Enviado por Antonio Carlos Pannunzio -
30.8.2009
|9h20m
ARTIGO
As duas faces de uma rebelião
Avultado número de dirigentes da Receita Federal, inclusive superintendentes daquele órgão em diferentes Estados, tem solicitado afastamento das funções que exerciam, em solidariedade à ex-secretária Lina Vieira, afastada daquelas funções após haver colidido com a ministra chefe da Casa Civil, Dilma Roussef. Outros servidores do órgão, que a acompanharam quando, já exonerada, prestou depoimento no Senado, foram afastados dos cargos que ocupavam pelo seu sucessor Otacílio Cartaxo.
A análise dessa situação, incomum num braço de tanta importância da administração direta, tem suscitado análises divergentes dos órgãos de imprensa.
Há quem credite o processo à decepção dos dirigentes, ligados ao Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita (Unafisco), com a ruptura, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, das boas relações que a entidade tradicionalmente cultivou face ao PT.
Mas também existem analistas para os quais a ruptura entre a Unafisco e a administração federal foi causada pela aberta desautorização do presidente da República à diretriz, instaurada pela superintendente Lina Vieira, de centrar o esforço fiscalizador da RFB nos grandes sonegadores.
Talvez exista uma parcela de verdade nas duas abordagens. O que não se pode negar é que, embora o ministro da Fazenda, Guido Mantega, chame a si a decisão de fiscalizar a sonegação de grande porte, os efeitos de tal se fizeram sentir, de maneira palpável no curto período de Lina Vieira na Superintendência.
Há, no sistema tributário brasileiro, uma dupla iniqüidade. Todos os impostos nele previstos são, em maior ou menor escala, regressivos. Ainda quando o valor seja recolhido por uma outra pessoa física ou jurídica, como ocorre com o ICMS e o IPI, o contribuinte real é o cidadão na base da pirâmide social. E, quanto mais baixo seja o estrato a que pertence, maior é o peso proporcional do tributo.
A essa característica não escapa sequer o Imposto de Renda que, na prática, é um imposto sobre salários.
Uma segunda iniqüidade é que a estrutura de recuperação do tributo omitido ou sonegado funciona às mil maravilhas em relação ao contribuinte omisso de renda modesta e só raramente alcança os detentores de grandes fortunas.
A paz de que continuam a desfrutar figurões da República que em suas declarações omitiram a condição de proprietários de bens de grande valia e, até agora, não sofreram sanção alguma, contrasta com o caráter inexorável com que atua a malha fina em relação ao modesto assalariado que omitiu pequenos valores em sua declaração de ajuste.
Certamente um e outro esconderam valores tributáveis ao fisco. Mas, enquanto a perseguição e recuperação do que é devido por um contra o que ocultou pequenos ganhos ou acréscimos de patrimônio é absolutamente certa, a tomada das medidas administrativas compatíveis contra o afortunado omisso é bastante improvável.
Melhor seria que tivéssemos uma reforma nos mecanismos de tributação para tornar o País menos dependente dos chamados impostos declaratórios e por via de conseqüência de decisões políticas e administrativas sobre quem deva ser fiscalizado prioritariamente. Mas isso é coisa que não acontecerá no governo Lula.
A vinculação da prioridade no fiscalizar à capacidade contributiva do fiscalizando representou, num curto momento, uma correção parcial e de superfície da insanável distorção genética do nosso sistema tributário.
Ainda que nem todas as demissões destes últimos dias nos quadros da Receita Federal estejam ligadas à tentativa de, pela fiscalização atenta, corrigir as grandes omissões, parte delas deve achar-se associada ao desconforto moral dos profissionais da tributação face às práticas assimétricas daquele órgão.
Portanto, a rebelião, ainda que duramente abafada, traduz um anseio de justiça que não é apenas dos auditores fiscais, mas, principalmente, dos contribuintes corretos que, no íntimo, sabem que, por conta dessas múltiplas distorções, pagam o que não podem para que, quem deve pagar nada recolha, ou contribua apenas com valores simbólicos para financiar o Estado brasileiro.
Antonio Carlos Pannunzio é deputado federal pelo PSDB-SP e membro da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)