Revisão de fatos históricos é caminho para resgatar a cidadania
As razões da morte do ex-presidente João Goulart, deposto em 1964 pelos militares, também estão sendo investigadas. Ele foi enterrado, por segunda vez, na semana passada, com honras de chefe de Estado
Carla Jiménez
São Paulo
10 DEZ 2013 - 16:46 BRST
Ao mesmo tempo em que uma Comissão da Verdade admite a possibilidade
de que o acidente do ex-presidente Juscelino Kubitcheck tenha sido
proposital, os restos mortais de outro ex-presidente, João Goulart, que
governou o país entre 1961 e 1964, foram enterrados, por segunda vez, no
último dia 6, em sua cidade natal, São Borja, mas desta vez com honras
de chefe de Estado.
Jango, como era conhecido Goulart, foi deposto pelo golpe militar de
1964, e conseguiu fugir para o Uruguai, onde se exilou, e depois seguiu
para a Argentina. Morreu de infarto, segundo informações oficiais, no
dia 6 de dezembro de 1976, no município de Mercedes, quase quatro meses
depois do acidente fatal de JK. A coincidência não reside somente no ano
da morte dos dois ex-presidentes. Ambos integravam a Frente Ampla, um
movimento que articulava a restauração da democracia no Brasil.
Há suspeitas de que Jango tenha sido envenenado, numa ação da
Operação Condor, articulação internacional de militares que tomaram o
poder nos anos 1970 no Chile, na Argentina e no Brasil. O corpo de Jango
foi exumado em novembro, por orientação da Comissão Nacional da
Verdade, para investigar se a sua morte foi realmente consequência de um
ataque cardíaco, ou se foi envenenado. “É um fato muito importante para
a memória histórica, para que se tome conhecimento sobre os resultados
desastrosos de um golpe militar”, diz o sociólogo Roberto Romano.
Para a historiadora Aurea Curti de Mello, tanto a revisão do papel de
Jango, como a retomada das investigações sobre a morte de JK, são
fundamentias para que as novas gerações tenham mais de um ponto de vista
sobre a sociedade brasileira. “Houve 30 anos de silêncio sobre diversas
passagens da história brasileira e agora o Estado começa a trabalhar
para levantar os fatos verdadeiros, o que representa um ganho para a
cidadania”, afirma Mello. “Quem vibra hoje com a prisão dos mensaleiros,
como José Genoino (ex-presidente do PT, que lutou contra a ditadura),
talvez não perceba que diversas mentiras lhe foram contadas na escolar e
contribuíram para sua formação”, completa.
O Brasil é um dos últimos países a reverem seus crimes cometidos
durante a ditadura, diferentemente da Argentina ou do Chile, que
montaram suas comissões da verdade logo no início do processo de
redemocratização pós ditadura, o que levou muitos algozes para a prisão
nesses países.
Civil e Militar
A Comissão Nacional da Verdade, instituída com apoio da Presidência
da República, em 2012, vem trabalhando para rever ao menos um ponto
sobre a ditadura brasileira. Ela não foi meramente militar, mas também
civil, ou seja, teve apoio das elites, tanto moral como financeiro. “É
muito importante que se saiba que foi uma ditadura não só militar, e que
contou com a cumplicidade plena, da elite da época. Em muitos casos, os
militares serviram de instrumento para essa elite”, avalia Romano.
O sociólogo, entretanto, lamenta que não tenha havido mais prudencia
por parte da Comissão da Verdade Vladimir Herzog, da Câmara Municipal de
São Paulo, ou seja restrita à cidade. “Faltou trabalhar dentro da
hierarquia das comissões, pois estamos falando da revisão da morte de um
chefe de Estado do país, e não de um prefeito da cidade”. Desde a
instauração da Comissão Nacional da Verdade, outras comissões foram
criadas para levantar documentos que venham a enriquecer a apuração dos
fatos relativos ao período militar. Inúmeros depoimentos foram colhidos,
principalmente das vítimas de tortura durante a ditadura.
As conclusões definitivas, entretanto, ainda não são conhecidas, o
que levou parentes das vítimas da ditadura a reclamarem abertamente
sobre a morosidade dos trabalhos. A posição da comissão municipal foi
vista, por alguns observadores, como uma manobra para que a CNV comece a
se posicionar.