Mentira e democracia
08 de dezembro de 2013 | 2h 05
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
John Mearsheimer, especialista em questões bélicas e
diplomáticas, publicou em 2011 o livro Por Que os Líderes Mentem - Toda a
Verdade sobre as Mentiras na Política Internacional. Ele comenta as
práticas do governo americano após os ataques ao World Trade Center.
Para Mearsheimer, a Casa Branca mentiu ao alegar a existência das armas
de destruição em massa no Iraque, ao dizer que Saddam Hussein colaborava
com Osama bin Laden, ao proclamar que o ditador iraquiano estava
implicado nos ataques às torres gêmeas, ao anunciar negociação pacífica
quando a invasão do Iraque estava pronta. Mearsheimer não é jacobino
("liberal"), sua posição tem forma conservadora. Após apresentar o que
nomeia mentiras de George W. Bush, ele as justifica. Dada a anarquia
imperante na vida internacional (conhecida desde Tucídides, Maquiavel,
Hobbes e Hegel), todos os Estados estão sozinhos se precisam defender a
hegemonia. Sem aliado seguro não há quem obrigue uma potência a seguir a
ordem kantiana de jamais mentir.
Afirma o autor que a mentira "é ação positiva, articulada para
enganar a plateia alvo". A definição copia a de Santo Agostinho: mentir é
"dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar" (De Mendacio).
A mentira, comenta uma analista, "é boa se ajuda a superar situações
sociais ou políticas"(Diana Margarit). Da "nobre mentira" platônica (A República, 414b-c) aos nossos dias, o tema integra a razão de Estado. Frederico II, diz Hegel na Filosofia do Direito,
perguntou em 1778 se "é permitido enganar um povo". Mas Hegel tem uma
resposta maquiavélica: a plebe "engana a si mesma". O governante, se for
eminente, conhece o verdadeiro e o falso, tem o direito de usá-los para
garantir o Estado contra os ignaros.
Tempos atrás surgiu nos Estados Unidos o romance, escrito por um anônimo, intitulado Primary Colors (que resultou no filme Segredos do Poder).
A trama é narrada pelo integrante de uma campanha presidencial. O
candidato, tudo indica, seria Bill Clinton. O autor diz em prefácio que
sua obra é pura fantasia. Mas os detalhes do enredo são confirmados
pelas notícias. Após algum tempo surgiu o nome do autor, trata-se de Joe
Klein, experiente jornalista político, profundo conhecedor dos
bastidores partidários.
A campanha presidencial narrada segue receita antiga para ganhar
eleições: mover os semeadores de boatos contra os adversários (os spin doctors),
usar truques e fraudes virulentas. O mais importante reside na ambígua
ética do candidato (Jack Stanton), que se imagina um mocinho, mas usa os
meios dos bandidos para vencer. Na batalha pelas urnas, os "perversos"
inimigos fabricam um elo extraconjugal do político. Detalhe: o fato é
verdadeiro, mas para convencer os eleitores seria preciso "aprimorar a
prova". Daí, eles unem trechos de várias conversas gravadas, as quais,
por si mesmas, nada diziam sobre as alcovas do político. Para refutar o
truque os marqueteiros de Stanton colam falas de uma entrevista
televisionada e a passam ao público. Mostram, assim, que houve fraude na
montagem, mas eludem o trato entre candidato e amante. Relações
homoafetivas do adversário são expostas sem clemência. Vale tudo no
belicismo eleitoral.
Quando um membro da sua campanha quer deixá-lo, "Clinton/Stanton"
arrazoa: "Dois terços do que fazemos é repreensível. Sorrimos, escutamos
- podem crescer calos em nossas orelhas de tanto ouvir. Fazemos nossos
patéticos pequenos favores. Falamos para eles o que desejam ouvir e
quando lhes falamos algo que não querem ouvir, usualmente é porque
calculamos exatamente o que desejam escutar. Temos uma eternidade de
sorrisos falsos. É o preço pago por nós para liderar. Você não acha que
Abraham Lincoln foi uma prostituta antes de ser presidente? Você
entende, como eu, que há muita gente no jogo que nunca pensa nas pessoas
mas só quer vencer?".
Comenta um filósofo: "Primary Colors analisa as rotas onde a
democracia e seus ideais são erodidos e forçados por uma elite política
e pela cultura midiática, em campanhas imersas na sujeira e na
contra-sujeira, na corrupção e na tentação de dizer ao eleitorado o que
ele deseja ouvir" (Jon Hesk, em Deception and Democracy in Classical Athens).
Voltemos ao maquiavélico Hegel (a massa engana a si mesma). É
suspeito o prazer suscitado quando as carnes podres de um ou outro
partido são expostas em boatos dos spin doctors e marqueteiros.
O escândalo dura pouco tempo, sendo trocado pelo seguinte, e assim por
diante. A vítima real das denúncias encontra-se na instituição política,
corroída e impotente. Sem a fé pública, ela não mais oferece a
segurança basilar da existência cidadã. Eleições, em casos assim, marcam
a morte da vida democrática, não seu vigor.
Vivemos a guerra eleitoral de 2014. No mundo e no Brasil domina a propaganda mendaz (cf. Dennis W. Johnson, No Place for Amateurs: How Political Consultants Are Reshaping American Democracy).
Se, como diz Mearsheimer, mentiras podem ser aceitas em plano
internacional, na vida interna dos povos elas dissolvem a sociedade.
Quando os líderes mentem para as plateias, difamam adversários e batem
contritos no peito, o regime democrático fenece. Spin doctors,
na imprensa e na internet, espalham calúnias e medos. Eles vampirizam os
sonhos da plebe. Tudo está programado para destruir os inimigos, no
governo e nos recantos oposicionistas, e para rebaixar a cidadania.
Lucram os oligarcas que pescam em águas turvas, mas quem lhes serve de
instrumento vai para a cadeia.
Quando lembramos a tese de George Orwell, pervertida com sarcasmo em Primary Colors
- "Se a liberdade tem algum sentido, ela significa o direito de dizer
ao povo o que ele não quer ouvir" -, temos a consciência de que já
ultrapassamos os limites da escravidão, apelido que damos a uma suposta e
melancólica democracia.
*Professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de 'O Caldeirão de Medeia' (perspectiva)