capital estrangeiro. O PT era contra que as leis do mercado tivessem vigência, era contra a globalização. Hoje acabou tudo isso. Ninguém mais é contra. Mas o PSDB foi a favor. De novo agora temos que dizer: isso está feito e o que mais? Vamos olhar o horizonte, avançar mais. Alguém vai fazer isso. Se não fizermos outros farão.

Valor: E por que essa nova classe estaria mais suscetível ao discurso do PSDB do que a classe D?

FHC: O PSDB tem de ser capaz de ter um discurso que mexa com ela. É o que eu estou dizendo. Não tem um discurso definido. Vamos procurar um discurso, vamos ouvi-la.

Valor: O que poderia motivar a aproximação? No artigo o senhor cita a questão moral...

FHC: Pode ser a questão moral. Mas pode ser a questão do atendimento, dos serviços com mais qualidade, mais segurança. Não tenho uma receita. É uma estratégia. É mudar o foco, para ver se chega lá. Se as pessoas discutissem isso seria mais útil do que discutir se vai deixar de lado o povão. Qual é o bobo que vai deixar de lado o povão nas eleições? Eu não sou um idiota. Todo o governo tem que olhar para a população, para os mais pobres também. Precisamos disputar o controle político dessa população. Não temos instrumentos para o assistencialismo, para transformar as bolsas em o instrumento de voto, cooptar os sindicatos...

Valor: Em relação aos movimentos sociais, Alckmin e Aécio tentam se aproximar das centrais sindicais. O senhor discorda da estratégia?

FHC: Tem mesmo que se aproximar. Acho que deve "descooptar". Mas os sindicatos do Brasil e no mundo todo não pegam mais a maioria dos trabalhadores. O índice de filiação é pequeno. Não sei se as demandas dos sindicatos são as dos trabalhadores ou são da burocracia sindical. Essa subiu na vida também e tem poder político. Mas será que arrastou consigo a massa operária? Duvido. O que não quer dizer que não devemos trabalhar com os sindicatos.

Valor: E qual pode ser o ponto de intersecção entre os discursos do PSDB e o sindicalismo?

Fernando Henrique: O PSDB deve lutar contra o corporativismo. E a garantia de sobrevivência sem a adesão dos trabalhadores não tem sentido. O imposto [sindical] é sobre todos os trabalhadores sem que eles digam se querem ou não. Não faz sentido.

Valor: E os 100 dias da presidente Dilma, como o senhor analisa?

FHC: Esse negócio de 100 dias é outra dessas ficções. É muito cedo para avaliar o governo. Ela mudou um pouco o estilo: menos falante, muito mais cortês comigo. Não sei qual vai ser a política. Na Vale já houve uma interferência bastante forte. Na política externa houve modificações. Falar de direitos humanos é positivo, se distanciar daquela visão de que basta ser ditadura dita de esquerda para nós termos uma ligação é bom. Mas é como uma partida de xadrez, quem dá os lances iniciais é quem tem as pedras brancas. Na política, quando alguém ganha a eleição leva as pedras brancas. Não adianta nos precipitarmos antes de saber qual é o jogo deles. Não é o momento de eu sair criticando. Todos torcem para que o Brasil vá pra frente.

Valor: Com o esvaziamento do DEM, como será o papel da oposição em relação ao governo?

FHC: Não sei como a oposição vai se desdobrar, porque depende do que o governo faça. Agora não dá pra tapar o sol com a peneira. Essa perda de substância do DEM não é boa, a menos que o novo partido se declare de oposição. Temos que ter uma mensagem que vá além do jogo dos partidos e do Congresso, que fale com o país. Para isso vai precisar de líderes que encarnem a nova mensagem. Tendo essa liderança, você se mantém na oposição e mantém o partido vivo. Mantém uma expectativa de poder. Enquanto o PSDB representar no imaginário das pessoas uma alternativa pro futuro, ele se mantém apesar das dificuldades do dia-a-dia da oposição.

Valor: O PSDB então poderia já lançar uma pré-candidatura à Presidência?

FHC: É cedo para isso, mas tem que se preocupar com o pé no chão. O partido tem que se estruturar nas bases, oferecer bons candidatos a prefeito, olhar no mapa eleitoral e dizer "onde estamos fracos?" Tem que recrutar bons candidatos, que tenham compromisso programático, compostura política. Candidatos que tenham capacidade de expressar o que a população está sentindo nos municípios. É um longo trabalho a ser feito, de formiguinha, não de quem vai ser candidato a presidente. O que o PSDB precisa agora é de coesão. O DEM está com um problema muito grave. Não temos fratura, temos que solidificar a coesão. Quem quiser trabalhar pela oposição no futuro tem que trabalhar já pela coesão no PSDB. E não ficar pensando em nome de uma eventual candidatura.

Valor: Geraldo Alckmin lançou informalmente Serra à Prefeitura de São Paulo. O que o senhor acha?

FHC: Não sei se é a melhor opção pra ele. Se não combinar com o principal interessado, não tem jogo. Não sei qual é a opinião do Serra. Duvido que ele esteja, nesse momento, pensando nisso. Claro que, se for candidato, todo mundo vai ficar ao lado dele. Mas nesse momento nós todos devíamos estar pensando qual é o nosso papel, como é que você fala com a sociedade. Dizer que "é candidato, não é", "rachou, não rachou", isso cansou o povo. Isso não diz nada a ninguém. É preciso falar coisas que sejam sensíveis à população. Ontem, fiz uma palestra em Maringá (PR). Tinha 2,8 mil pessoas. Fiquei espantado. Jovens, mulheres, empresários, tudo misturado. O que eles querem saber? O futuro. Você junta aqui 100 pessoas para discutir, nesse momento, quem vai ser candidato? Não junta. Vamos partir do que a população está sentindo, não do que nós mesmos publicamos nos jornais. Um põe uma notinha aqui, outro lá, já sabe quem pôs, um fica envenenado contra o outro, não leva a nada.