terça-feira, 3 de dezembro de 2013

El Pais, os F.D. P. de sempre, sem remorsos, sem metanóia, sem vergonha. Que sejam malditos para sempre.


REPORTAGEM

A Bélgica esconde o homem leopardo

O Museu da África Central, herança da época colonial, se renova para transmitir uma ideia menos antiquada da história


Final do século XIX. Um barco escoltado por militares leva 250 congoleses para a Bélgica, onde participarão de um importante projeto no qual embarcou o homem mais poderoso do país. Leopoldo II pretende deixar seus súditos boquiabertos – e de quebra arrecadar verbas – com a Exposição Universal de 1897. Consegue seu objetivo com sobras. Más de 1,2 milhão de pessoas visitam a mostra de animais dissecados, utensílios e seres humanos procedentes de terras africanas. As duas centenas de homens, mulheres e crianças decoram durante meses a exposição nas suas cabanas. À noite, dormem em galpões militares. Sete deles não resistem ao inverno belga e morrem de gripe.
Sobre essas cinzas foi construído o Museu Real da África Central, que se tornou um dos mais populares do país. O edifício foi concluído em 1909 para abrigar uma coleção permanente que reflete como os europeus viam um continente que haviam dividido com régua e esquadro. Mas esse modelo de museu benevolente com o colonialismo chegou ao fim. O palácio de Tervuren será fechado amanhã para dar início a uma profunda renovação de forma e contexto. Quem quiser visitá-lo terá de esperar sua reabertura, em 2017. E o que encontrará então será muito diferente.

Basta dar uma volta pelo precioso palácio neoclássico que o segundo rei dos belgas mandou construir como sua pequena Versalhes para entender por que os responsáveis pelo centro decidiram dar um trato no lugar. “A Bélgica leva a civilização ao Congo”, lê-se numa estátua logo na entrada. Sobre o letreiro, um missionário abraça uma criança africana seminua, que parece precisar da chegada de um branco europeu que a eduque e cristianize. “Aqui nada mudou nos últimos 60 anos. E algumas salas não são tocadas desde a sua inauguração. Este é o último museu colonial do mundo. Precisamos atualizar a imagem que oferecemos”, afirma o diretor da instituição, Guido Gryseels.

Mas, para encontrar a obra que talvez melhor resuma o espírito da época – e a que suscita mais receio na comunidade africana, desejosa de se livrar de pesados rótulos – é preciso avançar um pouco. Em um corredor está instalada a estátua de um homem ameaçador, fantasiado de leopardo, atacando outro, ambos negros. Trata-se de uma figura que qualquer fã de Tintim reconhecerá como a fonte de inspiração para as aventuras do aguerrido jornalista que Hergé imaginou na África. Um homem-leopardo exatamente igual aparece em Tintim no Congo, álbum pelo qual o desenhista belga foi tachado de racista e colonialista.

A imagem não só alimenta o mito do africano selvagem. Serve também para explicar o substrato ideológico de um museu construído para a maior glória de Leopoldo II, o homem que fez do Estado Livre do Congo – cuja extensão equivalia a 76 vezes a da Bélgica – uma propriedade privada particular, na qual cultivaria, entre outras coisas, a borracha necessária para os pneus dos automóveis que começavam a se proliferar. Enquanto isso, vários milhões de congoleses perderam a vida. “Falou-se em 10 milhões, mas é um exagero. Houve de fato milhões de mortes, mas é impossível saber o número exato”, afirma Idesbal Goddeeris, historiador da Universidade de Lovaine.

“É o último museu colonial do mundo. Temos de atualizar a imagem que oferecemos”, explica seu diretor

Apesar da sua herança pesada, o museu que ora promove uma reforma de 238 milhões de reais também serve para fomentar o debate sobre o passado de um país mergulhado em uma onda de exames de consciência. Nos últimos 15 anos – com a publicação do livro Os Fantasmas de Leopoldo e a exposição A Memória do Congo –, a Bélgica começou a se questionar sobre sua responsabilidade diante daquela que foi vendida à época como uma campanha civilizatória pelo bem dos africanos. “Eu mesma, que trabalho aqui, fiquei sabendo graças a essa exposição que o Congo belga segregava as raças. Que nas lojas havia áreas para negros e para brancos. Não podia acreditar”, confessa uma funcionária do museu.

“Nós, belgas, abordamos de maneira muito emotiva a antiga colônia. Quase todos temos um familiar que esteve lá, convencido de ter ido por um bom motivo. O Congo possuía o melhor sistema de saúde e de educação, as melhores estradas de toda a África. O problema é que tudo foi feito com uma atitude muito paternalista”, afirma Gryseels. É verdade que todas as crianças aprendiam a ler e a escrever. Mas em 1960, quando ficou independente, o país só tinha 27 portadores de diplomas universitários.

Mas como resolver o dilema de incorporar uma maior sensibilidade sem adulterar a história? Os responsáveis pelo museu encontraram sua própria resposta. A coleção permanente ficará intacta. Nada se ocultará, mesmo que pareça ofensivo. Continuará sendo possível encontrar nas paredes 40 vezes o símbolo de Leopoldo II; e será mantida a lista dos belgas mortos no Congo, sem um só dos africanos que pereceram pela Bélgica. Mas serão incorporadas obras de artistas africanos contemporâneos, que tirem dos europeus brancos o monopólio do relato histórico. “Pode ser um bom passo adiante. Mas ainda poderíamos fazer mais para incorporar vozes da antiga colônia, para conhecermos melhor a nossa história”, acrescenta o historiador Goddeeris.

Christian-Joseph Djongakodi é uma dessas vozes que o museu escutou para a nova etapa. Ele espera que o acervo que se verá a partir de 2017 deixe de ser uma justificação da época colonial. Mas não consegue evitar uma farpa quando ouve falar da estátua do homem leopardo. “Claro que me causa rejeição, e mostra a ferida que muitos de nós, africanos, temos. Mas também vemos nessa figura algo do que nos orgulharmos. Representa a resistência dos negros contra os que conquistaram terras alheias”, responde Djongakodi.