terça-feira, 19 de abril de 2011
O trem dos fascistas
O TREM-BALA DOS FASCISTAS PODE PASSAR por Leonardo Ferrari, psicanalista, Curitiba, aqui
Fonte: Folha de São Paulo, 18/4/2011.
Villa-Lobos nos deu para sempre o imortal trenzinho caipira. Com seus miseráveis, com seus desconhecidos, com seus emigrantes, com seus amantes, o trem caipira fala do deslocamento, do movimento, da despedida e de uma nova chegada, nova estação. É de chorar de tão bonito, de tão trágico, de tão humano. Porém, basta sair do Brasil e entrar na Europa, que o trem vira Outro. A Europa dá pena. Em primeiro lugar, porque não existe. Existe uma colcha de retalhos, muito mal costurada, feita de alhos com bugalhos. Falar de trem na Europa dá medo. Basta lembrar o nazismo e os trens fora dos horários normais, lotados de judeus em direção à morte em linha de desmontagem dos campos de concentraçãos invisíveis, feitos para não deixar restos, vestígios, pegadas. E falar em nazismo é falar nos rincões da Europa, as pequenas cidades, as pequenas regiões, bem longe do glamour de Paris, da movida de Madri, dos encantos de Roma ou de uma Berlim multifacetada. Não. A Europa dá pena porque é feita de gente muito pequena, gente muito hostil, uma gentinha muito fascista. Basta dar dois passos para fora das grandes cidades para constatar o óbvio: os antigos muros medievais continuam lá, porém aperfeiçoados, com versões revistas e melhoradas. Gente que já fez da Espanha um pesadelo franquista, já fez da Alemanha o horror nazista – basta lembrar que os nazistas ganharam as eleições democraticamente – já fez da Itália a farsa fascista. Já fez? É muito otimismo, perdão. A Itália é governada hoje por um partido político sustentado pelas maiores empresas do norte da Itália, algumas das mais ricas empresas do mundo, feitas pelos netos e bisnetos de imigrantes e cuja plataforma política é delenda imigrantes, morte aos imigrantes – lembro bem da resposta estupefata de alguns italianos a me dizer, “mas você quer comparar os africanos com os imigrantes italianos?”. Aliás, os fascistas são toscos, são obtusos, são filhos das putas, mas não são burros. Ontem na Itália eles fizeram um golpe genial de propaganda. Encheram um trem de “manifestantes”, puseram um nome-fantasia, “trem da dignidade” e despacharam-no para a França – não é a França que grita o tempo todo pelos direitos humanos? Não é a França a defensora da liberdade, da igualdade e da fraternidade? Então divirtam-se. O trem é de vocês. E o que fez o governo francês? Um governo às vésperas de novas eleições, nas quais, para variar, a extrema direita aparece muito bem na foto, à frente das pesquisas, então esse governo acuado, esse governo medroso, esse governo apavorado deu uma resposta à altura dessa Europa de fachada – bloqueou o trem, criou um novo muro de Berlim. Tudo, menos a negrada africana por aqui. Que a negrada desdentada se espalhe pela Itália suja, que a negrada faminta se vire nesta Itália desgovernada, Itália tosca – por que deixou esses desgraçados entrarem? Que seguisse nosso exemplo e os barrasse lá fora, lá nos países de origem deles – vamos ocupar militarmente esses países, como fizemos na Argélia, tomar conta deles, como na Argélia, ensinar para essa negrada que eles devem continuar para sempre trabalhando de graça para nós, extraindo o petróleo deles para nossas empresas e que eles nunca mais repitam o que os ingratos argelinos fizeram. Incompetentes italianos. Não fizeram isso, que se lixem agora. Enquanto isso, a Alemanha assiste de camarote – não sem garantir o funcionamento 24 horas de seus “centros de detenção” dos imigrantes turcos e africanos. Não participou da guerra na Líbia, não quer saber de trem dos outros nenhum – ela tem os próprios – quer apenas passar para o mundo a ideia de que ela é uma grande empresa, um grande negócio, o maior exportador da Europa – vendas, vendas e vendas – atentem para o outro significado de venda, algo feito para cobrir os olhos. Muito atenta à propaganda, elegeu uma mulher, uma “presidenta” para fazer isso, para ser a gerente do boteco, e assim fazer de conta que o passado passou, acabou, não retornará nunca mais. Ora, o recalcado retorna, é a lei de Freud – para os presidentes e para as presidentas. O trem dos imigrantes é o símbolo desse retorno do recalcado, desse fracasso chamado Europa. Em nome da democracia, o fascismo se imporá novamente. Vai ganhar as próximas eleições. Otimismo de novo. Já ganhou na Itália, já ganhou na França e já ganhou na Alemanha. O trem dos fascistas circula livremente e é muito bem recebido por onde passa. Triste Europa.
Fonte: Folha de São Paulo, 18/4/2011.
Villa-Lobos nos deu para sempre o imortal trenzinho caipira. Com seus miseráveis, com seus desconhecidos, com seus emigrantes, com seus amantes, o trem caipira fala do deslocamento, do movimento, da despedida e de uma nova chegada, nova estação. É de chorar de tão bonito, de tão trágico, de tão humano. Porém, basta sair do Brasil e entrar na Europa, que o trem vira Outro. A Europa dá pena. Em primeiro lugar, porque não existe. Existe uma colcha de retalhos, muito mal costurada, feita de alhos com bugalhos. Falar de trem na Europa dá medo. Basta lembrar o nazismo e os trens fora dos horários normais, lotados de judeus em direção à morte em linha de desmontagem dos campos de concentraçãos invisíveis, feitos para não deixar restos, vestígios, pegadas. E falar em nazismo é falar nos rincões da Europa, as pequenas cidades, as pequenas regiões, bem longe do glamour de Paris, da movida de Madri, dos encantos de Roma ou de uma Berlim multifacetada. Não. A Europa dá pena porque é feita de gente muito pequena, gente muito hostil, uma gentinha muito fascista. Basta dar dois passos para fora das grandes cidades para constatar o óbvio: os antigos muros medievais continuam lá, porém aperfeiçoados, com versões revistas e melhoradas. Gente que já fez da Espanha um pesadelo franquista, já fez da Alemanha o horror nazista – basta lembrar que os nazistas ganharam as eleições democraticamente – já fez da Itália a farsa fascista. Já fez? É muito otimismo, perdão. A Itália é governada hoje por um partido político sustentado pelas maiores empresas do norte da Itália, algumas das mais ricas empresas do mundo, feitas pelos netos e bisnetos de imigrantes e cuja plataforma política é delenda imigrantes, morte aos imigrantes – lembro bem da resposta estupefata de alguns italianos a me dizer, “mas você quer comparar os africanos com os imigrantes italianos?”. Aliás, os fascistas são toscos, são obtusos, são filhos das putas, mas não são burros. Ontem na Itália eles fizeram um golpe genial de propaganda. Encheram um trem de “manifestantes”, puseram um nome-fantasia, “trem da dignidade” e despacharam-no para a França – não é a França que grita o tempo todo pelos direitos humanos? Não é a França a defensora da liberdade, da igualdade e da fraternidade? Então divirtam-se. O trem é de vocês. E o que fez o governo francês? Um governo às vésperas de novas eleições, nas quais, para variar, a extrema direita aparece muito bem na foto, à frente das pesquisas, então esse governo acuado, esse governo medroso, esse governo apavorado deu uma resposta à altura dessa Europa de fachada – bloqueou o trem, criou um novo muro de Berlim. Tudo, menos a negrada africana por aqui. Que a negrada desdentada se espalhe pela Itália suja, que a negrada faminta se vire nesta Itália desgovernada, Itália tosca – por que deixou esses desgraçados entrarem? Que seguisse nosso exemplo e os barrasse lá fora, lá nos países de origem deles – vamos ocupar militarmente esses países, como fizemos na Argélia, tomar conta deles, como na Argélia, ensinar para essa negrada que eles devem continuar para sempre trabalhando de graça para nós, extraindo o petróleo deles para nossas empresas e que eles nunca mais repitam o que os ingratos argelinos fizeram. Incompetentes italianos. Não fizeram isso, que se lixem agora. Enquanto isso, a Alemanha assiste de camarote – não sem garantir o funcionamento 24 horas de seus “centros de detenção” dos imigrantes turcos e africanos. Não participou da guerra na Líbia, não quer saber de trem dos outros nenhum – ela tem os próprios – quer apenas passar para o mundo a ideia de que ela é uma grande empresa, um grande negócio, o maior exportador da Europa – vendas, vendas e vendas – atentem para o outro significado de venda, algo feito para cobrir os olhos. Muito atenta à propaganda, elegeu uma mulher, uma “presidenta” para fazer isso, para ser a gerente do boteco, e assim fazer de conta que o passado passou, acabou, não retornará nunca mais. Ora, o recalcado retorna, é a lei de Freud – para os presidentes e para as presidentas. O trem dos imigrantes é o símbolo desse retorno do recalcado, desse fracasso chamado Europa. Em nome da democracia, o fascismo se imporá novamente. Vai ganhar as próximas eleições. Otimismo de novo. Já ganhou na Itália, já ganhou na França e já ganhou na Alemanha. O trem dos fascistas circula livremente e é muito bem recebido por onde passa. Triste Europa.