REPORTAGEM
A Bélgica esconde o homem leopardo
O Museu da África Central, herança da época colonial, se renova para transmitir uma ideia menos antiquada da história
Luis Doncel
Bruxelas
30 NOV 2013 - 21:00 BRST
Final do século XIX. Um barco escoltado por militares leva 250
congoleses para a Bélgica, onde participarão de um importante projeto no
qual embarcou o homem mais poderoso do país. Leopoldo II pretende
deixar seus súditos boquiabertos – e de quebra arrecadar verbas – com a
Exposição Universal de 1897. Consegue seu objetivo com sobras. Más de
1,2 milhão de pessoas visitam a mostra de animais dissecados, utensílios
e seres humanos procedentes de terras africanas. As duas centenas de
homens, mulheres e crianças decoram durante meses a exposição nas suas
cabanas. À noite, dormem em galpões militares. Sete deles não resistem
ao inverno belga e morrem de gripe.
Sobre essas cinzas foi construído o Museu Real da África Central, que
se tornou um dos mais populares do país. O edifício foi concluído em
1909 para abrigar uma coleção permanente que reflete como os europeus
viam um continente que haviam dividido com régua e esquadro. Mas esse
modelo de museu benevolente com o colonialismo chegou ao fim. O palácio
de Tervuren será fechado amanhã para dar início a uma profunda renovação
de forma e contexto. Quem quiser visitá-lo terá de esperar sua
reabertura, em 2017. E o que encontrará então será muito diferente.
Basta dar uma volta pelo precioso palácio neoclássico que o segundo
rei dos belgas mandou construir como sua pequena Versalhes para entender
por que os responsáveis pelo centro decidiram dar um trato no lugar. “A
Bélgica leva a civilização ao Congo”, lê-se numa estátua logo na
entrada. Sobre o letreiro, um missionário abraça uma criança africana
seminua, que parece precisar da chegada de um branco europeu que a
eduque e cristianize. “Aqui nada mudou nos últimos 60 anos. E algumas
salas não são tocadas desde a sua inauguração. Este é o último museu
colonial do mundo. Precisamos atualizar a imagem que oferecemos”, afirma
o diretor da instituição, Guido Gryseels.
Mas, para encontrar a obra que talvez melhor resuma o espírito da
época – e a que suscita mais receio na comunidade africana, desejosa de
se livrar de pesados rótulos – é preciso avançar um pouco. Em um
corredor está instalada a estátua de um homem ameaçador, fantasiado de
leopardo, atacando outro, ambos negros. Trata-se de uma figura que
qualquer fã de Tintim reconhecerá como a fonte de inspiração para as
aventuras do aguerrido jornalista que Hergé imaginou na África. Um
homem-leopardo exatamente igual aparece em Tintim no Congo, álbum pelo qual o desenhista belga foi tachado de racista e colonialista.
A imagem não só alimenta o mito do africano selvagem. Serve também
para explicar o substrato ideológico de um museu construído para a maior
glória de Leopoldo II, o homem que fez do Estado Livre do Congo – cuja
extensão equivalia a 76 vezes a da Bélgica – uma propriedade privada
particular, na qual cultivaria, entre outras coisas, a borracha
necessária para os pneus dos automóveis que começavam a se proliferar.
Enquanto isso, vários milhões de congoleses perderam a vida. “Falou-se
em 10 milhões, mas é um exagero. Houve de fato milhões de mortes, mas é
impossível saber o número exato”, afirma Idesbal Goddeeris, historiador
da Universidade de Lovaine.
“É o último museu colonial do mundo. Temos de atualizar a imagem que oferecemos”, explica seu diretor
Apesar da sua herança pesada, o museu que ora promove uma reforma de
238 milhões de reais também serve para fomentar o debate sobre o passado
de um país mergulhado em uma onda de exames de consciência. Nos últimos
15 anos – com a publicação do livro Os Fantasmas de Leopoldo e a exposição A Memória do Congo –,
a Bélgica começou a se questionar sobre sua responsabilidade diante
daquela que foi vendida à época como uma campanha civilizatória pelo bem
dos africanos. “Eu mesma, que trabalho aqui, fiquei sabendo graças a
essa exposição que o Congo belga segregava as raças. Que nas lojas havia
áreas para negros e para brancos. Não podia acreditar”, confessa uma
funcionária do museu.
“Nós, belgas, abordamos de maneira muito emotiva a antiga colônia.
Quase todos temos um familiar que esteve lá, convencido de ter ido por
um bom motivo. O Congo possuía o melhor sistema de saúde e de educação,
as melhores estradas de toda a África. O problema é que tudo foi feito
com uma atitude muito paternalista”, afirma Gryseels. É verdade que
todas as crianças aprendiam a ler e a escrever. Mas em 1960, quando
ficou independente, o país só tinha 27 portadores de diplomas
universitários.
Mas como resolver o dilema de incorporar uma maior sensibilidade sem
adulterar a história? Os responsáveis pelo museu encontraram sua própria
resposta. A coleção permanente ficará intacta. Nada se ocultará, mesmo
que pareça ofensivo. Continuará sendo possível encontrar nas paredes 40
vezes o símbolo de Leopoldo II; e será mantida a lista dos belgas mortos
no Congo, sem um só dos africanos que pereceram pela Bélgica. Mas serão
incorporadas obras de artistas africanos contemporâneos, que tirem dos
europeus brancos o monopólio do relato histórico. “Pode ser um bom passo
adiante. Mas ainda poderíamos fazer mais para incorporar vozes da
antiga colônia, para conhecermos melhor a nossa história”, acrescenta o
historiador Goddeeris.
Christian-Joseph Djongakodi é uma dessas vozes que o museu escutou
para a nova etapa. Ele espera que o acervo que se verá a partir de 2017
deixe de ser uma justificação da época colonial. Mas não consegue evitar
uma farpa quando ouve falar da estátua do homem leopardo. “Claro que me
causa rejeição, e mostra a ferida que muitos de nós, africanos, temos.
Mas também vemos nessa figura algo do que nos orgulharmos. Representa a
resistência dos negros contra os que conquistaram terras alheias”,
responde Djongakodi.