Comemoração, em Ouro
Preto, da Inconfidência Mineira.
Fundação João
Pinheiro.
Revista Análise e
Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, números 2 e 3, Maio/Dezembro/1989.
CONFERÊNCIA
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS
LIBERDADES
Roberto Romano [SP/Unicamp)
Em nosso alvo, a contextualização das
liberdades, notemos o plural que marca o segundo termo. Afastamos, com
semelhante uso lingüístico, alguns traços lamentáveis da vida moderna. O
costume de reprimir o humano, tanto no coletivo quanto nas suas partes, nega o
termo "liberdade" e a sua efetivação. Do lado oposto, a superestima
da forma abstrata transforma o absoluto em simples universal vazio. No século dezoito
e dezenove a Liberdade desencadeou algumas tiranias. Hoje, herdamos na prãtica as
doutrinas contra-revolucíonãriás e anti-liberais, cujos frutos já foram
mostrados nos movimentos totalitários, progressistas ou conservadores.
A liberdade raramente se efeliva, com
toda transparéncía, em atos históricos. Mesmo o idealista coerente chega a
notar, com precisão lógica, que ela deve ser traduzida para a existência,
aparecer, limitar-se. Entre o Absoluto - o sem laços – e o fenomênico,
elevam-se tremendos obstáculos. Cabe aos homens suprimí-los, na superfície ou
profundeza vital. Meditando sobre a vontade livre, Hegel abarcou a missão
indicada acima.
No plano histórico,
"liberdade" é sinônimo de processo, de vir-a-ser. No inicio, fala o pensador.
o conceito de um ente livre ainda é abstrato. Mesmo "que suas
determinações estejam nele contidas, elas são apenas isto, contidas".
Liberdade é dynamis,
força no sentido aristotélico:
"quando digo, por exemplo, 'eu sou livre': o 'eu' ainda é apenas este ser
que permanece em si, sem objeto que lhe corresponda." ([1])
Hegel concordaria plenamente com o plural avançado para esta fala: só temos ato
livre na vida ética, onde o Eu revela-se, na verdade, enquanto "Nós".
Liberdade, também para ele, fundamenta- se sobretudo na polis. Por isso, quando
se traduz em ações, ela requer o coletivo. Apenas no Estado poderíamos atingir
o estatuto de entes livres. Mas não é menos verdadeiro que o Estado só realiza
o que já somos. Não existe Constituição politica onde faz-se economia do
próprio ser. O despotismo é situação temporária. Nele, o conceito destoa da
existência. Logo, pensa Hegel, tal equívoco deve se apagar.
A Revolução Francesa fomeceu muitos
elementos para a filosofia da liberdade. Mesmo o famoso "todo racional é
efetivo, todo efetivo é racional" (das, was vernünftig ist, ist wirklich, und das, was wirklich ist, ist vernünftig) mostra-se como recusa de aderir à
repressão. Ao contrário da exegese comum que o desenha como "filósofo do
Estado prussiano", Hegel definia, naquela frase, o anseio grave das Luzes.
Todo coletivo pouco racional, sem forte vínculo ético, deve modificar-se. ([2])Trata-se
do mesmo elogio erguido à Razão por Emanuel Kant: "o nosso tempo é o da
crítica, a quem tudo deve submeter-se. Desejam dela escapar a religião, por sua
santidade, e a legislação, por sua majestade. Mas, assim, as duas deixam lugar para
justas suspeitas e não podem pretender atingir aquela estima não simulada, que
a razão concede apenas ao que soube resistir à sua livre e pública
investigação".([3])
Exame universal, no espaço civil e
político. Tudo o que dele escapa dificilmente pode ser mantido. O selo do
efetivo e racional só pode ser aplicado nas matérias onde o segredo, a força
ffsica pura, a autoridade tradicional atingiram o ponto mínimo. Os resultados
políticos dessa atitude teórica, Kant os extrai no Conflito das Faculdades, livro onde exalta os feitos da Revolução
Francesa. Nesta, a causa moral que intervém é dupla. "De início é a causa
do direito que um povo possui, de se dar uma Constituição política como ela lhe
parecer boa, de não ser impedido nisso por outras potências; em segundo lugar é
o fim (também um dever), ou seja, que a Constituição de um povo só é conforme
ao direito e moralmente boa se ela for, por sua pr6pria natureza, apta a evitar
por princípio uma guerra ofensiva". ([4])
O tema, tratado de outro modo na Paz Perpétua,
possui grande importância, se quisermos definir os obstáculos à
contextualização das liberdades humanas. Exame público supõe, de fato, ausência
de segredos absolutos. Depois, a determinação de limites aos poderes estatais,
por intermédio do Parlamento. Finalmente: o povo maior, autônomo, deve ofertar-
se um presente, a Constituição que assegure a liberdade dentro de suas
fronteiras. Isto, por sua vez, exige simultaneamente a liberdade dos outros
povos. Sem estes quesitos, ao contrário da Razão, teremos a perene suspeita
social contra o despotismo. Deixemos a companhia do filósofo ilustre, tantas
vezes caluniado pelos pigmeus do pensamento como "utópico",
"ingênuo' e outros adjetivos, Recordemos.
Após os sublimes instantes
revolucionários franceses, quando o "entusiasmo do espírito fez o mundo estremecer. como se apenas
naquele momento tivesse ocorrido a verdadeira reconciliação entre o divino e o
mundo" ([5])
as sociedades humanas experimentaram obstáculos crescentes às liberdades. O
Termidor, o Consulado, o Império: na própria França, os avanços das franquias
foram pagos com moeda amarga, a concentração do poder estatal, o aumento da
força física nas mãos dos governantes, o segredo, a heteronomia constitucional,
e last but not least, a guerra.
Em nossa época as tempestades foram
mais fortes. Basta a referência ao Eixo. com os regimes de força e mentira que
ele reuniu: nossa aIma percebe o quanto nos distanciamos das formas
associativas, da imprensa, da vida almejadas pelos revolucionários, em 1789.
Quando ouvimos os relatos históricos sobre os Estados totalitários sentimos
vacilar. nos atores e nos que narram. a crença racional sobre a liberdade. Após
a tese individualista burguesa, vigorou a antítese, o regime das multidões, conduzidas
pela propaganda e pela força física aos matadouros da Universalidade abstrata.
Sublinhemos esses prismas da verdade
política. Os Constituintes da Revolução Francesa deixaram de perceber a força
industrial que apresentava os primeiros avanços fundamentais. Simultâneamente,
deles escapou o fenômeno urbano na sua plena violência. Massas reduzidas à
força de trabalho, sem vínculos éticos duradouros. Ignorados estes pontos, a
insistência nos direitos individuais colocou em primeiro plano a propriedade, afastando
dos trabalhadores a lei e a justiça. Somente em 1901 o próprio termo - contrato
de trabalho - entrou para o vocabulário jurídico francês. "É na categoria de
aluguel dos serviços que se fazia, antes, este contrato (…) o indivíduo podia
se alugar. se não mais era permitido vender-se... “. ( [6])
Certeiro Hegel. quando afirma: "a
queda de uma grande massa de homens abaixo de certo nível de subsistência (...)
a perda do sentimento do direito, honestidade e honra de subsistir por seus
próprios atos e trabalho, produzem a populaça, o que comporta uma facilidade
maior para concentrar riquezas desproporcionadas em poucas mãos."[7] Como
dizer a liberdade, neste contexto? Semelhante contradição foi percebida no
século dezenove, sobretudo pelos socialistas utópicos, adversários do Estado
liberal. Como Victor Considerant: "a liberdade absoluta (segundo 1789),
sem organização, é só o abandono das massas desarmadas e desprovidas de bens à
discrição dos corpos armados e providos (...) Onde estão os homens livres?
Vocês fingem olhar como livres estas massas inumeráveis de proletários sem
capitais. sem instrumentos de trabalho, e que são constrangidos, pela morte que
plana sobre eles e suas famílías, ininterruptamente. a encontrar todo dia um
senhor..." ([8])
Toda uma pletora de intelectuais, movimentos operários, igrejas, partidos conservadores surgiu a partir deste fato: a perda de liberdade para a massa e a concentração de mando e riqueza nas mãos de poucos. O ideal revolucionário que a partir de 1789 exigia a transparência absoluta dos Estados, foi omitido em proveito do segredo no trato com a plebe revolucionária. A formação poütica moderna elevou ao máximo -como demonstra brilhantemente Karl Marx no 18 Brumário de Luis Bonaparte, o lado físico da repressão. interna e externa. Polícias secretas auxiliam exércitos convencionais na tarefa de impor a ditadura dos executivos. em detrimento das sociedades civis. As liberdades, então, tornam-se alvos a serem destruidos pela máquina policial, sine ira et studio.
Vejamos o aspecto do silêncio e do
segredo, fundamentais em todo Estado contemporâneo. Segredo no exercício dos
cargos públicos, esta é a fórmula universal das burocracias. Silêncio imposto
aos adversários do poder reinante, através de múltiplos meios, desde a coação
física até a cooptação, tal é o proceder das tiranias modernas. Tortura e
propaganda formam duas modalidades complementares de administrar o silêncio e o
segrêdo. Ambas operam nas camadas escondidas do governo. A primeira dá-se nos
campos de concentração, na madrugada, longe da vista e da escuta popular. A
segunda, decidida nos gabinetes ocultos, invade todos os sentidos (sobretudo os
olhos e ouvidos) da multidão. Todos os adversários da vida livre odeiam o debate público. Sem o plano secreto, o seu mando pode ser, a todo instante,
abalado até a medula. Só o silêncio possibilita a simulação e a dissimulação,
técnicas empregadas pelos que defendem posições e por quem as cobiça. "O
poder autocrático (...) não apenas se esconde para não deixar que se saiba quem
ele é e onde está, mas tende igualmente a esconder os seus reais intentos, na
hora em que suas decisões devem tornar-se públicas. Tanto o esconder quanto o
se esconder são duas estratégias habituais do ocultamente. Quando não puderes evitar
a mistura com o público, coloca a tua máscara!" (Norberto Bobbio).
Quando dizemos "os poderosos",
visando a Raison d’état moderna, não colhemos
com este enunciado apenas os governantes atuais. Mesmo as oposições entram
nele. Na exata medida em que se adestram para assumir o controle da res
publica, também os setores que ainda não atingiram o poder adquirem, com
diferentes ritmos e tonalidades, os modos de falar e agir do Príncipe, cuja
figura, não raro, espelham perversa e inevitavelmente. Os laços da sutil e
invisível solidariedade que une ditador (ou governante ilegítimo) e os
dirigentes sectários são, na maioria das vezes, tão fortes quanto o aço que
sustenta sua retórica mentirosa comum.
O direito de associação e livre palavra
é a base de qualquer democracia (H. Lask). Ora, "uma boa parte do
prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força
concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos.
Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos
falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba de
antemão" (Elias Canetti). A perfeita Ordem reinaria, segundo os apoJogetas
do mando puro e simples, apenas no lugar onde o governante é livre e o povo é
servil.
O presumido "interesse geral"
justifica atrocidades, impõe medidas restritivas, liberticidas, garante a
falácia e desrespeito pela enunciação. O segredo é o procedimento comum ao
tirano. ao totalitário e à Auctoritas do antigo poder absoluto, vencido em
1789. Quando. em 1615, o Terceiro Estado protestou contra a Corte francesa, que
negara a apresentação pública do orçamento e dos lucros resultantes dos
impostos, foi este o parecer do Clero: "as finanças são o nervo do Estado.
Da mesma maneira que o sistema nervoso está escondido sob a pele. convém manter
ao abrigo dos olhares a fraqueza ou a força das finanças. É deste modo que, na
Antiguidade, o véu do Santo dos Santos s6 poderia ser erguido pelo Sumo
Sacerdote, sendo toda outra pessoa banida do santuário. As finanças são o maná,
no cofre sagrado". ([9])
Para falarmos em
"liberdades", pois, precisamos tocar no âmbito do poder. Este não
existe sem pelo menos, três elementos. O primeiro é o já mencionado monopólio da
força física. Nenhum Estado se estabelece sem ele. Após 1789, ou 1917, toda possivel
ilusão neste plano se desvaneceu. A ditadura jacobina, ou consular (depois
imperial), e a ditadura do proletariado têm como base esta concentração de
meios impositivos para uso dos governantes. Desprovido do controle sobre as
forças armadas (sejam elas até as milícias populares), um poder de Estado só
existe nominalmente. Basta lembrar os casos típicos de Goulart, em 1964, e, no
Chile, do governo Allende. Quando perderam as forças armadas. e não se
efetivaram as esperanças nas milícias populares, o golpe de Estado os colocou
fora de combate.
Esse monopólio. conforme o maior ou menor
grau de democracia num país, se desdobra no poder de polícia interna, secreta
ou pública. e numa rede de controle, a "comunidade de informações".
Quando os limites entre o poder legítimo e o ilegítimo caem, estas máquinas de
domínio radicalizam seu modus operandi,
chegando à tortura, à espionagem
sobre a vida dos cidadãos, à censura, ao terror de Estado. Quando um regime se
democratiza, pode diminuir o peso destes "órgãos" vitais ao Estado. Mas
nunca se perde o monopólio da força pública: o governante real é aquele que a
exerce. Um estadista que não a controla é, no máximo, delegado servindo ao
poder empírico.
Outro monopólio co-essencial ao
primeiro: o do ordenamento jurídico. Não cabe a qualquer cidadão, ou entidade
privada, estabelecer normas de comportamento público e de ordenação
institucional. Assembléias Constituintes, em plano interno, ou congregando
nações, como a ONU, definem limites de competências, jurisdições, soberanias.
Mesmo Estados democráticos liberais ou socialistas não podem prescindir deste
monopólio. Caso contrário, é retomar ao arbítrio de alguns, reunidos pela riqueza
ou influência social.
Outro elemento é o monopólio da gestão
do excedente econõmíco. Impostos, alocação de recursos públicos, etc., tudo
isto cabe ao poder de Estado. As três formas de monopólio mencionadas,
entretanto, podem se transformar em veneno, corroendo o fím a que deveriam
servir: a garantia das liberdades. Quem movimenta aqueles poderes pode - e esta
é a história dolorosa nos tempos modernos e atuais -, por múltiplas causas,
negar a soberania constituinte do povo, definindo a sua própria infalibilidade:
militar, jurídica, econômica.
A recusa do debate, em nome da eficácia
e ganho de tempo, é dogma em todos os autores contra-revolucionários, do final
do século dezenove até o nazismo. A idéia de que a democracia e as discussões
em assembléias são danosas para a boa direção social ou científica tomou-se
lugar comum, preconceito partilhado pelas representações "reacionárias' ou
"progressistas". Já Augusto Comte pregou esta mentira quando disse:
“O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana". Este conceito recebeu
em Danoso Cortés o título correto: infalibilidade. Para esse autor, o conceito
de soberania é idêntico ao de poder infalfvel: o princípio da liberdade de
discussão, diz ele lamentando-se, é o fundamento das constituições
modernas". O erro deste liberalismo democrático teria sido a confiança na
infalibilidade da discussão, o que resultou, pensa ele, n absoluta anarquia. A
infalibilidade, primeiro atributo do Papa, é marca do soberano que, para Donoso
Corres, não é o povo,maso governante empírico. Ninguém melhor para lembrar,
nesse caso, do que um fiel discípulo de Donoso Cortes na Alemanha anterior a
Hitler, e que uniu-se ao ditador sem hesitações: Carl Schmilt. "Segundo
Donoso, diz Schmitt, é próprio da essência do liberalismo o não tomar posição e
decisão nesta batalha (entre o Bem e o Mal, RR) mas querer, pelo contrário,
produzir uma discussão. Ele define a burguesia exatamente como 'classe que discute'.
É neste rumo que ela se caracteriza, porque no seu modo de operar já está
ímpIfcito que ela deseja subtrair-se à decisão. Uma classe que transfere toda
atividade política para a fala, na imprensa ou Parlamento, não é adequada para
uma época de lutas sociais ..." ([10]) O
ideal liberalizante constituiria nisto: "que não apenas a corporação
legislativa, mas todo o povo discuta, que a sociedade humana se transforme num
imenso clube e que, deste modo, surja a verdade por si só, pela discussão"
(idem). Enfim, o liberal pensaria que a luta das classes "sanguinolenta
batalha decisiva, possa ser transformada num debate parlamentar e possa, assim,
ser suspensa por meio de uma eterna discussão". Mas. contra as "feras
populares" que ameaçariam os valores, a propriedade, a hierarquia e a
Ordem. Donoso Cortes só enxergava um remédio: a ditadura. "Senhores. (...)
a liberdade acabou! Não ressuscitará, senhores, nem no terceiro dia, nem no
terceiro ano, nem talvez no terceiro século. A liberdade não existe de fato, na
Europa; os governos constitucionais, que a representavam anos atrás, são
apenas, em todo lugar, senhores, um esqueleto sem vida “. Anúncio fúnebre que tem validade até
hoje, em muitos países do globo. Continua Cortés: "trata-se de escolher
entre a ditadura que vem de cima e a ditadura que vem de baixo. Escolho a que
vem de cima, porque vem de regiões mais limpas e serenas. Trata-se. finalmente,
de escolher entre a ditadura do punhal e a do sabre. Escolho a ditadura do
sabre, porque é mais nobre") ([11]) Este é um bom exemplo do uso ensandecido do
monopólio da força fisica.
Tal discurso permanece, até hoje, como
protótipo de todas as falas decisionísticas que ridicularizam o liberalismo
democrático. Pela mediação de juristas como Carl Schmitt,' ele serviu para
justificar formas de governo totalitárias e autoritárias, como as de Hitler,
Salazar, Franco e de muitos ditadores latino-americanos. No Brasil, após a
experiência centralizadora do Império e Repúblicas ( a 'Velha" , a de
Vargas, e agora, a "Nova"),
o Estado marca-se pela
verticalidade e carismatismo, pessoal ou da instituição. Os princípios liberais
são ridicularizados a priori, em nome do realismo político, das gestões
eficientes. A premissa de que caberia aos governados legislar sobre seu próprio
agir é descartada, inúmeras vezes, sem maiores embaraços. Quando não se
outorgam pura e simplesmente leis e regulamentos (como os famosos Atos
Institucionais, de triste memória), criam-se "comissões" nomeadas
pelos Executivos, a fim de rascunhar projetos que, após, receberão a forma e o
conteúdo determinados pelos compromissos dos governantes com setores hegemônicos
da sociedade (o que é regra), ou para atrair as massas. na política populista.
Os longos anos de reforço autocrático
manu militari, apenas aumentaram a heteronomia da população - desde as
periferias das cidades, até os campi universitários - no seu exercício
institucional quotidiano. Somos e constituímos qual Estado? Caso fique definido
que o Estado, entre nós, nos seus elementos executivo, legislativo, judiciário,
continuará a ser regido pela lógica da "eficiência" e recusa do debate liberal,
isto é, pela via do decisionismo, devemos concluir que é impossível toda e
qualquer liberdade cidadã. A forma vertical de mando seria inelutável: no
ápice, um líder supremo, na base, apenas a massa indistinta, manipulada ao
bel-prazer dos intermediários entre o chefe e os súditos. Ou escravos.
Lutamos, em nossa terra. para diminuir
o abuso do Executivo. na administração do segredo. e dos monopólios da força
física, do ordenamento jurfdico, da gestão sobre o excedente econômico. Nesta
guerra, entretanto, os recursos são desiguais. René Cassín proclamou, na ONU,
em 1948, os quatro pilares da Declaração que naquela data se publicava: o
primeiro, relativo aos direitos pessoais, à vida, à liberdade. À segurança da
pessoa, sempre ameaçada pela "segurança" dos Estados. O segundo, o direito
à família e aos agrupamentos humanos, dos mais restritos aos mais amplos. O terceiro,
o das liberdades públicas e direitos políticos, pensamentos. crença, palavra, expressão,
reunião. O quarto é o campo dos direitos econômicos, sociais, culturais, como trabalho,
educação, segurança social, vida intelectiva. ([12])
Observemos o que se passa no mundo, e
no Brasil, no tocante a cada um dos itens acirna. Que segurança, que direito
pode existir, de forma universal e duradoura, quando lemos, nos relatórios de
organismos insuspeitos como a Anistia Internacional, os infindáveis casos de
tortura, sequestro de homens e mulheres na calada da noite, pelas forças
policiais, regulares ou secretas? Como falar em "liberdades", quando a
crítica aos governos é paga com desaparecimentos de corpos? "Nas últimas
décadas. alguns governos latino-americanos adotaram a nefasta prática de fazer
'desaparecer' seus adversários políticos. Isto ocorreu com macabra frequência
na Argentina, durante os anos da ditadura militar (...) mas felizmente terminou
com a eleição e a posse do presidente Raul Alfonsin (...) Aconteceu - e ainda
acontece - no Chile dominado pela mão de ferro do general Augusto
Pínochet" .([13])
A tortura é outro componente do quadro violento. que se desenha com o abuso do monopólio da força física, pelos governantes. Não apenas em nosso continente, mas em todo o mundo, se pratica este covarde exercícío da imposição e amedrontamento. Na China continental, na África do Sul, no Irã, no Peru, noventa países, pelo menos, empregam a tortura como arma repressiva. Esta "é o resultado de uma vontade política de governos autoritários ou totalitários. Faz parte de urna estratégia de segurança, que lança mão de pessoas de mau caráter para exercer sua política de dominação", ([14]) Somemos a este arsenal de horrores as prisões por objeção de consciência ([15]) , as violações dos mínimos direitos dos assim chamados "presos comuns", quando comparados aos "políticos". ([16]) Tudo isto, se lembrarmos os exemplos onde o Estado, na sua face executiva, aparece como promotor ou agente, direto ou indireto. Mas também podemos recordar as formas não-estatais de imposição, como os linchamentos, incentivados pela midia repressiva ([17]) . os assassinatos de lideranças civis contra os interesses particulares (como é o caso de Francisco Mendes, e inúmeros outros), a morte de posseiros e pequenos proprietários, como tem sido denunciado há muitos anos pela Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra, e por vários partidos de oposição. ([18])
Enquanto tais ações procuram domar a
crítica no interior de cada país. Recurso imenso é gasto na corrida
armarnentista, visando manter hegemonias econômicas, politicas, nacionais. ([19]) Todos estes fatores, somados a outros menos
notórios, mas tão graves quanto, tendem a enquadrar as liberdades em limites
estreitos. Notamos, entretanto. como contraponto a essa violência opressiva,
indícios de vida livre em nosso mundo. Assinalemos os movimentos nacionais e
populares que elevaram o ânimo democrático. apesar de toda sua ambigüidade: os
combates no Vietnã, na África, na Nicarágua. As mudanças ideológicas e
institucionais da União Soviética, e outros países socialistas. Além disto,
notamos que, se é verdade a existência de violações aos direitos humanos,
também é fato a ocorrência de sua denúncia. Organismos como a ONU, a Anistia
Internacional ainda conseguem, junto com a UNESCO, e outros, atenuar as marcas
da bárbarie contemporânea. Os crimes contra o homem e a natureza são
denunciados e, gradativamente, assumem feições de eficácia os movimentos ecológicos,
civis. Se os atos mostram alguma esperança de vida livre. o pensamento, não raro,
ainda se prende à sistematização autoritária, que descarta a liberdade
individual e coletiva. Como garantir o espaço da cidadania. ignorando os
indivíduos? Vivemos demasiado sob o signo da física social positivista, e do
materialismo vulgar. para quem estes são falsos problemas. Mas é justo a falta
de respeito pelas individualidades autônomas que distingue o despotismo. Nas
greves e manifestações de massa, embora estas sejam formas coletivas de luta. a
polícia sempre escolhe certas pessoas. isolando-as de seus iguais. Normalmente
os "eleitos" são os líderes que superam os outros pela coragem e
lucidez, os que têm uma individualidade mais rica, e livre. Sempre que se
estabelece a tirania, na vida política ou cultural, ela só consegue atingir
seus fins manipulando a força física, a propaganda, os monopólios jurídicos e
os da gestão sobre o excedente econômico. "Para reunir todos os cidadãos
de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso
tiranizar os espíritos, constrangê-los ao jugo da força (...) a força apenas
produz hipócritas. e por consequência. almas vis" (Beccaria, Dos
Delitos e das Penas). Quem ameaça as almas, arruína os corpos.
Terminemos. Para falarmos de
liberdades, e de sua contextualização, precisamos verificar em quais planos
elas são negadas. No Estado e sociedade contemporâneos, tudo indica que forças
agem no sentido das tiranias e no da liberalização. Mesmo no Irã, onde o agir
fanático atinge seu cume, notamos que existe oposição. Felizmente, o conceito
de totalitarismo é apenas um limite. Jamais uma sociedade inteira une-se
totalmente aos poderes vigentes nos Estados, com suas ideologias. Mesmo sob Hitler,
Stalin, Mussolini, Franco, e tantos outros, indivíduos e movimentos resistiram,
no interior do país ou no exílio. Esta também é uma esperança: o silêncio
imposto é terrível, mas passe. Hoje, sabemos mais do que nunca, "é
impossível a dignidade humana sem que acabe a miséria, mas também é impossível
uma felicidade adequada ao homem, sem o aniquilamento das antigas e novas
formas de submissão". ([20])
Perene dialética entre o individual e o coletivo, quando as sociedades livres
respeitam os dois lados da cadeia, mas as escravas apelam para a mentira de um
coletivo, lógica e ontológicamente acima dos indivíduos.
Foi este o desafio enfrentado pelo
pensamento laico após a Revolução Francesa, o Terror, o Termidor, a
Contra-Revolução vitoriosa na aparência. Muitos Estados, através de seus
ideólogos, acentuaram o elemento ético - objetivo - contra o moral – a subjetividade
individualízada-- de forma constrangedora. No Brasil, tivemos péssimos resultados
desta equação difícil, para usar os termos de Ernst Bloch. O anti-Iiberalismo,
forte entre nós, possibilitou a emergência de teorias sanguinárias, cuja
pretensão de limitar os direitos individuais, escarnecidos como
"individualistas", culminou nas várias formas de tortura.
Isto foi antecipado na prática e na doutrina
jurídicas de Carl Schmitt e pares. Não existem indivíduos, pensava aquele
autor: "o homem, na realidade, pertence a um povo e a uma raça. até nos
mais profundos e inconscientes movimentos da alma, até a mais fina fibra
cerebral". Donde, o estranho, qualquer um, "pensa e entende
diversamente, porque foi feito de um outro modo" ([21]) Em
13 de julho de 1934 Hitler proclamou-se, no Reichstag,
"juiz supremo" do povo alemão.
Comenta Schmltt, encantado: "A autoridade de julgar do Füher nasce da própria
fonte do direito (...) Todo direito nasce do direito à vida do povo".([22])
Se quisermos guardar um mínimo de
liberdade, mesmo para as massas populares. precisamos cautela máxima, portanto,
ao empregarmos discursos que podem acentuar, em nome de certo "anti-egoísmo",
o sujeito abstrato, "O Povo". Infelizmente, este traço "Völkisch"
marca muito discurso moderno com pretensões libertárias. Sob a escrita da
Aufklärung francesa, e modema em geral, jazem os textos de Spinosa. Ninguém
assumiu tão ardentemente a defesa da liberdade humana do que este judeu
perseguido pelas múltiplas ortodoxias de sua época. O último capitulo do
Tratado Teológico Polftico deveria servir como adendo, em toda e qualquer Constituição
politica livre. "Se a escravidão dos intelectos é norma do regime
monárquico, não podemos admitir sua eventualidade numa democracia". O fim
último do politico, pensa o filósofo, "não é a dominação, nem a repressão
dos homens, nem o jugo de uns pelos outros".
Utopia? Costumam os canalhas utilizar
semelhante frase no sentido de encobrir o domínio das mentes e corpos finitos.
Segundo eles, o "realismo" exige que tudo que tenha sido, continue e
permaneça igual. Desde que, evidentemente, lugares de mando lhes sejam
garantidos nas igrejas, Estados, instituições de poder. Para Spinosa, ao
contrário, a função poHtica "não é transformar homens racionais em bestas
feras, ou em autômatos". O alvo torna-se "dar-lhes a plena segurança
no uso de seus corpos e mentes. Depois disto, eles estarão em condições de
raciocinar mais livremente, não se enfrentarão mais com os instrumentos do
ódio, cólera, astúcia, vivendo a justiça. Portanto, o fim último da organização
social é a liberdade."
O governante autoritário é o verdadeiro
subversivo, no Tratado Teológico Politico. Quando ordena o que deve ser pensado
e dito. obriga os governados a separar suas palavras de seu raciocínio. "A
boa fé, indispensável à comunidade política, diz ele, se corrompe,
encorajando-se os traços detestáveis da lisonja, perfídia, quebra dos melhores
costumes". Qual a eficácia das leis contra a livre opinião? Resposta spinosana:
"elas atingem os homens retas, e deixam intactos os celerados".
'Affranchissons le Tage, et
laissons faire au Tibre.
La liberté n'est rien quand tout
le monde est libre;
Mais iI est beau de I'être, et
voir tout l'univers
Soupirer sous le joug et gémir
dans les fers;
II est beau d'étaler cette
prérogative
Aux yeux du Rhône esclave et de
Rome captive;
Et de voir envier aux peuples
abattus
Ce respect que le sort garde pour
les vertus. ([23])
Este discurso de Viriato, na peça
Sertorio de Corneille, é citado por Jaucourt no verbete "Liberdade",
da Enciclopédia Francesa. A confortável, para os colaboracionistas, tirania
romana é exorcizada pelo hino à liberdade dos Lusitanos. Nossa herança é
semelhante respeito, ou integramos o número dos povos invejosos que jamais
atravessaram o Tejo? Que a comemoração da Inconfldência Mineira. e dos eventos franceses,
nos sirvam de ânimo paca atingirmos o auto-respeito e a liberdade. Nossa gente
os merece.
ROBERTO ROMANO
Graduado em Filosofia pela Universidade
de São Paulo. Pós-graduado pela mesma Universidade e pela Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales, Paris, onde também fez doutoramento. É professor de
Filosofia Política na Universidade de Campinas. Colaborador de jornais e
revistas, é au-tor-de diversos livros, destacando-se, dentre eles, Brasil:
Igreja contra Estado; Conservadorismo Româtuico; Lux ln Tenebris. Atualrnente
desenvolve pesquisa sobre: A Filosofia Política de Diderot - o estatuto revolucionário
de sua escrita (Investigação desenvolvida no Departamento de Filosofia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP).
[1] Filosofia do Direito, § 34, Adição.
[2]
Entre muitos, cf. D'Hondt, J.: Hegel,
philosophe de I'Histoire vivante. Paris, PUF, 1966; Hegel., sa vie, son oeuvre, avec un
exposé de sa philosophie. Paris, PUF, 1967. Também: Ritter, J: Hegel et la révolution
française. Paris, Beauchesne, 1970. Cesa, Cl.: Hegel Filosofo Politico. Napoli, Guida Bd., 1976.
[3] Crítica da Razão Pura nota ao "prefácío" de
1781.
4 Conflito das Faculdades, citado em Romano, Roberto: "Kant e a Aufklärung” in Corpo e Cristal, Marx romântico (Rio, Guanabara) p. 87-88.
[5]
Hegel, G.W.F. Lições sobre a Filosofia da História.
IVa. parte, 3. Capítulo Terceiro, século das Luzes e Revolução.
[6]
Maxime Leroy: Histoire des Idées sociales en
France, v. 2, Paris, Gallimard, 1962, p. 34.
[7] Filosofia do
Direito. § 244.
[8]
Principios do Socialismo, lembrado por
Leroy, M. op. cit.
[9] Cf.
Burckhardt, C. Richelieu. Paris. Laffont, v.2, 1970, p- 44.
[10] Cf. Schmítt,
Carl: Le categorie del "politico". Bologna, II Mulino, p. 88 e seguintes.
[11]
"Discurso sobre la
Dictadura", 1849, in Obras Completas de Donoso Cortes. Madrid, BAC, 1970,
v. 2, p. 305 e seguintes.
[12]
Cf. Máxime Leroy, op. cit. p. 53.
[13]
Cf. Rodolfo Konder, Anistia
Internacional, uma porta para o futuro. Pontes/Unicamp,
1988. p 16.
[14]
e 15 Konder, R., op. cit. páginas 24 e
45 (e seguintes).
[15] Konder, R.,
op. cit. páginas 45 (e seguintes)
[16]
Cf. Paulo Sérgio Pinheiro: Escritos
Indignados (SP), Brasiliense. 1984.
[17]
Cf. M.V. Benevides e R.M.F. Ferreira:
"Respostas populares e violência urbana: o caso do linchamento no
Brasil" in Crime. violência e podcr. P.S. Pinheiro (0rg.) São Paulo,
Brasiliense, 1983, p.225 e ss.
[18]
Vanilda Paiva(org.) Igreja e Questão Agrária.
Rio, Loyola, 1985.
[19]
Brigagão, Clóvis: A Corrida para a morte.
Rio. Nova Fronteira, 1983.
[20]
Cf HansMayer: Aussenseiter. Frankfurt
am Main, 1975.
[21]
Cf "Stato, Movimento, Popolo"
ia Principii politici dei nazionalsocialismo. Firenze,1935. p.230.
[22]
“Der Füher schützt das Recht". Mesmo
autor.
[23]
Atravessemos o Tejo, esqueçamos o
Tibre. A liberdade é nada, se todo mundo é livre! Mas é belo sê-lo e ver todo
o universo suspirar sob o jugo e gemer no cativeiro/ É belo exibir tal
prerrogativa/ Aos olhos do Reno escravo e de Roma cativa! E ver a inveja dos
povos abatidos, Face a este respeito que a sorte guarda para as virtudes"
(Sertorius, Ato IV, cena II), Pléiade, Théatre Complet de Corneille, V. 2, p.
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