O Pensamento Conservador.
Revista de Sociologia Política.
Roberto Romano
“Quando falamos de um pensamento político, devemos lembrar as
consciências onde um dia ele tornar-se-á princípio inquestionável,
norteando a vida e a morte. O estudo sobre as multidões torna-se cada
vez mais premente, sobretudo quando investigamos a violência racista e a
injustiça social, garantidas pelos meios de imposição persuasiva de
grande alcance, abarcando homens e mulheres que se entrechocam nos
vários cantos terrestres.Nesse campo, suscita interesse cada vez maior
interesse o lúcido Massa e poder de Elias Canetti (CANETTI, 1986). Neste
monumento antropológico, filosófico, psicológico e político,
encontra-se uma descrição rigorosa do comportamento massificado que
domina um ou outro instante de nossa vida. Talvez em termos políticos
tenhamos a coragem de nadar contra a corrente. Não raro, em plano
individual nos distanciamos do juízo público. Cedo ou tarde sentimos a
pressão da massa em nossas opções. Quando nos acostumamos à coragem de
refletir, fugindo do lugar comum, nos envergonhamos das frases ditas
para não sermos linchados, física ou espiritualmente, pelo grande
número. Se vivemos em regime político de opressão, gradativamente
repetimos lugares comuns e teses batidas pelos propagandistas. Raros
dentre nós chegam ao fim de seus dias sem dobrar a espinha e a língua,
desobedecendo os ditadores que decretam morticínios em nome do povo,
divindade sedenta de sangue que possui mil faces e apelidos. Nós
brasileiros, conhecemos alguns, como os adeptos do “ame-o ou deixe-o”
ditatorial, os “fiscais do presidente”, “os descamisados” etc.
Elias Canetti apresenta o espírito moderno imerso nos ritmos e nos
movimentos de massa. Sua obra prima foi gerada como réplica aos
movimentos nazistas e fascistas que infernizaram o século vinte. Hoje,
Canetti está morto, mas seu livro aí está, como advertência e como
instrumento para a luta contra o neo-nazismo, o neo-fascismo, que pouco
têm de “neo” e apresentam muito das ideologias genocidas aceitas pelas
hordas cujo pensamento se reduziu à repetição maquinal dos slogans.
Entre estes, um traz ressonâncias sinistras, neste momento: “Desperta
Alemanha” (“Deutschland erwache”). No fundo da alma autoritária, na
Alemanha ou no Brasil, tais gritos despertam ódios, mentiras, calúnias,
perseguições. Não por acaso os propagandistas, mudando o senhor da hora,
permanecem os mesmos. Com idênticas técnicas enganadoras.
Importa conhecer, com as massas e suas frases prontas e de sentido
semanticamente restrito, os pensadores que produziram a fala que hoje se
repete no rádio, na televisão, nas revistas, no cinema, no teatro, nos
púlpitos e nas cátedras. Sigo ainda a sugestão de Elias Canetti, em
outro livro seu, O território do homem (CANETTI, 1978) onde se analisa
dois teóricos conservadores e autoritários. Refiro-me a Thomas Hobbes e a
Joseph De Maistre. Canetti diz com propósito: os dois pensadores
apresentam-nos o terrível. De Maistre, que escreveu contra a revolução e
Hobbes, que previu os eventos revolucionários em sua terra, ambos
tiveram medo, e investigaram as razões pelas quais os homens temem a
natureza e os seus iguais. Ambos dedicaram sua vida ao estudo da guerra
de todos contra todos. Suas doutrinas serviram aos senhores que
aniquilaram milhões de almas, desde Napoleão até os militantes da
suástica ou do Kmer vermelho.
Joseph De Maistre, indica Elias Canetti, possui força persuasiva imensa quando fala das guerras “providenciais” enviadas por Deus para castigo dos homens. Suas descrições dos conflitos armados são verdadeiras, apesar de ser o seu intento desiludir os que buscavam liberar o Estado moderno do jugo teológico-político.
Hobbes, situado na outra ponta do pensamento conservador, sem apelar
para o divino na justificação do mando, também é admirado por Canetti,
justo porque nele o poder aparece sem disfarces. Repito as suas próprias
enunciações: Hobbes “é o único pensador que não esconde com um véu o
poder, sua importância e seu peso, sua posição no centro de todas as
ações humanas; ele também não o glorifica. [...] Ele sabe o que é o
medo; seus cálculos o exorcizam [...] Ela não subestima o peso do
Estado. Rousseau, perto dele, é só um garoto falastrão. [...] Sua
incredulidade religiosa foi uma oportunidade incompatível: as promessas
baratas não tinham influência alguma sobre seu medo. Ele não explica sua
aversão pelo grito das massas. Mas o nota. [...] Maquiavel, de quem
muito se fala, é só uma de suas metades, sua metade clássica. O Leviatã é
considerado uma “Bíblia ideal”, na minha coleção de livros mais
importantes, entre os quais, bem entendido, os livros de meus inimigos
ocupam lugar de honra. Os livros de nossos inimigos agudizam nosso
espírito, enquanto os outros o enfraquecem [...] Nem a Política de
Aristóteles, nem o Príncipe de Maquiavel, nem muito menos O Contrato
Social de Rousseau integram esta minha ‘Bíblia’ (CANETTI, 1978:
153-155).
Perdoando a exigência de Canetti, porque ele pode escolher com
severidade entre os autores a serem tidos como exemplares, digamos que
sua tese sobre os escritos de nossos adversários que devem ser lidos é
estratégica para quem deseja um regime democrático. Em meu pequeno Conservadorismo romântico
(ROMANO, 1981), discutindo o pensamento que ajudou a solidificar as
tiranias modernas, com os sentimentos contra a ciência e a razão, eu
advertia para a cegueira de se ler apenas os textos que confirmam o
nosso modo de enxergar as coisas. Chega a ser cômica a atitude de
professores e militantes, quando, em tom sectário, buscam preservar a
virgindade ideológica de seus alunos ou companheiros, impedindo que eles
consultem autores vistos como reacionários.
Canetti explora o símile da guerra, estrangeira ou civil, em Hobbes e
De Maistre, indicando que os dois escritores constroem suas políticas
para o controle dos homens. Escolho, nesta ocasião, outra imagem comum
aos dois teóricos, a figura do estraçalhamento do corpo humano, algo a
ser evitado, segundo Hobbes, mas servindo como advertência aos que
acreditam na razão humana sem Deus, no entender de Joseph De Maistre.
Nas Soirées de Saint-Petersbourg De Maistre desenha a
figura do carrasco. Solitário, ele espera o instante em que um político
torpe, de preferência ministro de Estado, venha exigir os seus
serviços. “Ele parte, chega à praça pública coberta pela massa amontoada
e palpitante. Jogam-lhe nas mãos um envenenador, um parricida, um
sacrílego: ele o toma, o estende, liga-o numa cruz horizontal, levanta o
braço: faz-se então um silêncio horripilante e ouve-se apenas o ruído
dos ossos que se quebram sob a barra, e os hurros da vítima. Ele a
livra, carrega-a para uma roda de suplício: os membros quebrados unem-se
nos raios, a cabeça pende, os cabelos se eriçam e a sua boca, aberta
como fornalha, só envia por intervalos uma pequena quantidade de
palavras sangrentas implorando a morte. Ele acabou o serviço, o seu
coração bate, mas de contentamento. Ninguém suplicia melhor do que eu.
Ele desce, estende a mão suja de sangue, e a justiça joga nela algumas
peças de ouro que ele carrega através de uma dupla fila de homens cujos
corpos se afastam, horrorizados. Ele, senta-se à mesa e come. No leito, a
seguir, ele dorme. Amanhã, despertado, sonha em outra coisa bem
diferente do que realizou na véspera. É um homem? Sim, é recebido por
Deus nos seus templos, onde recebe permissão para rezar. Ele não é
criminoso, mas nenhuma língua se permite dizer que ele é virtuoso,
honesto, estimável etc. Nenhum elogio moral lhe convém, pois todos
supõem relações com os homens, e isto ele não possui” (DE MAISTRE, 1960:
40).
Quem vive numa situação dominada pela violência e onde o linchamento é
fato banal, saberá apreciar este retrato. Porque, caso oposto, seria
preciso que os próprios governantes, ou então os soldados, matassem
pessoas no cotidiano. Ambos, carrasco e soldados, matam com licitude.
Mas o primeiro é coberto de opróbrio, enquanto o segundo recebe glórias.
Caso o soldado matasse como seu colega de profissão, ele seria visto
com o mesmo horror e medo. O mando repousa sobre estes dois pilares
mortíferos. O poder manifesta a vontade divina, para a qual a ordem e o
bem não correspondem à nossa inteligência, aos nossos fins. O cadafalso é
um altar, lemos no mesmo livro.
Não se deve emitir gracejos sobre tais descrições de J. De Maistre.
Quem se lembra dos campos de concentração, onde carrascos-militares
cumpriram burocraticamente seu ofício, sabe a que realidade terrível ele
se refere. O poder, segundo esta vertente conservadora, se almeja
evitar que toda a sociedade se estraçalhe isto teria ocorrido durante o
Terror jacobino deve estraçalhar, como se fosse a mão divina, homens
inocentes ou culpados, pouco importa. Fundamental é a hierarquia e a
ordem na sociedade, garantidas pelo Estado. Deste último não se espera
“justiça” ou “bondade”, mas que impeça o delírio filosófico dos
democratas, cujos resultados teriam sido a indisciplina e o caos.
No outro lado temos Hobbes. Nele, também encontramos a figura do despedaçamento. O povo, lemos no capítulo 12 do rigoroso De cive,
faz como as filhas estultas de Eson. Estas últimas, aconselhadas por
Medéia, cortaram seu pai em pedacinhos, colocando-o para cozinhar. Tal
imagem exemplifica o pensamento conservador de Hobbes. A res publica é
como o velho Eson. Se a massa a quer reformar, seguindo sofistas e
demagogos, acaba estraçalhando o que era um todo adquirido de forma
artificial pela ciência e pela técnica. A demagogia, desde os primeiros
inícios do Estado antigo, diz Hobbes, sempre aproveitou a raiva dos
pobres, dizendo-lhes que a culpa de sua miséria seria localizável nos
governantes, e não em sua própria preguiça ou prodigalidade (HOBBES,
1982). É bem conhecido, continua Hobbes: quem imagina ter sobre suas
costas os fardos da república, como os impostos, sem vantagens,
inclina-se à sedição.
Além desta miséria material, existe a sede de honra, partilhada por todos os homens. A massa é tola. Disfarçados, em seu interior, os espertos e ambiciosos manipulam sua opinião auto-indulgente (a massa, na fala dos demagogos, nunca erra, sempre escolhe bem, é infalível, desde que apóie sua causa quando eles se candidatam aos cargos de mando) com os cantos de sereia, ou com a retórica de Medéia. Tudo vai mal? Então destruamos o Estado, par rejuvenescê-lo, nele introduzindo a justiça perfeita.
Não por acaso essas imagens do estraçalhamento, o carrasco e as
filhas de Eson, aparecem nestes pensadores do conservantismo europeu
moderno. Hobbes quis impedir que a res publica se esfacelasse, propondo
uma doutrina onde o povo não conta. Como os pensadores clássicos do
século 17, ele opõe o povo ao vulgo. Esta distinção encontra-se mesmo em
Hegel. Basta reler as considerações da Filosofia do direito (HEGEL,
1975: 318) sobre a opinião pública. É preciso, segundo Hobbes, produzir o
Estado de maneira artificial, enquanto máquina que impede os homens de
se entre-devorarem na busca de riqueza e honra, ou nas chacinas
efetivadas pelo gozo de mandar. O vulgo rebelde serve como instrumento
monstruoso nas mãos dos que o enganam visando impor o mando de facções.
Joseph De Maistre escreve muito tempo após Hobbes. Quando a Revolução
Francesa entrou em refluxo, seus escritos tornaram-se importantes na
Europa. A força dos governantes deve ser absoluta, pensava J. De
Maistre, porque ela tem como fonte a vontade divina. A força dos
governantes deve ser absoluta, afirmara Hobbes, porque só os príncipes
possuem soberania e saber para aplicá-la racionalmente. Entre estas duas
fórmulas distintas, instalou-se o pensamento liberal e as
representações democráticas que, nas Luzes, conheceram o seu apogeu.
Também nelas definiu-se o ideal de cidadania democrática que hoje
disputa, com o pensamento conservador, as preferências dos intelectuais e
das massas.
A diferença entre Hobbes e a época das Luzes, esta última com suas
esperanças pedagógicas – sua confiança na razão e na liberdade – pode
ser notada na atitude de Dideroot, o pai da Enciclopédia, diante da
mesma fábula de Eson decepado por suas filhas. Em Hobbes a história (que
encontramos nas Metamorfoses de Ovídio, no livro 7),
indicaria que o povo, com as filhas de Eson, destrói a república.
Diderot enxerga no texto uma outra moral: o despedaçamento dá certo,
Eson rejuvenesce. Em Hobbes, a saúde do corpo sócio-político exclui o
conflito e a idéia ou prática de um povo soberano. Depois do pacto, este
é um conceito subversivo, pensa Hobbes, condenando a eloqüência, por
ele definida como demagogia e sofística. Diderot exalta a oratória. Ela
deslancharia a resistência legítima ao poderoso tirânico e arbitrário. A
rebelião é recurso dos povos contra os soberanos que romperam o
contrato social separando “os seus interesses pessoais do interesse da
sociedade”. Há um excelente trabalho sobre estes problemas, escrito por
Gianluigi Goggi (Cf. GOGGI, 1985: 173).
As primeiras linhas da “Epístola Dedicatória”, no De cive,
mostram os cidadãos romanos como lobos vorazes que destroem os outros
povos, vivendo, como os reis, de rapina. Diderot inverteu esta imagem,
acompanhando o juízo de Catão repetido por Plutarco: zôon ô basileus,
sarcophagon estin. Esta é uma referência clássica à face violenta do rei
devorador de seu povo, na qual retoma-se o libelo de Aquiles contra
Agamenon. Como lembra Erasmo de Roterdam (ERASMO, 1980: 130-131) esta
frase pode aproximar-se daquela outra, escrita por Hesíodo, mencionando o
rei como “devorador de presentes”. O próprio Erasmo acentua: melhor
seria dizer que o rei é devorador de tudo.
Todas essas inversões fazem lembrar que o século 18, leitor do
pensamento greco-latino, soube apanhar, como Diderot e outros, a
essência da teoria hobbesiana conservadora. Diderot inverteu o nome do
verdadeiro estraçalhador da república. Não o povo, mas o governante
tirânico é quem arrasa a vida estatal e societária. O direito à
auto-consciência — mas tarde chamado “direito do cidadão” — sobrepõe-se
no século das Luzes, à raison d’État. Com o fim da Revolução Francesa,
na Contra-Revolução romântica, exemplificada por De Maistre entre
outros, volta o elogio do soberano contra o povo, proibindo o direito de
crítica, de rebelião e de reforma do Estado “a partir de baixo”.
Chegamos ao essencial na política conservadora. Hobbes ou De Maistre,
com seus êmulos do século 19 e 20, consideram que o povo não é
soberano, ele apenas suporta a soberania. Basta ler o arqui-conservador
Donoso Cortés. Em sua lição de direito político (29 de novembro, 1836)
aquele doutrinário afirma-se contra a soberania popular. “A soberania de
direito”, afirma ele, “é una e indivisível. Se ela é própria do homem,
ela não pertence a Deus. Se está localizada na sociedade, não existe no
céu. A soberania popular, pois, é ateísmo e se o ateísmo pode
introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode
introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O
soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque
se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente
e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as
obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a
cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o
que obedece. Soberano é o que tem direitos, súdito o que cumpre
obrigações. Assim, o princípio da soberania popular é ateu e tirânico,
porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não
tem obrigações há tirania”.
Sainte Beuve diz, em algum lugar, que se retirarmos Deus de Pascal,
teremos a doutrina hobbesiana inteira. Algo parecido ocorre com as
relações entre Donoso Cortés e Hobbes. Na mesma lição citada, Donoso
aponta o autor do Leviatã e do De cive como a grande muralha contra a
doutrina da soberania popular. A soberania de direito divino conhecia,
diz Cortéz, alguns limites. “mas a soberania definida por Hobbes nega
toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo,
desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo.
Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à
opressão, mesmo a mais delirante e absurda” (CORTÉZ, 1970: 342-347).
As massas, diz nosso doutrinário em outro lugar (“De la monarquia
absoluta en Espana”, 1838) “carecem de unidade, de previsão, de
concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao
redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a
unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona
[...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade
para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem
interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que
se excluem e individualidades que se chocam”.
O povo é existência fugaz que não possui estabilidade, logo, não
garante nenhuma soberania. Sem esta última, não existe poder (Soberano é
o que manda, lembremos desta definição dada por Donoso, estratégica nas
doutrinas sobre a soberania no século 20, especialmente nas
jurisprudências próximas ao nazismo), sem poder, desaparecem os vínculos
sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo e
o grande vício do liberalismo e das Luzes democráticas. “Povo” é nome
enganador, quando posto na boca dos que nele depositam esperanças,
afirma Donoso Cortés, em texto escrito entre 1851 e 1853 (“Despachos
desde Paris”).
“Em geral”, declara Cortés, “os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. O que sei é que para a França só existe salvação na ditadura. Nela, não há ditadura possível ou pelo menos provável, se não vem do povo e não se apóia no povo. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido”. No autor do “Discurso sobre a ditadura”, não estranha encontrarmos, neste pseudo elogio do povo, a crítica mais virulenta ao Estado de direito moderno. Quem deseja pautar o poder através da Constituição é um fraco, perdido antes de sabê-lo. “O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto”.
“Soberano é o que manda”. Na pena de Cortés, os democráticos e
liberais são gente que discute sem decidir. Quando percebe esta
indecisão perpétua o povo joga-se nos braços dos poderosos, dos que são
vencedores, fugindo dos vencidos. Esta forma de pensar une todos os
reacionários do século anterior e do nosso tempo. Permitam-me citar um
trecho de meu Conservadorismo romântico, sobre este ponto. Segundo
Novalis, há uma diferença radical entre monarca e súditos. O rei é
verticalmente superior aos homens rasos. Enquanto todo cidadão é “um
funcionário do Estado”, o rei “não é um cidadão, logo, não é um
funcionário. O sinal distintivo da monarquia, é que ela repousa na
crença em um homem superior [...] o rei é um homem erigido em fatalidade
terrestre”.
O rei é eleito por seu nascimento, não está restrito a nada que não
seja a expressão direta de sua natureza. Contra os “infelizes
filistinos” que, nas Assembléias francesas, quiseram impor uma
Constituição ao rei, Novalis responde: “sou um homem profundamente
antijurídico”. Constituições escritas são artificiais, produzidas pela
reunião, discussão e contrato entre inferiores (ROMANO, 1981: 152). A
soberania popular é afastada também por De Bonald, outro pai do
pensamento conservador moderno. “O direito do povo a governar a si
próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o
direito de ser governado” (GODECHOT, 1961). Novalis disse a coisa com
todas as letras, sem mascar as palavras, para usarmos a expressão
francesa: “O povo é como uma criança, um problema individual,
pedagógico”. Esta sinceridade bruta ataca a essência das Luzes modernas,
para as quais, seguindo I. Kant, a maioridade é nossa meta e labor.
Neste plano, pode-se apontar um traço conservador fortíssimo no pensamento de Hegel, filósofo ora visto como liberal, ora como pai do totalitarismo. Hegel assumiu a mesma recusa dos conservadores diante da soberania popular, especialmente na Filosofia do direito (Parágrafo 279, nota). A soberania pertence ao Estado. O conceito de soberania popular só é concreto neste todo. “Mas é opondo-a à soberania que reside no monarca que se colocou, em época recente, a falar de soberania popular. Vista nesta oposição, a dita soberania integra estes pensamentos confusos que têm por base uma representação grosseira do povo. Sem seu monarca e sem a organização que a ele se une necessária e imediatamente, o povo é a massa informe que não é mais um Estado…” (HEGEL, 1975: 259).
“Difficile est satiram non scribere”. Com esta frase, Hans Kelsen
termina suas considerações críticas ao redor de algumas posições
jurídicas alemãs, em seu tempo (KELSEN, 1989: 469). A frase irônica,
desferida principalmente contra Ebers, pode ser endereçada a todos os
pensadores, de J. De Maistre até Carl Schmitt, contrários às Luzes e à
razão científica no cuidado das coisas políticas e jurídicas. O
pensamento que herdou os pressupostos do século 18 liberal e
democrático, bem como racionalista, busca, na trilha de Espinosa, a
salvação da res publica no maior número de casos, deixando a exceção.
Mesmo dessubstancializando o conceito de soberania, como em Kelsen,
busca-se, nesta vertente, o que é normal, afastando-se a patologia do
poder.
A força do ataque conservador está justo em acentuar a patologia do
mando e a exceção política. Como vimos, Hobbes, De Maistre, Donoso
Cortés sublinham a doença do corpo social para garantir, de múltiplos
modos, a ditadura permanente do governante sobre (e contra) os
governados. Nestas águas banharam-se Augusto Comte e outros teóricos que
viram na idéia de soberania popular apenas um resquício da idade
metafísica, o século 18 e a Revolução Francesa.
Edmund Burke enuncia o princípio de que o povo, a maioria, não é soberano, porque o governo difere de um problema aritmético. “Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim” (BURKE, 1976: 141).
Voltemos a De Maistre. Evitei, até agora, citar seu texto principal, o famoso Du Pape.
Mas lembremos sua doutrina sobre a soberania, apresentada no Livro 2
daquela obra. Como seria previsível, De Maistre, o autor da imagem sobre
o carrasco, começa seus considerandos pela justiça. O homem reto não
teme o soberano, o celerado sempre o teme. Mesmo que o príncipe seja
dissoluto, ele tem a virtude de garantir a aplicação geral da lei. Ao
tratar a origem da soberania, vemos que nosso autor rompe com todas as
idéias modernas do contrato, desde os juristas protestantes, como
Althusius, até Rousseau. “Sendo o homem necessariamente associado e
necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no
estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos
não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza
humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não
sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade”.
Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem
soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, ele “deve-lhe a
existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve
ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e
que dela o exclui mesmo quase para sempre”.
Inexiste soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou
não. “Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada’, Nada é mais
falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza
não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três
poderes, que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que
podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode
contra eles? NADA” (maiúsculas do próprio De Maistre) (DE MAISTRE, 1966:
122-137).
Um continuador explícito de Joseph De Maistre, Augusto Comte dele
retirou lições de soberania conservadora. O resultado principal é a
proposta de uma ditadura positivista, sem a intervenção dos parlamentos,
e a instauração de um poder espiritual, com presença de intelectuais,
sacerdotes da Humanidade, dirigindo as consciências da massa. Neste
Estado, dasapareceria a noção de direito. “Todo direito humano é absurdo
e imoral. Uma vez que não mais existem direitos divinos, esta noção
deve apagar-se completamente” (COMTE, 1966: 237-238).
Ditadura por ditadura, cabe lembrar que Donoso Cortés já havia
efetivado a “dedução” acima. O resultado é praticamente o mesmo: quem
explica a operação é Carl Schmitt: “Desde 1848 a doutrina do direito
público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou
funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o
`poder constituinte’ do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de
legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua
relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento
decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo
extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso
Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do
realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não
existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional.
Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que
Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento
decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo
matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem’” (SCHMITT, 1972: 73).
“Soberano é quem manda”. Este mote, produzido por Donoso Cortés,
aninha-se na frase de Carl Schmitt, citada em todos os discursos,
velados ou explícitos, que adotam a ditadura como solução para os
impasses da vida pública: “Soberano, é quem decide sobre o Estado de
exceção”. Este célebre “extremus necessitatus casus” tem sido bastante
sublinhado na doutrina de Carl Schmitt (LOWITH, 1991: 16). Não por
acaso, no mesmo número da revista Les Temps Modernes, que publica o
texto de Lowith, podemos ler a tradução de importante escrito de Carl
Schmitt sobre o Estado enquanto mecanismo em Hobbes e Descartes. Esta é
uma característica estratégica do pensamento conservador: ele sabe
buscar suas fontes e seus inimigos, não raro editando seus textos. Isto
ocorreu com F. Tönnies, o maior estudioso de Hobbes, e seu editor, que
levou anos de engenho para escrever uma refutação monumental de sua
visão mecânica e dessacralizada, o que foi aproveitado de Hobbes nas
Luzes democráticas. Refiro-me, naturalmente, ao clássico da sociologia
romântica, Comunidade e sociedade. Mas vejamos o que diz Carl Schmitt
sobre o Estado hobbesiano. Em primeiro lugar, o banal: o Estado, na
perspectiva de Hobbes, é machina machinarum, o primeiro produto da era
técnica. Mas é algo que vem antes, nas considerações de Schmitt sobre
Hobbes que mais nos interessa: “na condição civil, estatal, todos os
cidadãos têm segurança de sua existência física. A tranqüilidade, a
segurança, a ordem, reinam. Como sabemos, isto é uma definição da
polícia. O Estado moderno e a polícia nasceram ao mesmo tempo e a
instituição essencial deste Estado de Segurança é a polícia”. O artigo
de Schmitt é de 1937. Nesta época, as frases acima já apresentam
ressonâncias terríveis para quem tivesse a ousadia de negar a legítima
soberania do povo alemão e de seu Líder. É possível seguir este ponto
num artigo também importante de André Doremus (DOREMUS, 1982: 585).
Em 1937 Schmitt publicou o trabalho nuclear para a compreensão do
Estado totalitário, sendo este último termo de sua lavra na história da
língua política. Refiro-me ao “Totaler Feind, totaler Krieg, totaler
Staat”, republicado em 1940. Em carta a Jean-Pierre Faye, escrita no dia
31 de agosto de 1963, Carl Schmitt indica sua atitude na época: “Sob a
impressão de uma dissolução [eu sublinho, RR], irresistível das
diferenças e dos limites tradicionais num direito dos povos, e da mesma
dissolução das diferenças no terreno do direito constitucional e estatal
(como Estado e Sociedade, Estado e economia, política e cultura etc…)
surgiu a fórmula do Estado total, mas como pura análise da realidade e
sem nenhum interesse ideológico … não orientada em sentido fascista”.
Como diria Kelsen, difícil não satirizar… (FAYE, 1974: 61-62).
O que é “conservador”? O medo de que a população estrague a festa do
poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição,
as inovações técnicas que só beneficiam alguns. Trata-se de conservar o
social e o Estado, produto histórico como nos românticos, engenho
técnico como em Hobbes, mas sempre no horizonte do pavor e do medo, da
guerra, do soldado, da polícia, do carrasco. Por isso a imagem do
dilaceramento, junto com o medo da subversão da ordem, é onipresente nas
falas conservadoras. Nelas acentua-se a harmonia como fim político, não
importa o preço. Harmonia étnica, política, axiológica, econômica etc.
Se tal concórdia implica em jogar nos porões da polícia este ou aquele
inocente, se ela disfarça ódios arraigados, tudo isto importa pouco. Os
caminhos da Providência são misteriosos. “Todos os conceitos mais
importantes da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos
secularizados [...] O Estado de exceção tem, para a jurisprudência, uma
significação análoga à do milagre para a teologia” (SCHMITT, 1972: 61).
Milagres custam muito. Eles repetem os planos da Providência, laica
ou religiosa, com lógica infalível. Termino, lembrando dois fatos
importantes, no meu entender. Primeiro, o renascimento do interesse pelo
pensamento conservador, e a recusa do século 18, na Europa sobretudo,
coincide com a retomada dos movimentos fascistas que já chegaram ao
governo, por exemplo na Itália. Carl Schmitt recebe uma voga de
interesse inusitado. É importante tomá-lo em consideração, com todos os
doutrinários que lhe serviram de sustento, para entender um pouco a
mente dos líderes e das massas que agora ativaram a caça aos judeus, aos
árabes, aos negros, aos diferentes.
No Brasil, mais do que nunca, os frios cálculos burocráticos e
administrativos unem-se ao carisma pré-fabricado ou efetivo, colocando
massas nas mãos de indivíduos, a quem cabe decidir o destino de milhões.
O Salvador político, com pirotecnia fabulosa, promete ao mesmo tempo
segurança às massas e aos proprietários. Nesta conciliação de
incompossíveis reside a força retórica do pensamento conservador: no seu
Estado, pobre e ricos vivem na aparência em harmonia garantida pelo
encanto dos chefes, mas na verdade provida pelo medo da solidão e da
morte, do carrasco e da polícia, enquanto se espera o soldado. Neste
pânico cultivado com precisão científica pelas forças conservadoras,
reside boa parte da angústia que antecede todo plano milagroso de
salvação, contra, por exemplo, o processo inflacionário. Nele, também,
mantem-se o fanatismo da adesão aos mesmos planos, produzidos sine ira
et studio para engodo e para manter o mando em mãos definidas. Nele,
brota o ódio que explode na massa quando os seus deuses da véspera se
transformam em demônios da hora, como ocorreu com os ditadores fascistas
e, numa escala mais branda, com nossos presidentes, de Vargas até
Collor.
Enquanto durar este pêndulo, os intelectuais conservadores produzirão teorias que reduzem o povo ao papel de simples suporte, assistindo apenas a vida política, enquanto eles, os intelectuais, aderem sem vergonha aos donos do mando. Isto apenas contribui para o afrouxamento da ética, ensinando o povo a viver de expedientes, como os seus políticos vivem de golpes econômicos, políticos, publicitários, como seus intelectuais (não repetirei a fórmula batida, sobre “as exceções”, se elas existem, são evidentes), sobrevivem parasitando os poderosos. No Estado assim constituído, a lei é afastada e dirigida contra os críticos e a oposição. O discurso conservador exige fé em Deus ou na República, mas foge das leis e de sua abrangência universal, Nele… o conceito de igualdade, como o de soberania popular, é meta-físico. A única lei universal, nesta terra onde as Luzes ainda não penetraram, pela educação e pela técnica, é a de Gerson, muito útil aos soldados que nos impuseram durante anos sua ditadura. Donoso Cortés, naqueles anos melancólicos, alegrou-se com certeza em seu túmulo, como lavou sua alma, contra a república democrática espanhola, no advento do Generalíssimo Franco.”
Roberto Romano
Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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