Mesmo com tributos caros, Brasil pune cidadãos com serviços públicos ruins
Por mais de um mês, o Correio acompanhou pessoas que precisaram do governo. A maioria teve como retorno a decepção.
Diego Amorim
22 Dezembro de 2013 - 15:37
Perto das 9h de uma terça-feira, quase três horas após
sair de casa, Reinaldo Freire da Silva, 39 anos, chegou à agência do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) da Asa Sul, em Brasília, se
equilibrando em uma muleta. Dias antes, já havia peregrinado pelo posto
de Luziânia, onde mora, e do Gama, para onde mandaram que ele fosse. Em
lugar algum, o Estado soube resolver o problema: uma simples inscrição
no programa de reabilitação profissional por conta da amputação de um
terço da perna direita.
O drama de Reinaldo ilustra o de milhares de brasileiros quando precisam dos serviços públicos. Por mais de um mês, o Correio visitou órgãos como o INSS, a Receita Federal, a Junta Comercial, o Departamento de Trânsito, além de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). Burocracia excessiva, conflito de informações, gestão capenga e má vontade de funcionários despreparados ajudam a compor o leque da ineficiência diária do Estado.
Cada brasileiro, incluindo Reinaldo, terá pago ao fim de 2013 uma média de R$ 8.202 em impostos — o equivalente a 12 salários mínimos —, totalizando R$ 1,62 trilhão. O país não para de bater recordes de arrecadação. Em contrapartida, amarga o pior retorno dos tributos entre as 30 nações com a maior carga tributária (veja arte), conforme estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). É essa disparidade que potencializa a indignação externada nas manifestações que tomaram as ruas em junho deste ano, mas que de nada adiantaram para reverter a precariedade de serviços tão caros.
O drama de Reinaldo ilustra o de milhares de brasileiros quando precisam dos serviços públicos. Por mais de um mês, o Correio visitou órgãos como o INSS, a Receita Federal, a Junta Comercial, o Departamento de Trânsito, além de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). Burocracia excessiva, conflito de informações, gestão capenga e má vontade de funcionários despreparados ajudam a compor o leque da ineficiência diária do Estado.
Cada brasileiro, incluindo Reinaldo, terá pago ao fim de 2013 uma média de R$ 8.202 em impostos — o equivalente a 12 salários mínimos —, totalizando R$ 1,62 trilhão. O país não para de bater recordes de arrecadação. Em contrapartida, amarga o pior retorno dos tributos entre as 30 nações com a maior carga tributária (veja arte), conforme estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). É essa disparidade que potencializa a indignação externada nas manifestações que tomaram as ruas em junho deste ano, mas que de nada adiantaram para reverter a precariedade de serviços tão caros.
Descrença
Cansado do lenga-lenga do INSS, Reinaldo diz que só algo divino pode confortá-lo. “A gente vive num mundo injusto, é assim mesmo”, comenta ele, em um tom de conformismo facilmente encontrado nas salas de espera dos órgãos públicos. “Já sabia que ia ser difícil. Todos sempre falam que o INSS é complicado. Isso deixa a gente traumatizado. A pessoa tem que vir preparada psicologicamente”, completa, ao sair da agência da 502 Sul com uma sacola de documentos em mãos.
Aos 9 anos, Reinaldo foi atropelado por um trator, no interior do Piauí. O pai, com quem ele não tem mais contato, era quem dirigia a máquina. A mãe morreu de câncer um ano depois. De pé inchado e nunca bem tratado, o piauiense mudou-se para Brasília. Tocou a vida como cobrador de ônibus, auxiliar de padeiro e como mais fosse possível. Em outubro deste ano, desempregado, entregou-se à ordem médica e submeteu-se à cirurgia que o fará conviver com a muleta até a colocação de prótese.
Jogo de empurra
Casado e pai de seis filhos, Reinaldo não vê a hora de voltar a trabalhar. Por enquanto, vive à espera do programa de reabilitação profissional, sem o qual pode perder o auxílio que tem garantido o sustento da casa. Na central de atendimento do INSS, o beneficiário foi orientado a ir ao posto de Luziânia, onde a funcionária o despachou para o Gama, alertando que o fizesse logo, sob o risco de parar de receber o dinheiro do Estado. “Ela botou medo em mim, fez quase uma ameaça”, lembra.
Cansado do lenga-lenga do INSS, Reinaldo diz que só algo divino pode confortá-lo. “A gente vive num mundo injusto, é assim mesmo”, comenta ele, em um tom de conformismo facilmente encontrado nas salas de espera dos órgãos públicos. “Já sabia que ia ser difícil. Todos sempre falam que o INSS é complicado. Isso deixa a gente traumatizado. A pessoa tem que vir preparada psicologicamente”, completa, ao sair da agência da 502 Sul com uma sacola de documentos em mãos.
Aos 9 anos, Reinaldo foi atropelado por um trator, no interior do Piauí. O pai, com quem ele não tem mais contato, era quem dirigia a máquina. A mãe morreu de câncer um ano depois. De pé inchado e nunca bem tratado, o piauiense mudou-se para Brasília. Tocou a vida como cobrador de ônibus, auxiliar de padeiro e como mais fosse possível. Em outubro deste ano, desempregado, entregou-se à ordem médica e submeteu-se à cirurgia que o fará conviver com a muleta até a colocação de prótese.
Jogo de empurra
Casado e pai de seis filhos, Reinaldo não vê a hora de voltar a trabalhar. Por enquanto, vive à espera do programa de reabilitação profissional, sem o qual pode perder o auxílio que tem garantido o sustento da casa. Na central de atendimento do INSS, o beneficiário foi orientado a ir ao posto de Luziânia, onde a funcionária o despachou para o Gama, alertando que o fizesse logo, sob o risco de parar de receber o dinheiro do Estado. “Ela botou medo em mim, fez quase uma ameaça”, lembra.
No Gama, a perita do INSS o
destratou. Disse que não atenderia ninguém de Luziânia e que nada tinha a
ver com a orientação recebida por ele no município do Entorno goiano.
Reinaldo, então, retornou ao posto inicial e lá o enviaram para a Asa
Sul. “A falta de informação deixa a gente zonzo. Chego humildemente e só
encontro grosseria”, desabafa ele, que deveria estar de “repouso
absoluto”, sobretudo após duas recentes quedas no banheiro.
Com vermelhidão no local da cirurgia, de tanto perambular sem poder, Reinaldo gastou uma manhã inteira para, no destino final, ouvir de uma funcionária que voltasse a procurar o INSS em maio de 2014 e que, até lá, ficasse despreocupado. “Não entendi nada. Mas vou confiar, né? O que mais eu posso fazer?”, pergunta ele, tentando disfarçar a angústia, ao chegar em casa duas horas após deixar a agência.
» Burocracia e descaso
Reabilitação profissional é um serviço prestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a segurados, dependentes e deficientes sem vínculo com o órgão. Consiste em um programa com atividades multiprofissionais para preparar a pessoa para voltar a trabalhar. Em resposta ao Correio sobre o caso de Reinaldo, o INSS informa que ele ainda precisa ser avaliado na agência da 502 Sul. Enquanto esse processo não for feito, o benefício do piauiense está garantido, sendo estendido após uma eventual validação do programa. O INSS esclarece, ainda, que o segurado tem direito a pedir, na agência de Luziânia, ajuda de custo para suprir as despesas com deslocamento até a unidade que presta o serviço almejado. Reinaldo nunca foi informado de nada disso.
Conformismo fortalece incompetência
O drama dos brasileiros nos órgãos públicos configura mais uma daquelas tragédias anunciadas, na opinião de quem analisa, mas também sofre com essa realidade. Enquanto não houver uma reforma administrativa do Estado, com limitação da indicação de cargos políticos e foco na eficiência da prestação de serviços à população, pouco ou nada vai mudar, sustentam especialistas como o presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike.
Há quatro rankings na lanterna da lista dos países com o pior retorno em relação à carga tributária, o Brasil deve continuar nessa posição no levantamento que será divulgado em janeiro de 2014, segundo Olenike. “Vai demorar muito para sair desse lugar. E o problema não é arrecadação. Dinheiro tem, e não é pouco. O que falta é gestão, investimento”, sustenta ele, para quem o conformismo do brasileiro acaba contribuindo para a manutenção do quadro atual.
Mestre em administração pública e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fátima Bayma insiste na tese de que uma base educacional decadente explica, em parte, a propagação da precariedade dos serviços públicos brasileiros. “Estão em jogo reversões difíceis. Os cidadãos ainda não se dão conta de seus deveres e direitos”,
discorre. A vaidade dos políticos e o completo despreparo dos gestores públicos, acrescenta ela, também se apresentam como raízes do problema.
O Estado vive uma crise, na qual não consegue dar conta de suas atribuições, assumindo um papel devedor diante da sociedade, avalia o professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. “O Estado tem fracassado em tarefas fundamentais porque ainda vivemos um regime retrógrado”, diz. A “rede burocrática”, descreve Romano, serve justamente para travar a realização dos serviços e a prestação de contas.
Com vermelhidão no local da cirurgia, de tanto perambular sem poder, Reinaldo gastou uma manhã inteira para, no destino final, ouvir de uma funcionária que voltasse a procurar o INSS em maio de 2014 e que, até lá, ficasse despreocupado. “Não entendi nada. Mas vou confiar, né? O que mais eu posso fazer?”, pergunta ele, tentando disfarçar a angústia, ao chegar em casa duas horas após deixar a agência.
» Burocracia e descaso
Reabilitação profissional é um serviço prestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a segurados, dependentes e deficientes sem vínculo com o órgão. Consiste em um programa com atividades multiprofissionais para preparar a pessoa para voltar a trabalhar. Em resposta ao Correio sobre o caso de Reinaldo, o INSS informa que ele ainda precisa ser avaliado na agência da 502 Sul. Enquanto esse processo não for feito, o benefício do piauiense está garantido, sendo estendido após uma eventual validação do programa. O INSS esclarece, ainda, que o segurado tem direito a pedir, na agência de Luziânia, ajuda de custo para suprir as despesas com deslocamento até a unidade que presta o serviço almejado. Reinaldo nunca foi informado de nada disso.
Conformismo fortalece incompetência
O drama dos brasileiros nos órgãos públicos configura mais uma daquelas tragédias anunciadas, na opinião de quem analisa, mas também sofre com essa realidade. Enquanto não houver uma reforma administrativa do Estado, com limitação da indicação de cargos políticos e foco na eficiência da prestação de serviços à população, pouco ou nada vai mudar, sustentam especialistas como o presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike.
Há quatro rankings na lanterna da lista dos países com o pior retorno em relação à carga tributária, o Brasil deve continuar nessa posição no levantamento que será divulgado em janeiro de 2014, segundo Olenike. “Vai demorar muito para sair desse lugar. E o problema não é arrecadação. Dinheiro tem, e não é pouco. O que falta é gestão, investimento”, sustenta ele, para quem o conformismo do brasileiro acaba contribuindo para a manutenção do quadro atual.
Mestre em administração pública e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fátima Bayma insiste na tese de que uma base educacional decadente explica, em parte, a propagação da precariedade dos serviços públicos brasileiros. “Estão em jogo reversões difíceis. Os cidadãos ainda não se dão conta de seus deveres e direitos”,
discorre. A vaidade dos políticos e o completo despreparo dos gestores públicos, acrescenta ela, também se apresentam como raízes do problema.
O Estado vive uma crise, na qual não consegue dar conta de suas atribuições, assumindo um papel devedor diante da sociedade, avalia o professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. “O Estado tem fracassado em tarefas fundamentais porque ainda vivemos um regime retrógrado”, diz. A “rede burocrática”, descreve Romano, serve justamente para travar a realização dos serviços e a prestação de contas.