Brasil vive crise de confiança política, diz Rachel Meneguello
Livro coorganizado pela cientista política da Unicamp ajuda a entender antecedentes que desencadearam as manifestações de rua ocorridas no país
“A desconfiança política é
um fenômeno associado à percepção da ausência de representação, de
distância da política, de resposta ineficaz das instituições às demandas
básicas da população, constituindo uma lacuna entre os cidadãos e o
sistema, uma incongruência forte entre cidadãos e Estado.” A avaliação é
da cientista política Rachel Meneguello, docente do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, coordenadora do Centro
de Estudos de Opinião Pública (Cesop) e coorganizadora do livro “A
Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia”,
que acaba de ser lançado pela Editora da Universidade de São Paulo
(Edusp).
Baseado em uma
pesquisa realizada no Brasil sobre desconfiança dos brasileiros nas
instituições democráticas, em 2006, com recursos da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o livro reúne textos de oito
pesquisadores que escrevem sobre democracia, representatividade,
“cidadão crítico”, além da percepção dos brasileiros a respeito da
Justiça, polícia e dos serviços públicos.
Se
tivesse saído antes das manifestações de rua ocorridas neste ano, teria
ajudado a entender um pouco melhor, quase como uma previsão, as origens
dos múltiplos protestos que tomaram conta do país.
A
crise de confiança política não é de hoje, muito menos é uma
exclusividade do Brasil; é mesmo uma questão central para as sociedades
democráticas, como destaca a autora, que assina o livro com o professor
José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP), diretor
científico do Núcleo de Políticas Públicas (Nupps) da instituição.
“Estamos em uma fase de mudança que resulta em uma grande crise de
desengajamento cívico; estamos desengajados civicamente”, afirma
Meneguello. Leia a entrevista:
Jornal da Unicamp – Como nasceu a ideia do livro?
Rachel Meneguello
– O livro é fruto de um projeto temático da Fapesp, que eu e o
professor José Álvaro Moisés [coordenador] desenvolvemos, com a
participação do Nupps [Núcleo de Políticas Públicas, da USP) e do Cesop
[Centro de Estudos de Opinião Pública, da Unicamp]. Em 2006, fizemos uma
pesquisa nacional com dois mil entrevistados e um dos principais temas
foi investigar do que se tratava democracia para as pessoas, e quais
seriam as bases da confiança política para constituição da legitimidade
do sistema político. Nós sabemos que o apoio à democracia é um fenômeno
crescente no Brasil, na América Latina, e em vários outros países de
democratização recente.
Ao mesmo
tempo, as pessoas são muito insatisfeitas com o funcionamento do regime,
com a forma como funcionam as instituições, com os serviços em geral do
Estado. Assim, no projeto, buscamos, por um lado, entender a natureza
das relações que explicariam os determinantes da avaliação
predominantemente negativa das instituições encontrada no cenário
brasileiro e, por outro, compreender as associações da atitude de
desconfiança com um conjunto de outras atitudes, opiniões e
comportamentos do público relacionados ao regime democrático.
JU – E o que, de fato, encontraram na pesquisa?
Rachel Meneguello
– Para os vários temas analisados e associados com o debate sobre a
democratização, encontramos que as atitudes de confiança ou desconfiança
política não constituem isoladamente explicações suficientes. Seus
determinantes recorrem a múltiplos fatores, como as dimensões
socioeconômicas e demográficas, a avaliação do desempenho da economia,
da política e de governos específicos, assim como os fatores associados
com a cultura política. Esse conjunto de relações explicativas responde à
própria natureza do fenômeno estudado: a desconfiança política é
estrutural e afeta a grande maioria das instituições.
Além
disso, ela não é um fenômeno transitório, associado a uma situação
específica, como denúncias de escândalos ou crises políticas. A
desconfiança é um fenômeno persistente da relação entre os cidadãos
brasileiros e as instituições, tal como já mostravam as pesquisas
conduzidas ao longo das últimas duas décadas. [No livro, os autores
analisam questões como o fenômeno da adesão ao regime democrático e da
legitimidade política; as relações entre corrupção e democracia; o papel
da mídia e a confiança política; confiança, cidadania, participação e
envolvimento político; confiança na justiça e na polícia e, finalmente, a
avaliação do desempenho de ações estatais observadas através dos
serviços públicos].
Com relação ao
sistema representativo, encontramos que, apesar das inquestionáveis
conquistas de procedimentos e mecanismos democráticos e do crescente
apoio à democracia no país, esse contexto não foi capaz de desfazer a
percepção negativa que se tem do Congresso e das instituições
representativas. Foi esse cenário que vimos em junho, nas manifestações
de rua no Brasil, quando grupos de manifestantes excluíam os partidos
como sujeitos legítimos dos protestos. Mas a crítica aos políticos e ao
sistema representativo não é de hoje. Se você toma pesquisas de décadas
anteriores, a percepção negativa da política institucional já estava
presente. Queríamos saber até que ponto isso poderia estar se
transformando no curso da consolidação democrática, e observamos que
esse processo não alterou a percepção que se tem da política
institucional.
O livro apresenta
reflexões que se utilizam de dados de 2006, mas que dão uma ideia de
quais são as bases potencialmente explicativas do que hoje estamos vendo
no país. No caso dos serviços públicos, em um dos capítulos, aponta-se
que os indivíduos mais escolarizados e com maior estímulo para busca de
informações políticas são os mais críticos às ações estatais.
JU – Como é possível definir o que é confiança e desconfiança no contexto da democracia?
Rachel Meneguello
– A confiabilidade no funcionamento do sistema é fundamental para a
credibilidade na democracia. É um fenômeno necessário para que você
apoie a maneira como as coisas vêm funcionando. A confiança é uma
dimensão que regula a relação entre pessoas, amigos, parentes, e
refere-se às expectativas que as pessoas têm a respeito do comportamento
dos outros com quem convivem. É preciso confiar nas pessoas para que
seu cotidiano tenha parâmetros estáveis de funcionamento e é preciso
confiar nas instituições para que o cotidiano tenha bases suficientes
para que o sistema seja apoiado. A democracia precisa desse
comprometimento do cidadão que, por sua vez, constitui-se com a crença
de que o papel dos intermediários, ou instituições, é desempenhado
adequadamente. Assim, é com essa expectativa que as pessoas deveriam
procurar a justiça, a polícia, deveriam votar e procurar seus
representantes.
JU – E quando
falamos de perceber o funcionamento das instituições, estamos tratando
de um processo de múltiplas influências, não só apenas da mídia?
Rachel Meneguello
– No processo de formação de opinião, o papel da mídia é fundamental,
mas não é o único. A mídia tem sido vista como responsável por alimentar
o cinismo e a desconfiança entre os cidadãos ou, por outro lado, como
fonte de informações capaz de estimular o seu engajamento político. Os
estudos no âmbito do projeto, nessa direção, apontam que as mensagens da
mídia interagem com outras dimensões, como o apoio aos governos e o
grau de sofisticação política das pessoas. Há ainda a experiência dos
indivíduos com as próprias instituições, como ocorre no caso dos
serviços públicos e da justiça.
JU – No cenário brasileiro, há confiança ou desconfiança nas instituições?
Rachel Meneguello
– Desconfiança. Esse é o problema. A democracia é um regime que requer
altos níveis de confiança pública nos mecanismos institucionais de
formação de governos, em razão da delegação de soberania e de poder que
os cidadãos fazem aos seus representantes eleitos. Mas essa desconfiança
não é acompanhada pela opinião de que é possível o país viver sem
Congresso e sem partidos; a grande maioria das pessoas afirma a
importância da presença das instituições representativas e esse é o
ponto interessante. Nos mais de 25 anos de democracia constituiu-se um
significativo apoio normativo à democracia e às instituições
representativas.
Os dados obtidos
mostram que os cidadãos brasileiros apoiam a presença dos partidos,
apoiam a existência do Congresso, mas estão completamente insatisfeitos e
desconfiados. São as instituições que acolhem as mais negativas
avaliações sobre seu desempenho: apenas 19% do total de entrevistados
avaliam positivamente os partidos, e 28% avaliam positivamente o
Congresso, contra, por exemplo, a instituição da Igreja, com uma
avaliação de mais de 87%. Constituiu-se ao longo desse período uma
importante defasagem entre a percepção da necessidade das instituições e
a avaliação de sua atuação e desempenho.
JU – Existe ume relação entre confiança política e participação, mobilização?
Rachel Meneguello
– Esse cenário é mais complexo, porque as dimensões da participação e
mobilização estão ligadas à capacidade de engajamento das pessoas. Isso
tem relação direta com os graus de associativismo, que por um lado,
encontra hoje baixos níveis no Brasil e no mundo em suas formas mais
convencionais, como a participação em sindicatos e associações. Por
outro lado, há uma capacidade inovadora nas novas formas de mobilização
viabilizadas pelas novas tecnologias.
De
toda forma, no caso das recentes mobilizações que testemunhamos,
entendo que traduzem, em parte, um contexto de forte desengajamento
cívico, que resulta da incapacidade dos partidos, dos políticos e das
instituições de intermediar o descontentamento e a crítica. Cabe apontar
que esse é um fenômeno amplo, encontrado nos vários países, e
relacionado à forma do governo representativo. A desconfiança, o
desengajamento cívico e o distanciamento com a política estão
interligados. Um não causa o outro, mas estão conectados.
JU – E qual o risco disso?
Rachel Meneguello
– Se esse cenário adquire patamares altos, condiciona-se a legitimidade
democrática. A legitimidade democrática deve ser entendida como um tipo
ideal relacionado às crenças dos cidadãos de que a política democrática
e as instituições sobre as quais ela se estabelece são a forma mais
apropriada para estruturar-se o sistema político. Dessa forma, ela
precisa de bases de sustentação. Mas isso não significa que o regime
está em risco de ruptura, não há indicadores que apontem esse cenário. O
que está em risco é a qualidade da democracia. No caso do sistema
representativo, se não houver confiança das pessoas nos partidos, o
risco de cair em sistemas populistas é grande. O populismo é uma
vertente que não interessa ao funcionamento democrático. Ele prescinde
da relação formal com os cidadãos. A liderança personalista que se
sustenta sem partidos é um risco.
JU – Por que é tão importante ter as pessoas confiando nas instituições?
Rachel Meneguello
– As instituições políticas são os intermediários entre os cidadãos e o
Estado, elas conferem as garantias de direitos e procedimentos e é a
percepção de que de fato elas se desempenham nessa direção é o que
garante o compromisso de cooperação dos cidadãos com o regime. Se as
novas tecnologias e redes sociais agilizam mobilizações e ações
políticas, falta-lhes capacidade de integrar e agregar demandas de forma
a canalizá-las para o sistema político. São as instituições que têm
essa função.
JU – O livro
aborda a questão do “cidadão crítico”, um interessante personagem para
as sociedades democráticas. Como podemos defini-lo?
Rachel Meneguello
– São cidadãos que acreditam na democracia, mas são altamente críticos
sobre o seu funcionamento. Não entendem que os partidos os estejam
representando adequadamente, não entendem que o governo responda
adequadamente às demandas, não entendem que o cotidiano e o bem-estar
estejam sendo devidamente providos pelo Estado, e etc. Entendem que há
lacunas importantes para esse grau de congruência entre cidadãos e
Estado.
JU – Esse cidadão crítico é o mesmo que foi para as ruas brasileiras em junho?
Rachel Meneguello
– Não creio que seja possível juntar todos os manifestantes em um único
conceito. Com toda certeza, boa parte deles era esse cidadão crítico.
Mas entendo que o que observamos ali foi um quadro de insatisfação
generalizada baseado em múltiplas demandas expressa a partir de formas
distintas de organização. Ainda é preciso maior clareza sobre as
mobilizações.
JU – Podemos dizer que o desafio para as sociedades democráticas é aprender a conviver com esse cidadão crítico?
Rachel Meneguello
– A democracia representativa é um sistema que originalmente distancia o
indivíduo da política, porque ele confere a sua soberania de escolha e
decisão ao representante eleito. A cobrança pelo desempenho de seus
agentes e mecanismos é consequência das suas bases de funcionamento.
Esse movimento crítico pela qualidade da democracia é parte integrante
do funcionamento democrático.
“A democracia é um regime
que requer altos níveis de
confiança pública nos
mecanismos institucionais de
formação de governos”
que requer altos níveis de
confiança pública nos
mecanismos institucionais de
formação de governos”
“Os cidadãos apoiam a presença
dos partidos, apoiam a existência do Congresso, mas estão
completamente insatisfeitos e
desconfiados”
dos partidos, apoiam a existência do Congresso, mas estão
completamente insatisfeitos e
desconfiados”
“Se as novas tecnologias
e redes sociais agilizam
mobilizações e ações políticas,
falta-lhes capacidade de integrar
e agregar demandas”
e redes sociais agilizam
mobilizações e ações políticas,
falta-lhes capacidade de integrar
e agregar demandas”
Destaque
“CONFIANÇA
em linguagem comum designa segurança de procedimentos diante de
diferentes circunstâncias que afetam a vida das pessoas. Ela se refere
às expectativas que as pessoas alimentam a respeito do comportamento dos
outros com quem convivem e interagem; e diz respeito à ação desses
outros quanto aos seus interesses, aspirações ou preferências. Nas
ciências sociais, o interesse pelo conceito está associado à preocupação
com os processos informais por meio dos quais as pessoas enfrentam
incertezas e as imprevisibilidades que decorrem da crescente
complexificação da vida, no contexto de um mundo crescentemente
globalizado, interdependente e fortemente condicionado por avanços
tecnológicos que afetaram profundamente a comunicação social [...]” José
Álvaro Moisés e Rachel Meneguello
SERVIÇO
Livro: “A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia”
Autores: José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello (orgs)
Editora: Edusp
Preço: R$ 56,00
Saiba mais: www.edusp.com.br
Livro: “A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia”
Autores: José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello (orgs)
Editora: Edusp
Preço: R$ 56,00
Saiba mais: www.edusp.com.br