Maria Sylvia Carvalho Franco: Insólitas prisões
"Quatro da madrugada: instante entre a noite e o amanhecer, quando as
decisões lá no topo já se firmaram, quando o que deverá acontecer já
aconteceu. Alguém bate à porta, urgente. Quem é? Não se sabe."
Com essa matriz política, Jan Kott abre sua reflexão sobre o golpe de
Estado urdido em "Ricardo 3º", peça em que a violência dilacera as
tramas do cotidiano: súbito, a força física e a intimidação moral
irrompem nos afazeres, no lazer, no sono. "Quem dentre nós, pelo menos
uma vez na vida, não foi assim despertado?" O ensaio de Kott sobre
"Ricardo 3º" faz dessa figura uma grande metáfora da "húbris" política,
desvelando a essência do ato despótico e sua perene ameaça.
Assistimos, aqui e agora, à reiteração dessas práticas. As detenções dos
réus da ação penal 470 ocorreram após um processo transparente, mas o
foram com bizarria do prisma ético. Sua imposição intempestiva, em longo
feriado, valeu-se do emblemático Dia da República e da suspensão, no
calendário, de três dias úteis. Pergunta-se o porque da pressa: Joaquim
Barbosa valeu-se do recesso para decidir sozinho, ignorando seus pares?
A efetivação repentina dessas prisões, após um lento processo, insere o
monopólio estatal da força física no cotidiano das pessoas. Noite que
enseja emboscadas, ou feriado que paralisa a vida pública e privada,
ambas as situações cancelam as garantias constitucionais.
Não visamos, aqui, a procedência das prisões, mas seu arbitrário "modus
faciendi". O uso do feriado não é inédito nas práticas políticas
autoritárias: entre nós, basta citar os ardilosos planos econômicos,
como o de Collor. Há mesmo uma história dessas tocaias: nas imagens
acentuadas por Kott, o golpe de Ricardo 3º condensa-se na semana de
Todos os Santos e Finados, tropos polissêmicos onde o dia dos mortos e o
morticínio do tirano conjugam-se: os assassinatos, processos e
decapitações não por acaso efetivam-se quando a vida social está
suspensa, em luto. Inglaterra elisabetana ou República brasileira, a
conivência com tais condutas resulta na mesma inversão de valores e
práticas já presentes na democracia grega e sintetizadas por Platão como
raízes do poder tirânico.
Por fim, completando os atentados à cidadania, juntas médicas
ratificaram o desrespeito a um preso doente. No laudo sobre a saúde de
José Genoino, afirma-se que ele pode suportar o cárcere: bastam
remédios, dieta, exercícios regulares e (pasme-se!) evitar "fatores
psicológicos estressantes". Os doutores ironizam ou ignoram o que
significa uma prisão, enunciando um oximoro: cadeia sem trauma.
As juntas que se pronunciaram sobre Genoino --e talvez as que examinam
Jefferson-- esqueceram-se de que avaliam prisioneiros cujas vidas não se
assemelham à dos pacientes abstratos cujos diagnósticos pautam-se pelos
parâmetros rotinizados oferecidos pela tecnologia médica. Lendo seus
pareceres, tem-se o sentimento de que a submissão aos poderosos avalizou
tais contrassensos. Tanto mais grave torna-se essa conduta quando
distinguimos a atual crise nos meios médicos brasileiros e lembramos o
quanto a bioética vem sendo debatida mundialmente.
Após a renúncia de Genoino, as circunstâncias de sua captura podem
parecer episódicas, mas, nelas, o imprudente uso do poder evidencia o
vezo, perene no Estado brasileiro, de afrontar o cidadão.
A crítica ao "modus operandi" das prisões não implicam tolerância ao
crime; pelo contrário, ela pressupõe que sentenças legais não autorizam
sua execução ilegítima.
Vale recordar que as denúncias contra a democracia martelam a tese de
que nela é ínsita a impunidade. Já dizia Platão ao invectivar o regime
ateniense das liberdades que, na polis "licenciosa", condenados à morte
ou ao exílio não "deixam a praça, circulam em público, como se fossem
indiferentes a todos, invisíveis, como fantasmas de heróis". Pelo visto,
alguns magistrados são platônicos e gostariam de banir a democracia
para sempre.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)