A liberdade de passar fome
Em nome desse princípio, republicanos defendem fim de cupons de alimentação, mas ampliam subsídios agrícolas
24 de setembro de 2013 | 2h 07
Paul Krugman* - O Estado de S.Paulo
"Liberdade" é um termo predominante na moderna retórica
conservadora. Grupos lobistas são denominados FreedomWorks (como a
organização que é um dos principais pilares do Tea Party), ao passo que a
reforma da saúde é denunciada não apenas por seu custo, mas até mesmo
como um ataque à liberdade.
Entretanto, nem o presidente Franklin Roosevelt reconheceria a
definição que a direita tem de "liberdade". Por exemplo, parece que o
sentido da terceira de suas Quatro Liberdades - a liberdade de querer -
foi completamente desvirtuado. Em particular, os conservadores acreditam
que liberdade é mais um equivalente de não ter o suficiente para comer.
Daí, os republicanos enraivecidos votam para cortar consideravelmente
os cupons de alimentação, ao mesmo tempo em que aprovam o aumento dos
subsídios agrícolas nos EUA.
De certo modo, é fácil perceber o motivo pelo qual os cupons - ou,
Programa de Assistência Nutricional Suplementar (Snap, na sigla em
inglês) - viraram seu alvo. Os conservadores denunciam a ideia de que a
ingerência do Estado cresceu de maneira desmedida no atual governo, mas
têm de encarar o fato embaraçoso de que os empregos públicos se
reduziram consideravelmente, enquanto os gastos em geral caíram
rapidamente como parcela do PIB.
O Snap cresceu significativamente, e o número de americanos
beneficiados aumentou de 26 milhões, em 2007, para quase 48 milhões,
hoje.
Os conservadores olham para isso e veem o que, para sua enorme
decepção, não encontram em geral nos dados: o crescimento descontrolado
de um programa de governo. Contudo, outros americanos veem um programa
da rede de proteção que cumpre exatamente o objetivo: ele ajuda um
número maior de pessoas numa época de enormes dificuldades econômicas.
A recente explosão do Snap é realmente inusitada; por outro lado,
essa também é uma época inusitada e no pior sentido. A Grande Recessão
de 2007 a 2009 foi a crise mais grave desde a Grande Depressão e a
recuperação que se seguiu tem-se mostrado muito fraca. Vários estudos
econômicos bastante precisos mostraram que o declínio da economia
explica em grande parte o aumento do uso dos cupons de alimentação. E,
embora as notícias referentes à área econômica sejam em geral
pessimistas, a boa notícia é que os cupons pelo menos têm ajudado a
mitigar o sofrimento, impedindo que milhões resvalem na pobreza.
E esse não é o único benefício do programa. Agora, está mais do que
evidente que os cortes dos gastos numa economia deprimida só contribuem
para aprofundar a crise, apesar do declínio constante dos gastos do
governo. Entretanto, o Snap é o único programa que vem crescendo
persistentemente, e, portanto, ajuda indiretamente a preservar centenas
de milhares de empregos.
Mas, afirmam os suspeitos de sempre, a recessão acabou em 2009. Por
que a recuperação não permitiu a redução do Snap? A resposta é que,
embora de fato a recessão tenha acabado oficialmente em 2009, o que se
recuperou desde então foi um número restrito de pessoas no topo da
pirâmide, sem que tais ganhos tenham favorecido minimamente os menos
afortunados. Levando-se em conta a inflação, a renda de 1% dos
americanos que estão no topo subiu 31% de 2009 a 2012; entretanto, a
renda real dos 40% dos que estão na base caiu 6%. Por que razão o uso
dos cupons deveria ter caído? Será que o Snap, no fim, foi uma boa
ideia?
Ou, como diz Paul Ryan, o presidente da Comissão do Orçamento da
Câmara, mostra que a rede de proteção transformou-se num "balanço para
embalar pessoas perfeitamente aptas para trabalhar permitindo que vivam
despreocupadas na dependência do governo".
No ano passado, os cupons de alimentação valiam, em média, US$ 4,45
por dia. Quanto às "pessoas plenamente aptas para trabalhar", quase dois
terços dos beneficiários do Snap são crianças, idosos ou deficientes e a
maior parte dos restantes é formada por adultos com filhos.
Entretanto, é preciso pensar também que garantir uma alimentação
adequada às crianças, em grande parte a finalidade essencial do Snap, na
realidade fará com que um número maior dessas crianças tenha uma
existência menos pobre e não precise da assistência do governo quando
crescer. É isso que as evidências mostram. As economistas Hilary Hoynes e
Diane Whitmore Schanzenbach estudaram o efeito do programa de cupons
nos anos 60 e 70, quando foi progressivamente lançado em todo o país.
Elas concluíram que as crianças que receberam esse tipo de
assistência nos primeiros anos de vida tornaram-se, em média, adultos
mais saudáveis e mais produtivos do que os que não a receberam - e mais
provavelmente deixaram de recorrer à rede de proteção.
Em resumo, o Snap é uma das melhores medidas adotadas pelo governo.
Não só traz auxílio aos necessitados, como os ajuda a ajudar a si
mesmos. E tem sido de grande auxílio na crise econômica, mitigando o
sofrimento das pessoas e preservando empregos numa época em que grande
parte dos legisladores parece determinada a fazer exatamente o
contrário.
Portanto, é fácil entender por que motivo os conservadores escolheram
justamente esse entre todos os programas como alvo de sua ira.
É preciso destacar entretanto que até mesmo alguns especialistas
conservadores temem que a guerra que se trava em torno dos cupons de
alimentação, principalmente se comparada ao voto que aumenta os
subsídios para a agricultura, seja péssimo para o Partido Republicano,
porque faz com que os republicanos pareçam seres mesquinhos, preocupados
apenas em defender os próprios interesses. E é mesmo. Porque é assim
que eles são.
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA