domingo, 29 de dezembro de 2013

Contextualização Histórica das Liberdades, palestra de Roberto Romano em 1989, na cidade de Ouro Preto, para comemorar a Inconfidência Mineira. Embora vários fatos históricos estajam desatualizados (não existe mais a URSS, Pinochet graças aos deuses se foi, etc), há muita coisa que ainda persiste na vida política nacional e internacional.


Comemoração, em Ouro Preto, da Inconfidência Mineira.
Fundação João Pinheiro.


Revista Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, números 2 e 3,  Maio/Dezembro/1989.



CONFERÊNCIA

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS LIBERDADES

 Roberto Romano [SP/Unicamp)

Em nosso alvo, a contextualização das liberdades, notemos o plural que marca o segundo termo. Afastamos, com semelhante uso lingüístico, alguns traços lamentáveis da vida moderna. O costume de reprimir o humano, tanto no coletivo quanto nas suas partes, nega o termo "liberdade" e a sua efetivação. Do lado oposto, a superestima da forma abstrata transforma o absoluto em simples universal vazio. No século dezoito e dezenove a Liberdade desencadeou algumas tiranias. Hoje, herdamos na prãtica as doutrinas contra-revolucíonãriás e anti-liberais, cujos frutos já foram mostrados nos movimentos totalitários, progressistas ou conservadores.

A liberdade raramente se efeliva, com toda transparéncía, em atos históricos. Mesmo o idealista coerente chega a notar, com precisão lógica, que ela deve ser traduzida para a existência, aparecer, limitar-se. Entre o Absoluto - o sem laços – e o fenomênico, elevam-se tremendos obstáculos. Cabe aos homens suprimí-los, na superfície ou profundeza vital. Meditando sobre a vontade livre, Hegel abarcou a missão indicada acima.

No plano histórico, "liberdade" é sinônimo de processo, de vir-a-ser. No inicio, fala o pensador. o conceito de um ente livre ainda é abstrato. Mesmo "que suas determinações estejam nele contidas, elas são apenas isto, contidas". Liberdade é dynamis, força no sentido aristotélico: "quando digo, por exemplo, 'eu sou livre': o 'eu' ainda é apenas este ser que permanece em si, sem objeto que lhe corresponda." ([1]) Hegel concordaria plenamente com o plural avançado para esta fala: só temos ato livre na vida ética, onde o Eu revela-se, na verdade, enquanto "Nós". Liberdade, também para ele, fundamenta- se sobretudo na polis. Por isso, quando se traduz em ações, ela requer o coletivo. Apenas no Estado poderíamos atingir o estatuto de entes livres. Mas não é menos verdadeiro que o Estado só realiza o que já somos. Não existe Constituição politica onde faz-se economia do próprio ser. O despotismo é situação temporária. Nele, o conceito destoa da existência. Logo, pensa Hegel, tal equívoco deve se apagar.

A Revolução Francesa fomeceu muitos elementos para a filosofia da liberdade. Mesmo o famoso "todo racional é efetivo, todo efetivo é racional" (das, was vernünftig ist, ist wirklich, und das, was wirklich ist, ist vernünftig) mostra-se como recusa de aderir à repressão. Ao contrário da exegese comum que o desenha como "filósofo do Estado prussiano", Hegel definia, naquela frase, o anseio grave das Luzes. Todo coletivo pouco racional, sem forte vínculo ético, deve modificar-se. ([2])Trata-se do mesmo elogio erguido à Razão por Emanuel Kant: "o nosso tempo é o da crítica, a quem tudo deve submeter-se. Desejam dela escapar a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade. Mas, assim, as duas deixam lugar para justas suspeitas e não podem pretender atingir aquela estima não simulada, que a razão concede apenas ao que soube resistir à sua livre e pública investigação".([3])  

Exame universal, no espaço civil e político. Tudo o que dele escapa dificilmente pode ser mantido. O selo do efetivo e racional só pode ser aplicado nas matérias onde o segredo, a força ffsica pura, a autoridade tradicional atingiram o ponto mínimo. Os resultados políticos dessa atitude teórica, Kant os extrai no Conflito das Faculdades,  livro onde exalta os feitos da Revolução Francesa. Nesta, a causa moral que intervém é dupla. "De início é a causa do direito que um povo possui, de se dar uma Constituição política como ela lhe parecer boa, de não ser impedido nisso por outras potências; em segundo lugar é o fim (também um dever), ou seja, que a Constituição de um povo só é conforme ao direito e moralmente boa se ela for, por sua pr6pria natureza, apta a evitar por princípio uma guerra ofensiva". ([4])

O tema, tratado de outro modo na Paz Perpétua, possui grande importância, se quisermos definir os obstáculos à contextualização das liberdades humanas. Exame público supõe, de fato, ausência de segredos absolutos. Depois, a determinação de limites aos poderes estatais, por intermédio do Parlamento. Finalmente: o povo maior, autônomo, deve ofertar- se um presente, a Constituição que assegure a liberdade dentro de suas fronteiras. Isto, por sua vez, exige simultaneamente a liberdade dos outros povos. Sem estes quesitos, ao contrário da Razão, teremos a perene suspeita social contra o despotismo. Deixemos a companhia do filósofo ilustre, tantas vezes caluniado pelos pigmeus do pensamento como "utópico", "ingênuo' e outros adjetivos, Recordemos.

Após os sublimes instantes revolucionários franceses, quando o "entusiasmo do espírito fez o mundo estremecer. como se apenas naquele momento tivesse ocorrido a verdadeira reconciliação entre o divino e o mundo" ([5]) as sociedades humanas experimentaram obstáculos crescentes às liberdades. O Termidor, o Consulado, o Império: na própria França, os avanços das franquias foram pagos com moeda amarga, a concentração do poder estatal, o aumento da força física nas mãos dos governantes, o segredo, a heteronomia constitucional, e last but not least, a guerra.

Em nossa época as tempestades foram mais fortes. Basta a referência ao Eixo. com os regimes de força e mentira que ele reuniu: nossa aIma percebe o quanto nos distanciamos das formas associativas, da imprensa, da vida almejadas pelos revolucionários, em 1789. Quando ouvimos os relatos históricos sobre os Estados totalitários sentimos vacilar. nos atores e nos que narram. a crença racional sobre a liberdade. Após a tese individualista burguesa, vigorou a antítese, o regime das multidões, conduzidas pela propaganda e pela força física aos matadouros da Universalidade abstrata.

Sublinhemos esses prismas da verdade política. Os Constituintes da Revolução Francesa deixaram de perceber a força industrial que apresentava os primeiros avanços fundamentais. Simultâneamente, deles escapou o fenômeno urbano na sua plena violência. Massas reduzidas à força de trabalho, sem vínculos éticos duradouros. Ignorados estes pontos, a insistência nos direitos individuais colocou em primeiro plano a propriedade, afastando dos trabalhadores a lei e a justiça. Somente em 1901 o próprio termo - contrato de trabalho - entrou para o vocabulário jurídico francês. "É na categoria de aluguel dos serviços que se fazia, antes, este contrato (…) o indivíduo podia se alugar. se não mais era permitido vender-se... “. ( [6])

Certeiro Hegel. quando afirma: "a queda de uma grande massa de homens abaixo de certo nível de subsistência (...) a perda do sentimento do direito, honestidade e honra de subsistir por seus próprios atos e trabalho, produzem a populaça, o que comporta uma facilidade maior para concentrar riquezas desproporcionadas em poucas mãos."[7] Como dizer a liberdade, neste contexto? Semelhante contradição foi percebida no século dezenove, sobretudo pelos socialistas utópicos, adversários do Estado liberal. Como Victor Considerant: "a liberdade absoluta (segundo 1789), sem organização, é só o abandono das massas desarmadas e desprovidas de bens à discrição dos corpos armados e providos (...) Onde estão os homens livres? Vocês fingem olhar como livres estas massas inumeráveis de proletários sem capitais. sem instrumentos de trabalho, e que são constrangidos, pela morte que plana sobre eles e suas famílías, ininterruptamente. a encontrar todo dia um senhor..." ([8])
  
Toda uma pletora de intelectuais, movimentos operários, igrejas, partidos conservadores surgiu a partir deste fato: a perda de liberdade para a massa e a concentração de mando e riqueza nas mãos de poucos. O ideal revolucionário que a partir de 1789 exigia a transparência absoluta dos Estados, foi omitido em proveito do segredo no trato com a plebe revolucionária. A formação poütica moderna elevou ao máximo -como demonstra brilhantemente Karl Marx no 18 Brumário de Luis Bonaparte, o lado físico da repressão. interna e externa. Polícias secretas auxiliam exércitos convencionais na tarefa de impor a ditadura dos executivos. em detrimento das sociedades civis. As liberdades, então, tornam-se alvos a serem destruidos pela máquina policial, sine ira et studio.

Vejamos o aspecto do silêncio e do segredo, fundamentais em todo Estado contemporâneo. Segredo no exercício dos cargos públicos, esta é a fórmula universal das burocracias. Silêncio imposto aos adversários do poder reinante, através de múltiplos meios, desde a coação física até a cooptação, tal é o proceder das tiranias modernas. Tortura e propaganda formam duas modalidades complementares de administrar o silêncio e o segrêdo. Ambas operam nas camadas escondidas do governo. A primeira dá-se nos campos de concentração, na madrugada, longe da vista e da escuta popular. A segunda, decidida nos gabinetes ocultos, invade todos os sentidos (sobretudo os olhos e ouvidos) da multidão. Todos os adversários da vida livre odeiam o debate público. Sem o plano secreto, o seu mando pode ser, a todo instante, abalado até a medula. Só o silêncio possibilita a simulação e a dissimulação, técnicas empregadas pelos que defendem posições e por quem as cobiça. "O poder autocrático (...) não apenas se esconde para não deixar que se saiba quem ele é e onde está, mas tende igualmente a esconder os seus reais intentos, na hora em que suas decisões devem tornar-se públicas. Tanto o esconder quanto o se esconder são duas estratégias habituais do ocultamente. Quando não puderes evitar a mistura com o público, coloca a tua máscara!" (Norberto Bobbio).

Quando dizemos "os poderosos", visando a Raison d’état  moderna, não colhemos com este enunciado apenas os governantes atuais. Mesmo as oposições entram nele. Na exata medida em que se adestram para assumir o controle da res publica, também os setores que ainda não atingiram o poder adquirem, com diferentes ritmos e tonalidades, os modos de falar e agir do Príncipe, cuja figura, não raro, espelham perversa e inevitavelmente. Os laços da sutil e invisível solidariedade que une ditador (ou governante ilegítimo) e os dirigentes sectários são, na maioria das vezes, tão fortes quanto o aço que sustenta sua retórica mentirosa comum.

O direito de associação e livre palavra é a base de qualquer democracia (H. Lask). Ora, "uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba de antemão" (Elias Canetti). A perfeita Ordem reinaria, segundo os apoJogetas do mando puro e simples, apenas no lugar onde o governante é livre e o povo é servil.

O presumido "interesse geral" justifica atrocidades, impõe medidas restritivas, liberticidas, garante a falácia e desrespeito pela enunciação. O segredo é o procedimento comum ao tirano. ao totalitário e à Auctoritas do antigo poder absoluto, vencido em 1789. Quando. em 1615, o Terceiro Estado protestou contra a Corte francesa, que negara a apresentação pública do orçamento e dos lucros resultantes dos impostos, foi este o parecer do Clero: "as finanças são o nervo do Estado. Da mesma maneira que o sistema nervoso está escondido sob a pele. convém manter ao abrigo dos olhares a fraqueza ou a força das finanças. É deste modo que, na Antiguidade, o véu do Santo dos Santos s6 poderia ser erguido pelo Sumo Sacerdote, sendo toda outra pessoa banida do santuário. As finanças são o maná, no cofre sagrado". ([9])

Para falarmos em "liberdades", pois, precisamos tocar no âmbito do poder. Este não existe sem pelo menos, três elementos. O primeiro é o já mencionado monopólio da força física. Nenhum Estado se estabelece sem ele. Após 1789, ou 1917, toda possivel ilusão neste plano se desvaneceu. A ditadura jacobina, ou consular (depois imperial), e a ditadura do proletariado têm como base esta concentração de meios impositivos para uso dos governantes. Desprovido do controle sobre as forças armadas (sejam elas até as milícias populares), um poder de Estado só existe nominalmente. Basta lembrar os casos típicos de Goulart, em 1964, e, no Chile, do governo Allende. Quando perderam as forças armadas. e não se efetivaram as esperanças nas milícias populares, o golpe de Estado os colocou fora de combate.

Esse monopólio. conforme o maior ou menor grau de democracia num país, se desdobra no poder de polícia interna, secreta ou pública. e numa rede de controle, a "comunidade de informações". Quando os limites entre o poder legítimo e o ilegítimo caem, estas máquinas de domínio radicalizam seu modus operandi, chegando à tortura, à espionagem sobre a vida dos cidadãos, à censura, ao terror de Estado. Quando um regime se democratiza, pode diminuir o peso destes "órgãos" vitais ao Estado. Mas nunca se perde o monopólio da força pública: o governante real é aquele que a exerce. Um estadista que não a controla é, no máximo, delegado servindo ao poder empírico.

Outro monopólio co-essencial ao primeiro: o do ordenamento jurídico. Não cabe a qualquer cidadão, ou entidade privada, estabelecer normas de comportamento público e de ordenação institucional. Assembléias Constituintes, em plano interno, ou congregando nações, como a ONU, definem limites de competências, jurisdições, soberanias. Mesmo Estados democráticos liberais ou socialistas não podem prescindir deste monopólio. Caso contrário, é retomar ao arbítrio de alguns, reunidos pela riqueza ou influência social.

Outro elemento é o monopólio da gestão do excedente econõmíco. Impostos, alocação de recursos públicos, etc., tudo isto cabe ao poder de Estado. As três formas de monopólio mencionadas, entretanto, podem se transformar em veneno, corroendo o fím a que deveriam servir: a garantia das liberdades. Quem movimenta aqueles poderes pode - e esta é a história dolorosa nos tempos modernos e atuais -, por múltiplas causas, negar a soberania constituinte do povo, definindo a sua própria infalibilidade: militar, jurídica, econômica.

A recusa do debate, em nome da eficácia e ganho de tempo, é dogma em todos os autores contra-revolucionários, do final do século dezenove até o nazismo. A idéia de que a democracia e as discussões em assembléias são danosas para a boa direção social ou científica tomou-se lugar comum, preconceito partilhado pelas representações "reacionárias' ou "progressistas". Já Augusto Comte pregou esta mentira quando disse: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana". Este conceito recebeu em Danoso Cortés o título correto: infalibilidade. Para esse autor, o conceito de soberania é idêntico ao de poder infalfvel: o princípio da liberdade de discussão, diz ele lamentando-se, é o fundamento das constituições modernas". O erro deste liberalismo democrático teria sido a confiança na infalibilidade da discussão, o que resultou, pensa ele, n absoluta anarquia. A infalibilidade, primeiro atributo do Papa, é marca do soberano que, para Donoso Corres, não é o povo,maso governante empírico. Ninguém melhor para lembrar, nesse caso, do que um fiel discípulo de Donoso Cortes na Alemanha anterior a Hitler, e que uniu-se ao ditador sem hesitações: Carl Schmilt. "Segundo Donoso, diz Schmitt, é próprio da essência do liberalismo o não tomar posição e decisão nesta batalha (entre o Bem e o Mal, RR) mas querer, pelo contrário, produzir uma discussão. Ele define a burguesia exatamente como 'classe que discute'. É neste rumo que ela se caracteriza, porque no seu modo de operar já está ímpIfcito que ela deseja subtrair-se à decisão. Uma classe que transfere toda atividade política para a fala, na imprensa ou Parlamento, não é adequada para uma época de lutas sociais ..." ([10]) O ideal liberalizante constituiria nisto: "que não apenas a corporação legislativa, mas todo o povo discuta, que a sociedade humana se transforme num imenso clube e que, deste modo, surja a verdade por si só, pela discussão" (idem). Enfim, o liberal pensaria que a luta das classes "sanguinolenta batalha decisiva, possa ser transformada num debate parlamentar e possa, assim, ser suspensa por meio de uma eterna discussão". Mas. contra as "feras populares" que ameaçariam os valores, a propriedade, a hierarquia e a Ordem. Donoso Cortes só enxergava um remédio: a ditadura. "Senhores. (...) a liberdade acabou! Não ressuscitará, senhores, nem no terceiro dia, nem no terceiro ano, nem talvez no terceiro século. A liberdade não existe de fato, na Europa; os governos constitucionais, que a representavam anos atrás, são apenas, em todo lugar, senhores, um esqueleto sem vida “. Anúncio fúnebre que tem validade até hoje, em muitos países do globo. Continua Cortés: "trata-se de escolher entre a ditadura que vem de cima e a ditadura que vem de baixo. Escolho a que vem de cima, porque vem de regiões mais limpas e serenas. Trata-se. finalmente, de escolher entre a ditadura do punhal e a do sabre. Escolho a ditadura do sabre, porque é mais nobre") ([11])  Este é um bom exemplo do uso ensandecido do monopólio da força fisica.

Tal discurso permanece, até hoje, como protótipo de todas as falas decisionísticas que ridicularizam o liberalismo democrático. Pela mediação de juristas como Carl Schmitt,' ele serviu para justificar formas de governo totalitárias e autoritárias, como as de Hitler, Salazar, Franco e de muitos ditadores latino-americanos. No Brasil, após a experiência centralizadora do Império e Repúblicas ( a 'Velha" , a de Vargas, e agora, a "Nova"), o Estado marca-se pela verticalidade e carismatismo, pessoal ou da instituição. Os princípios liberais são ridicularizados a priori, em nome do realismo político, das gestões eficientes. A premissa de que caberia aos governados legislar sobre seu próprio agir é descartada, inúmeras vezes, sem maiores embaraços. Quando não se outorgam pura e simplesmente leis e regulamentos (como os famosos Atos Institucionais, de triste memória), criam-se "comissões" nomeadas pelos Executivos, a fim de rascunhar projetos que, após, receberão a forma e o conteúdo determinados pelos compromissos dos governantes com setores hegemônicos da sociedade (o que é regra), ou para atrair as massas. na política populista.

Os longos anos de reforço autocrático manu militari, apenas aumentaram a heteronomia da população - desde as periferias das cidades, até os campi universitários - no seu exercício institucional quotidiano. Somos e constituímos qual Estado? Caso fique definido que o Estado, entre nós, nos seus elementos executivo, legislativo, judiciário, continuará a ser regido pela lógica da "eficiência" e recusa do debate liberal, isto é, pela via do decisionismo, devemos concluir que é impossível toda e qualquer liberdade cidadã. A forma vertical de mando seria inelutável: no ápice, um líder supremo, na base, apenas a massa indistinta, manipulada ao bel-prazer dos intermediários entre o chefe e os súditos. Ou escravos.

Lutamos, em nossa terra. para diminuir o abuso do Executivo. na administração do segredo. e dos monopólios da força física, do ordenamento jurfdico, da gestão sobre o excedente econômico. Nesta guerra, entretanto, os recursos são desiguais. René Cassín proclamou, na ONU, em 1948, os quatro pilares da Declaração que naquela data se publicava: o primeiro, relativo aos direitos pessoais, à vida, à liberdade. À segurança da pessoa, sempre ameaçada pela "segurança" dos Estados. O segundo, o direito à família e aos agrupamentos humanos, dos mais restritos aos mais amplos. O terceiro, o das liberdades públicas e direitos políticos, pensamentos. crença, palavra, expressão, reunião. O quarto é o campo dos direitos econômicos, sociais, culturais, como trabalho, educação, segurança social, vida intelectiva. ([12])

Observemos o que se passa no mundo, e no Brasil, no tocante a cada um dos itens acirna. Que segurança, que direito pode existir, de forma universal e duradoura, quando lemos, nos relatórios de organismos insuspeitos como a Anistia Internacional, os infindáveis casos de tortura, sequestro de homens e mulheres na calada da noite, pelas forças policiais, regulares ou secretas? Como falar em "liberdades", quando a crítica aos governos é paga com desaparecimentos de corpos? "Nas últimas décadas. alguns governos latino-americanos adotaram a nefasta prática de fazer 'desaparecer' seus adversários políticos. Isto ocorreu com macabra frequência na Argentina, durante os anos da ditadura militar (...) mas felizmente terminou com a eleição e a posse do presidente Raul Alfonsin (...) Aconteceu - e ainda acontece - no Chile dominado pela mão de ferro do general Augusto Pínochet" .([13])

A tortura é outro componente do quadro violento. que se desenha com o abuso do monopólio da força física, pelos governantes. Não apenas em nosso continente, mas em todo o mundo, se pratica este covarde exercícío da imposição e amedrontamento. Na China continental, na África do Sul, no Irã, no Peru, noventa países, pelo menos, empregam a tortura como arma repressiva. Esta "é o resultado de uma vontade política de governos autoritários ou totalitários. Faz parte de urna estratégia de segurança, que lança mão de pessoas de mau caráter para exercer sua política de dominação", ([14]) Somemos a este arsenal de horrores as prisões por objeção de consciência ([15]) , as violações dos mínimos direitos dos assim chamados "presos comuns", quando comparados aos "políticos". ([16]) Tudo isto, se lembrarmos os exemplos onde o Estado, na sua face executiva, aparece como promotor ou agente, direto ou indireto. Mas também podemos recordar as formas não-estatais de imposição, como os linchamentos, incentivados pela midia repressiva ([17]) . os assassinatos de lideranças civis contra os interesses particulares (como é o caso de Francisco Mendes, e inúmeros outros), a morte de posseiros e pequenos proprietários, como tem sido denunciado há muitos anos pela Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra, e por vários partidos de oposição. ([18])

Enquanto tais ações procuram domar a crítica no interior de cada país. Recurso imenso é gasto na corrida armarnentista, visando manter hegemonias econômicas, politicas, nacionais. ([19])  Todos estes fatores, somados a outros menos notórios, mas tão graves quanto, tendem a enquadrar as liberdades em limites estreitos. Notamos, entretanto. como contraponto a essa violência opressiva, indícios de vida livre em nosso mundo. Assinalemos os movimentos nacionais e populares que elevaram o ânimo democrático. apesar de toda sua ambigüidade: os combates no Vietnã, na África, na Nicarágua. As mudanças ideológicas e institucionais da União Soviética, e outros países socialistas. Além disto, notamos que, se é verdade a existência de violações aos direitos humanos, também é fato a ocorrência de sua denúncia. Organismos como a ONU, a Anistia Internacional ainda conseguem, junto com a UNESCO, e outros, atenuar as marcas da bárbarie contemporânea. Os crimes contra o homem e a natureza são denunciados e, gradativamente, assumem feições de eficácia os movimentos ecológicos, civis. Se os atos mostram alguma esperança de vida livre. o pensamento, não raro, ainda se prende à sistematização autoritária, que descarta a liberdade individual e coletiva. Como garantir o espaço da cidadania. ignorando os indivíduos? Vivemos demasiado sob o signo da física social positivista, e do materialismo vulgar. para quem estes são falsos problemas. Mas é justo a falta de respeito pelas individualidades autônomas que distingue o despotismo. Nas greves e manifestações de massa, embora estas sejam formas coletivas de luta. a polícia sempre escolhe certas pessoas. isolando-as de seus iguais. Normalmente os "eleitos" são os líderes que superam os outros pela coragem e lucidez, os que têm uma individualidade mais rica, e livre. Sempre que se estabelece a tirania, na vida política ou cultural, ela só consegue atingir seus fins manipulando a força física, a propaganda, os monopólios jurídicos e os da gestão sobre o excedente econômico. "Para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso tiranizar os espíritos, constrangê-los ao jugo da força (...) a força apenas produz hipócritas. e por consequência. almas vis" (Beccaria, Dos Delitos e das Penas). Quem ameaça as almas, arruína os corpos.

Terminemos. Para falarmos de liberdades, e de sua contextualização, precisamos verificar em quais planos elas são negadas. No Estado e sociedade contemporâneos, tudo indica que forças agem no sentido das tiranias e no da liberalização. Mesmo no Irã, onde o agir fanático atinge seu cume, notamos que existe oposição. Felizmente, o conceito de totalitarismo é apenas um limite. Jamais uma sociedade inteira une-se totalmente aos poderes vigentes nos Estados, com suas ideologias. Mesmo sob Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, e tantos outros, indivíduos e movimentos resistiram, no interior do país ou no exílio. Esta também é uma esperança: o silêncio imposto é terrível, mas passe. Hoje, sabemos mais do que nunca, "é impossível a dignidade humana sem que acabe a miséria, mas também é impossível uma felicidade adequada ao homem, sem o aniquilamento das antigas e novas formas de submissão". ([20]) Perene dialética entre o individual e o coletivo, quando as sociedades livres respeitam os dois lados da cadeia, mas as escravas apelam para a mentira de um coletivo, lógica e ontológicamente acima dos indivíduos.

Foi este o desafio enfrentado pelo pensamento laico após a Revolução Francesa, o Terror, o Termidor, a Contra-Revolução vitoriosa na aparência. Muitos Estados, através de seus ideólogos, acentuaram o elemento ético - objetivo - contra o moral – a subjetividade individualízada-- de forma constrangedora. No Brasil, tivemos péssimos resultados desta equação difícil, para usar os termos de Ernst Bloch. O anti-Iiberalismo, forte entre nós, possibilitou a emergência de teorias sanguinárias, cuja pretensão de limitar os direitos individuais, escarnecidos como "individualistas", culminou nas várias formas de tortura.

Isto foi antecipado na prática e na doutrina jurídicas de Carl Schmitt e pares. Não existem indivíduos, pensava aquele autor: "o homem, na realidade, pertence a um povo e a uma raça. até nos mais profundos e inconscientes movimentos da alma, até a mais fina fibra cerebral". Donde, o estranho, qualquer um, "pensa e entende diversamente, porque foi feito de um outro modo" ([21]) Em 13 de julho de 1934 Hitler proclamou-se, no Reichstag, "juiz supremo" do povo alemão. Comenta Schmltt, encantado: "A autoridade de julgar do Füher nasce da própria fonte do direito (...) Todo direito nasce do direito à vida do povo".([22])

Se quisermos guardar um mínimo de liberdade, mesmo para as massas populares. precisamos cautela máxima, portanto, ao empregarmos discursos que podem acentuar, em nome de certo "anti-egoísmo", o sujeito abstrato, "O Povo". Infelizmente, este traço "Völkisch" marca muito discurso moderno com pretensões libertárias. Sob a escrita da Aufklärung francesa, e modema em geral, jazem os textos de Spinosa. Ninguém assumiu tão ardentemente a defesa da liberdade humana do que este judeu perseguido pelas múltiplas ortodoxias de sua época. O último capitulo do Tratado Teológico Polftico deveria servir como adendo, em toda e qualquer Constituição politica livre. "Se a escravidão dos intelectos é norma do regime monárquico, não podemos admitir sua eventualidade numa democracia". O fim último do politico, pensa o filósofo, "não é a dominação, nem a repressão dos homens, nem o jugo de uns pelos outros".

Utopia? Costumam os canalhas utilizar semelhante frase no sentido de encobrir o domínio das mentes e corpos finitos. Segundo eles, o "realismo" exige que tudo que tenha sido, continue e permaneça igual. Desde que, evidentemente, lugares de mando lhes sejam garantidos nas igrejas, Estados, instituições de poder. Para Spinosa, ao contrário, a função poHtica "não é transformar homens racionais em bestas feras, ou em autômatos". O alvo torna-se "dar-lhes a plena segurança no uso de seus corpos e mentes. Depois disto, eles estarão em condições de raciocinar mais livremente, não se enfrentarão mais com os instrumentos do ódio, cólera, astúcia, vivendo a justiça. Portanto, o fim último da organização social é a liberdade."

O governante autoritário é o verdadeiro subversivo, no Tratado Teológico Politico. Quando ordena o que deve ser pensado e dito. obriga os governados a separar suas palavras de seu raciocínio. "A boa fé, indispensável à comunidade política, diz ele, se corrompe, encorajando-se os traços detestáveis da lisonja, perfídia, quebra dos melhores costumes". Qual a eficácia das leis contra a livre opinião? Resposta spinosana: "elas atingem os homens retas, e deixam intactos os celerados".

'Affranchissons le Tage, et laissons faire au Tibre.
La liberté n'est rien quand tout le monde est libre;
Mais iI est beau de I'être, et voir tout l'univers
Soupirer sous le joug et gémir dans les fers;
II est beau d'étaler cette prérogative
Aux yeux du Rhône esclave et de Rome captive;
Et de voir envier aux peuples abattus
Ce respect que le sort garde pour les vertus. ([23])

Este discurso de Viriato, na peça Sertorio de Corneille, é citado por Jaucourt no verbete "Liberdade", da Enciclopédia Francesa. A confortável, para os colaboracionistas, tirania romana é exorcizada pelo hino à liberdade dos Lusitanos. Nossa herança é semelhante respeito, ou integramos o número dos povos invejosos que jamais atravessaram o Tejo? Que a comemoração da Inconfldência Mineira. e dos eventos franceses, nos sirvam de ânimo paca atingirmos o auto-respeito e a liberdade. Nossa gente os merece.

ROBERTO ROMANO
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado pela mesma Universidade e pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, onde também fez doutoramento. É professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas. Colaborador de jornais e revistas, é au-tor-de diversos livros, destacando-se, dentre eles, Brasil: Igreja contra Estado; Conservadorismo Româtuico; Lux ln Tenebris. Atualrnente desenvolve pesquisa sobre: A Filosofia Política de Diderot - o estatuto revolucionário de sua escrita (Investigação desenvolvida no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP).


[1] Filosofia do Direito, § 34, Adição.

[2] Entre muitos, cf. D'Hondt, J.: Hegel, philosophe de I'Histoire vivante. Paris, PUF, 1966; Hegel., sa vie, son oeuvre, avec un exposé de sa philosophie. Paris, PUF, 1967. Também: Ritter, J: Hegel et la révolution française. Paris, Beauchesne, 1970. Cesa, Cl.: Hegel Filosofo  Politico. Napoli, Guida Bd., 1976.

[3] Crítica da  Razão Pura nota ao "prefácío" de 1781.

4 Conflito das Faculdades, citado em Romano, Roberto: "Kant e a Aufklärung” in Corpo e Cristal, Marx romântico (Rio, Guanabara) p. 87-88.

[5] Hegel, G.W.F. Lições sobre a Filosofia da História. IVa. parte, 3. Capítulo Terceiro, século das Luzes e Revolução.


[6] Maxime Leroy: Histoire des Idées sociales en France, v. 2, Paris, Gallimard, 1962, p. 34.

[7] Filosofia do Direito. § 244.
[8] Principios do Socialismo, lembrado por Leroy, M. op. cit.

[9] Cf. Burckhardt, C. Richelieu. Paris. Laffont, v.2, 1970, p- 44.
[10] Cf. Schmítt, Carl:  Le categorie del "politico". Bologna, II Mulino, p. 88 e seguintes.
[11] "Discurso sobre la Dictadura", 1849, in Obras Completas de Donoso Cortes. Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 305 e seguintes.

[12] Cf. Máxime Leroy, op. cit. p. 53.

[13] Cf. Rodolfo Konder, Anistia Internacional, uma porta para o futuro. Pontes/Unicamp,
1988. p 16.

[14] e 15 Konder, R., op. cit. páginas 24 e 45 (e seguintes).

[15] Konder, R., op. cit. páginas 45 (e seguintes)
[16] Cf. Paulo Sérgio Pinheiro: Escritos Indignados (SP), Brasiliense. 1984.

[17] Cf. M.V. Benevides e R.M.F. Ferreira: "Respostas populares e violência urbana: o caso do linchamento no Brasil" in Crime. violência e podcr. P.S. Pinheiro (0rg.) São Paulo, Brasiliense, 1983, p.225 e ss.

[18]  Vanilda Paiva(org.) Igreja e Questão Agrária. Rio, Loyola, 1985.

[19]  Brigagão, Clóvis: A Corrida para a morte. Rio. Nova Fronteira, 1983.

[20]  Cf HansMayer: Aussenseiter. Frankfurt am Main, 1975.

[21] Cf "Stato, Movimento, Popolo" ia Principii politici dei nazionalsocialismo. Firenze,1935. p.230.

[22]  “Der Füher schützt das Recht". Mesmo autor.

[23] Atravessemos o Tejo, esqueçamos o Tibre. A liberdade é nada, se todo mundo é livre! Mas é belo sê-lo e ver todo o universo suspirar sob o jugo e gemer no cativeiro/ É belo exibir tal prerrogativa/ Aos olhos do Reno escravo e de Roma cativa! E ver a inveja dos povos abatidos, Face a este respeito que a sorte guarda para as virtudes" (Sertorius, Ato IV, cena II), Pléiade, Théatre Complet de Corneille, V. 2, p. 649,