Domingo, 11 de Maio de 2008
Mentira e Razão de Estado.
Roberto Romano/Unicamp
Quando recebi o honroso convite (...) para expôr algumas idéias a este grave e seleto auditório, pensei falar algumas coisas sobre a Razão de Estado. A justificativa era evidente, imaginava eu, bastando inspecionar a midia internacional e brasileira para ver o quanto os poderes se desenvolvem no segredo e aprofundam as diferenças entre a cidadania comum e que os agem em nome do público. Guerras, modificações econômicas e jurídicas são empreendidas sem que os contribuintes saibam as suas causas e alvos. Pior quando medidas restritivas às liberdades civis—como o conjunto de ordenamentos norte-americanos batizados como Ato Patriótico— são esposadas por juristas e tribunais superiores. A democracia e as exigências de transparente responsabilidade governamental perdem a cada átimo sua marca de origem. No mundo inteiro observa-se uma espécie de retorno ao absolutismo, que por sua vez imaginávamos afastado pelas revoluções inglêsa, norte-americana e francêsa. Sequer pode-se afirmar que hoje vigora um Termidor. Na verdade o retorno político que testemunhamos segue para o arbítrio e a imposição de leis e normas pelos que ocupam o lugar do arcaico rei sagrado. Nunca, na história política moderna e deste país, o Executivo foi tão impositivo e tirânico.
Com a hegemonia inconteste do Príncipe (inclusive com o retorno da prática na qual os bens do Estado pertencem a governantes e áulicos) temos algo similar ao descrito por Peter Burke na consolidação moderna do Estado: todas as instituições públicas tornam-se instrumentos para ilustrar a imagem do governante. ( ) A Raison d´État é apenas um outro elemento da reivindicação enunciada pelo Rei Sol: L´État c´est moi. Como indica Peter Burke, as academias científicas, artísticas, os palácios públicos, as avenidas, as cidades, as fábricas, os quartéis passaram a existir apenas para exibir a “glória da França” na figura de Luís. As técnicas empregadas pelo Estado absolutista foram assumidas pelos governos após o refluxo da Revolução de 1789. A primeira delas é o culto da personalidade, abusado por Napoleão e conduzido ao delírio no século 20.
Recomendável é a leitura dos últimos considerandos feitos por Burke sobre o século anterior. O autor critica quem separa de modo radical a ordem política, na época de Luis e em nossos dias. Ele mostra que muitos autores recentes erram ao comentar o Estado do século 17. Por exemplo Daniel Boorstin que, em 1960, cunhou o termo “pseudo-evento”, cujo significado vai de uma ação encenada tendo em vista midia aos rumores sobre atos noticiados antes mesmo que ocorram. Em português atual o termo é factóide. As jóias, os quadros, medalhas e gravuras absolutistas integravam encenações meticulosamente ensaiadas. Existem outros termos como “Estado Espetáculo”, produzido por Schwartzenberg em 1977 ( ) para descrever a política de Kennedy, De Gaulle, Pompidou e Carter e o empacotamento dos candidatos. Dizer que “antes” os pretendentes ao governo não eram vendidos à população é olvidar que Richelieu e Luís XIV tinham ghost-writers para redigir discursos, memórias, cartas. A “venda” do produto político não difere em demasia hoje do que se fez na era da Razão de Estado.
Finalmente: “os meios de persuasão assumidos por governantes no século 20 como Hitler, Mussolini e Stalin e, em menor grau, pelos presidentes franceses e norte-americanos, são análogos sob certos aspectos importantes aos meios empregados por Luíz XIV”. Existem diferenças, pois “os novos meios eletrônicos têm suas próprias exigências. A mudança de discursos políticos para debates e entrevistas, por exemplo, é um dos seus efeitos. Mesmo assim, o contraste entre o que poderíamos chamar de ´governantes eletrônicos” e seus predecessores foi exagerado”. Conhecemos o sentido atual da manipulação das massas. Depois de Elias Canetti, cujo exame das multidões captou as bases totalitárias do século 20, em Massa e Poder, analistas como Peter Sloterdijk mostram as potencialidades da nova midia e da Internet no movimento de massas virtuais, determinado pela propaganda. ( )
Semelhantes artifícios são reunidos na classificação ética tradicional que diz respeito à mentira. Engana-se quem une razão e verdade. Como enuncia I. Kant, antecedido por Rousseau e Platão, a força do pensamento racional, no mundo finito, é acelerada pela mentira e pela desmesura. As primeiras linhas da Critica da Razão Pura dizem que “a razão humana sofre um destino peculiar, pois em todas as espécies de seu conhecimento ela se incendeia por questões que, como é prescrito pela própria natureza da mesma razão, ela não pode ignorar mas que, se ultrapassar os limites de seu poder, ela também não pode responder”. Como o poder político, a razão deve encontrar limites, caso contrário ela delira sem suportes na corporeidade humana. Se o conhecimento é o seu alvo, ela deve começar dando à sensibilidade o seu quinhão, partilhando seus poderes. Quando se imagina absoluta, a razão, enuncia Kant, torna-se despótica e vazia. A verdade necessita tanto de ingredientes raros e caros quanto das humildes fontes estéticas. Justo por tal motivo Kant defende a crítica da razão. Como diz o intróito da sua obra estratégica: “Nossa era é propriamente a era da crítica, a quem tudo deve ser submetido. A religião, por sua santidade e a legislação, por sua majestade, querem ser isentadas pela crítica. Mas então elas despertam suspeitas e não podem exigir o respeito sincero que a razão concede apenas ao que passa pela prova livre e pública”. ( ) O trecho kantiano é um ataque direto ao dogmatismo trazido pela razão de Estado. Tanto a ordem religiosa quanto a civil buscam um estado de exceção para si mesmas, enquanto a crítica liga-se à continuidade no ordenamento público e republicano. Alí, a regra é efetivamente universal e não admite exceções, muito menos estados de exceção. E a Raison d´État opera segundo a lógica do que é excepcional. Não por acaso um dos autores primevos na constelação absolutista redigiu em 1652 (tempo áureo da raison d´État, especialmente sob Richelieu e Mazarino) o primeiro livro claro sobre os golpes de Estado. Refiro-me a Gabriel Naudé. ( )
Proponho às senhoras e senhores inspecionar a mentira como essência da razão de Estado. Na tarefa, uso os trabalhos de vários escritores, sobretudo o de Victoria Camps, “A mentira como pressuposto”, editado em coletânea dedicada ao problema da mendacidade. ( ) Uma constatação primeira é sobre a natureza da linguagem verdadeira. Se ela é uma convenção ou se brota diretamento da natureza, é algo que se discute na filosofia desde os seus primórdios. Com esta zona cinzenta que obnubila noção de gênese, a hipótese mais produtiva, em termos políticos e jurídicos enuncia que a verdade no mundo finito não pode ser absoluta. E nem a mentira. A lingua, como a cultura humana incluindo o poder, define-se como um jogo. De Pascal a Wittgenstein, esta via tem sido explorada com insistência. A mentira, segundo o último pensador citado, é um jogo de linguagem que deve ser aprendido, como qualquer outro jogo.
Se existe uma atenuação do conceito de verdade e mentira no mundo moderno, ainda somos suficientes herdeiros de Rousseau e não perdemos a certeza na sinceridade. Este é o pressuposto da comunicação, sobretudo em coletivos que se desejam democráticos. Que a lingua seja o lugar dos equívocos, da insuficiente clareza, dos desvios semânticos, é algo debatido desde os pré-socráticos e o Crátilo platônico é eloquente testemunho. A simples inspeção em textos fundamentais do pensamento político moderno como o Leviatã, também mostram que antes de penetrar os segredos do poder é preciso bem vigiar o uso das palavras. Em nossos dias um analista que traz elementos para este labor é Austin, no importante How to do things with words. ( )
Segundo Austin, o que a lingua faz não é nem verdadeiro nem falso : está bem feito ou mal feito. Em lugar de erros ou falsidades, ele prefere dizer “atos infortunados”, como os abusos do pensamento, sentimentos, intenções, trazidos pela insinceridade do agente. Assim, dar conselhos com objetivos torpes, dizer culpado o inocente, prometer querendo não cumprir, não consiste em dizer coisas “falsas”, mas insinceras. Aí reside propriamente o ato de mentir.
Qual é a mais espalhada definição da mentira em nossa cultura ? A de Santo Agostinho. Este último proclama que Deus é inocente de toda falsidade. Ao dizer que Deus não precisa de nossa mentira, ele segue Platão à risca. Todos recordam as passagens da República que censuram os deuses homéricos mendazes, e a sentença do filósofo que define os atores divinos como inocentes. Do celeste ao humano: como a nossa vontade decidiu-se pelo mal, ainda no Paraíso (incluindo a mendacidade), no mundo finito tudo é pervertido. O Estado só existe porque ocorreu aqule primeiro ato de vontade maléfica e mentirosa. Servos de nosso egoísto e orgulho, para nós a mentira só pode consistir em “dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio) Em outro texto, o Contra mendacium ( ) [Contra o ato de mentir], o padre da Igreja analisa a mentira feita para obter vantagens. Nada mais acertado, no caso, do que recordar as passagens de Edmund Burke sobre a atração racional pelo mal, o que produz no homem o sentimento do “delight”, tranqüilo horror que segundo Burke é a fonte do sublime. Satã, o mentiroso supremo, pelo prazer da luz racional nos joga no delírio, armadilha cujo nome latino é lacio: rede luminosa que o Príncipe das Trevas joga sobre os “animais racionais”, para que eles se afastem da luz. ( )
A mentira é portanto um ato de fala. Vejamos o que isto pode significar. Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguistico, o objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.
“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de fala. ( ) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo, que consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples sequela do ilocutivo.
Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la no contexto dos atos de fala? Falar a mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir de uma regra, que exige dos partícipes de uma troca de enunciados que eles possuam os pensamentos e sentimentos expressos, e que tenham a intenção de falar em consequência. Digamos em forma de jogo: os partícipes de um jogo de xadrez devem ter a a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é um pressuposto da conversa. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, negaria o própria ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo. Por exemplo: se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a consequência se ampara, justamente, na ausência de explicitação, na falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de enganá-lo.
Permitam-me afirmar que nesse passo temos a condição primeira da Razão de Estado. Todos os comentadores daquela política indicam que a inconexão encoberta entre falante e ouvinte, entre os que falam pelo poder e os que obedecem, é o seu núcleo. A questão do segredo aninha-se neste fio básico da mentira. A mentira vai além dessa prática de engôdo metódico, pois alguém pode enganar e ocultar de si mesmo este seu intento, salvando às meias a própria consciência. “O político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Nestes casos, o perlocutivo não é apenas enganar. Assim, podemos imaginar que a mentira como perlocutivo absoluto —mentir por mentir— jamais ocorre. Mentir é um recurso próximo do que chamamos manipulação. Ela é um ato unilateral: eu engano, minto, e ele não deve perceber. Aqui também nota-se o traço da Razão de Estado, segundo a maioria dos comentadores. Quando citei Kant e a questão da crítica pública, era em preparação a este passo. A mentira, na perspectiva de Kant, nega o pressuposto semântico e pragmático essencial que, se ausente, a comunicação torna-se impossível e, com isso, toda ciência, moral, política. A razão de Estado é uma política paradoxal, porque tende a reduzir todo enunciado político à manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que se diz e se faz, e que tem a marca da mentira. A adesão aos atos do governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a vontade efetiva do coletivo.
A razão de Estado arruina a base da política, a fé pública, porque ela é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”. ( ) A mentira é um abuso da linguagem. Quando descoberta, a mentira precisa de razões excusas para justificar tal abuso. A verdade não precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.
Quais os tipos de mentira que mais operam na cultura ocidental, berço da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar. A linguagem política comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, mas demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. ( ) A lingua religiosa não é verdadeira, pois usa a analogia. Os atributos divinos são incognoscíveis. Só pode-se falar deles a partir das criaturas. A lingua cotidiana conta com fórmula mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza. Victoria Camps cita a grande filósofa Mafalda, que se refere à expressão “não tenho tempo” como uma boa “mentira dos adultos que costuma funcionar”. Sempre é bom que se lembre o estratégico livrinho de Torquato Aceto, o Della dissimulazione onesta. “Existem classes e profissões que se pressupõe por princípio que forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ( )
Mas nessas mentiras profissionais, diga-se, temos mentiras partilhadas, pois nelas o engano participa e assume a mentira. Esta última, no entanto, sendo um jogo que deve ser aprendido, aquelas mentiras pervadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou ilícito, segundo o caso. Passemos ao caso da mentira como ato de violência e poder.
As mentiras mencionadas há pouco, são geralmente socialmente aceitas, são funcionais, convencionais. A mentira real se identifica com a injustiça. Ela é uma espécie de violência e ela só é justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma saída que não seja a adesão. Quando existe mentira real? Quando a competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é possibilitada pela dominação religiosa, política, ideológica, profissional. A Razão de Estado se instala no mundo humano com a dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão de Estado formou o núcleo das revoluções democráticas na Inglaterra do século 17, na América e na França no século 18. Na democracia, a competência linguistica é simétrica e compartilhada. É por semelhante motivo que todos os reacionários do século 19, a começar com os romênticos conservadores, viram na democracia aquele regime onde todos falam, e todos falam em demasia, sem poder decidir.
Basta “alguma experiência da alma humana” diz Weinrich, para detectar os sinais da mentira. Aprender o jogo da mentira —e não por acaso o estadista da Razão de Estado é comparado ao jogador que frauda as regras— é aprender as possibilidades de manipulação e engôdo, que encobrem a fala, que por sua vez é o disfarce do pensamento. O que faz o regime da Razão de Estado contrário ao genero humano e à liberdade é o fato de que sua mentira é uma injustiça que não considera governantes e governados como iguais, uma redução, como diria Kant, do outro a puro meio da vontade governante. Não por acaso Montaigne define a mentira como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. É por tal motivo que o perlocutivo fornece uma chave para entender o ato da mentira política, dita Razão de Estado: a sua essência é a dominação do outro quando este não consegue recusar ou mesmo detectar o engano. O perlocutivo não é “mentir” ou “enganar” (porque disse X, menti ou enganei). A mentira permanece oculta, em especial na Razão de Estado, porque não deve ser percebida, caso contrário, ela perde seu efeito. Habermas imagina que numa sociedade ideal, ou seja, a democrática e ilustrada, impera o diálogo e a mentira é impossível. A simetria entre os cidadãos e os dirigentes mostra-se total. O único senão é que tal sociedade nunca existiu nem existirá, salvo talvez na Civitatis Dei. Mesmo assim é preciso atentar para a ruptura do diálogo celeste, trazida pelo primogênito da Luz. Sendo assim, temos a realidade absolutista da assimetria entre cidadãos e cidadãos, entre cidadania e príncipes. Existindo a assimetria, temos o poder dos competentes na fala e nos atos, os quais decidem sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos governados.
Não admira que os Estados formalmente definidos como democracias sejam frágeis nos dias posteriores ao Termidor. Não admira também que a confiança dos cidadãos na democracia diminua a olhos vistos. A astuciosa Razão de Estado, da qual adoecem estadistas, intelectuais e sobretudo burocratas, não pode fugir da corrosão homeopática da fé pública, sem a qual nenhum poder se sustenta em prazo longo. Como diz Nietzsche, citado bem a propósito por Victoria Camps, “os homens não fogem tanto de ser enganados, como de serem prejudicados pela mentira”. Não é por teres mentido para mim, arremata Nietzsche, “mas porque eu não mais acredite em ti, é isto o que me faz estremecer”.
Fé pública e verdade são os esteios que garantem todos os deveres, todas as leis, todos os contratos. É isto, afirma Amélia Valcárcel, ( ) que afasta a Razão de Estado para fora dos limites da moralidade. É por este motivo que Hegel estigmatizou a critica da razão, proposta por Kant, como algo desagregador para a sociedade civil e para o Estado. Sem dúvida, imagina Hegel ao perverter a noção de mentira na República de Platão, o sujeito individual não deve mentir, mas deve ser admitido que entidades não subjetivas podem trazer verdades que para ele, indivíduo abstrato, são mentiras. A instituição estatal é a verdade suprema dos indivíduos, ela tem o direito à mentira para o bem do coletivo. Moralmente se exige que uma pessoa não minta a outras, sendo repreensível se ela mente sobre assuntos de sua esfera profissional ou familiar. Sua mentira será punida se a mentira cometida afeta o Estado. Este, segundo Hegel, não precisa dizer a verdade, porque ele é a verdade. Instituições não mentem, indivíduos sim.
Termino essas notas sobre Razão de Estado com a lembrança de Pitt Rivers ( ) que afirma ser a mentira essencialmente uma categoria que mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é mentira, mas palavra de poder pertinente em si mesma, modelo e guia do saber e da ação dos que a recebem. Quem precisa fazer com que sua informação suba pode mentir, mesmo inadvertidamente, se esconde ou tergiversa parte de sua informação ou se não purifica o conveniente para o seu nível. Os totalitarismos, finaliza Valcárcel, “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”. O absolutismo fez o mesmo, com a terrível mentira que se encerra na Razão de Estado. Para dizer tudo com Zaratustra: “Em alguns lugares do mundo existem ainda povos e rebanhos, mas não entre nós (…) aqui só existem Estados. Estado? O que é isto ? Abri os ouvidos e lhes falarei da morte dos povos. O Estado é o mais frio dos monstros frios. Ele é frio mesmo quando mente; eis a mentira que sai de sua boca: ´Eu, o Estado, sou o povo’. Mentira. Os criadores formaram os povos e desenrolaram sobre suas cabeças uma fé e um amor; eles serviram a vida. Mas os destruidores puseram armadilhas para a multidão, é o que eles chamam Estado; eles puseram sobre suas cabeças uma espada e cem apetites. Se ainda existe um povo, ele nada compreende do Estado e o odeia como um pecado contra a moral e o direito. (…) Cada povo tem seu idioma do bem e do mal e o povo visinho não o entende. Mas o Estado sabe mentir em todas as linguas do bem e do mal e em tudo o que ele diz, mente e tudo o que possui, roubou. Tudo nele é falso; ele morde com dentes falsos, até suas entranhas são falsas. ( ) O Estado é o lugar onde todos estão intoxicados, bons e máus, onde todos se dissolvem (…) onde o lento suicidio de todos é chamado ´vida´. (…) Vede estes superfluos: eles adquirem riquezas e apenas se tornam mais pobres. Eles querem o poder (Macht) e, antes, a alavanca do poder, muito dinheiro —esses impotentes! Vede como eles sobem, estes macacos ágeis. Eles sobem uns sobre os outros e se fazem mutuamente cair na lama e no abismo. Todos querem ganhar o trono. Com frequência é a lama que está sobre o trono, e não raro o trono está plantado na lama. Todos loucos…seu idolo fede, este monstro frio; eles também fedem, os idólatras…”.
Nietzsche não foi um democrata, longe disso. Mas viu coisas não percebidas por muitos militantes que, por nada perceberem na Razão de Estado, coonestaram horrores na Alemanha, na Itália, na URSS, no Camboja e em muitas terras. É o que eu tinha para dizer sobre o tema. Obrigado.
Roberto Romano/Unicamp
Quando recebi o honroso convite (...) para expôr algumas idéias a este grave e seleto auditório, pensei falar algumas coisas sobre a Razão de Estado. A justificativa era evidente, imaginava eu, bastando inspecionar a midia internacional e brasileira para ver o quanto os poderes se desenvolvem no segredo e aprofundam as diferenças entre a cidadania comum e que os agem em nome do público. Guerras, modificações econômicas e jurídicas são empreendidas sem que os contribuintes saibam as suas causas e alvos. Pior quando medidas restritivas às liberdades civis—como o conjunto de ordenamentos norte-americanos batizados como Ato Patriótico— são esposadas por juristas e tribunais superiores. A democracia e as exigências de transparente responsabilidade governamental perdem a cada átimo sua marca de origem. No mundo inteiro observa-se uma espécie de retorno ao absolutismo, que por sua vez imaginávamos afastado pelas revoluções inglêsa, norte-americana e francêsa. Sequer pode-se afirmar que hoje vigora um Termidor. Na verdade o retorno político que testemunhamos segue para o arbítrio e a imposição de leis e normas pelos que ocupam o lugar do arcaico rei sagrado. Nunca, na história política moderna e deste país, o Executivo foi tão impositivo e tirânico.
Com a hegemonia inconteste do Príncipe (inclusive com o retorno da prática na qual os bens do Estado pertencem a governantes e áulicos) temos algo similar ao descrito por Peter Burke na consolidação moderna do Estado: todas as instituições públicas tornam-se instrumentos para ilustrar a imagem do governante. ( ) A Raison d´État é apenas um outro elemento da reivindicação enunciada pelo Rei Sol: L´État c´est moi. Como indica Peter Burke, as academias científicas, artísticas, os palácios públicos, as avenidas, as cidades, as fábricas, os quartéis passaram a existir apenas para exibir a “glória da França” na figura de Luís. As técnicas empregadas pelo Estado absolutista foram assumidas pelos governos após o refluxo da Revolução de 1789. A primeira delas é o culto da personalidade, abusado por Napoleão e conduzido ao delírio no século 20.
Recomendável é a leitura dos últimos considerandos feitos por Burke sobre o século anterior. O autor critica quem separa de modo radical a ordem política, na época de Luis e em nossos dias. Ele mostra que muitos autores recentes erram ao comentar o Estado do século 17. Por exemplo Daniel Boorstin que, em 1960, cunhou o termo “pseudo-evento”, cujo significado vai de uma ação encenada tendo em vista midia aos rumores sobre atos noticiados antes mesmo que ocorram. Em português atual o termo é factóide. As jóias, os quadros, medalhas e gravuras absolutistas integravam encenações meticulosamente ensaiadas. Existem outros termos como “Estado Espetáculo”, produzido por Schwartzenberg em 1977 ( ) para descrever a política de Kennedy, De Gaulle, Pompidou e Carter e o empacotamento dos candidatos. Dizer que “antes” os pretendentes ao governo não eram vendidos à população é olvidar que Richelieu e Luís XIV tinham ghost-writers para redigir discursos, memórias, cartas. A “venda” do produto político não difere em demasia hoje do que se fez na era da Razão de Estado.
Finalmente: “os meios de persuasão assumidos por governantes no século 20 como Hitler, Mussolini e Stalin e, em menor grau, pelos presidentes franceses e norte-americanos, são análogos sob certos aspectos importantes aos meios empregados por Luíz XIV”. Existem diferenças, pois “os novos meios eletrônicos têm suas próprias exigências. A mudança de discursos políticos para debates e entrevistas, por exemplo, é um dos seus efeitos. Mesmo assim, o contraste entre o que poderíamos chamar de ´governantes eletrônicos” e seus predecessores foi exagerado”. Conhecemos o sentido atual da manipulação das massas. Depois de Elias Canetti, cujo exame das multidões captou as bases totalitárias do século 20, em Massa e Poder, analistas como Peter Sloterdijk mostram as potencialidades da nova midia e da Internet no movimento de massas virtuais, determinado pela propaganda. ( )
Semelhantes artifícios são reunidos na classificação ética tradicional que diz respeito à mentira. Engana-se quem une razão e verdade. Como enuncia I. Kant, antecedido por Rousseau e Platão, a força do pensamento racional, no mundo finito, é acelerada pela mentira e pela desmesura. As primeiras linhas da Critica da Razão Pura dizem que “a razão humana sofre um destino peculiar, pois em todas as espécies de seu conhecimento ela se incendeia por questões que, como é prescrito pela própria natureza da mesma razão, ela não pode ignorar mas que, se ultrapassar os limites de seu poder, ela também não pode responder”. Como o poder político, a razão deve encontrar limites, caso contrário ela delira sem suportes na corporeidade humana. Se o conhecimento é o seu alvo, ela deve começar dando à sensibilidade o seu quinhão, partilhando seus poderes. Quando se imagina absoluta, a razão, enuncia Kant, torna-se despótica e vazia. A verdade necessita tanto de ingredientes raros e caros quanto das humildes fontes estéticas. Justo por tal motivo Kant defende a crítica da razão. Como diz o intróito da sua obra estratégica: “Nossa era é propriamente a era da crítica, a quem tudo deve ser submetido. A religião, por sua santidade e a legislação, por sua majestade, querem ser isentadas pela crítica. Mas então elas despertam suspeitas e não podem exigir o respeito sincero que a razão concede apenas ao que passa pela prova livre e pública”. ( ) O trecho kantiano é um ataque direto ao dogmatismo trazido pela razão de Estado. Tanto a ordem religiosa quanto a civil buscam um estado de exceção para si mesmas, enquanto a crítica liga-se à continuidade no ordenamento público e republicano. Alí, a regra é efetivamente universal e não admite exceções, muito menos estados de exceção. E a Raison d´État opera segundo a lógica do que é excepcional. Não por acaso um dos autores primevos na constelação absolutista redigiu em 1652 (tempo áureo da raison d´État, especialmente sob Richelieu e Mazarino) o primeiro livro claro sobre os golpes de Estado. Refiro-me a Gabriel Naudé. ( )
Proponho às senhoras e senhores inspecionar a mentira como essência da razão de Estado. Na tarefa, uso os trabalhos de vários escritores, sobretudo o de Victoria Camps, “A mentira como pressuposto”, editado em coletânea dedicada ao problema da mendacidade. ( ) Uma constatação primeira é sobre a natureza da linguagem verdadeira. Se ela é uma convenção ou se brota diretamento da natureza, é algo que se discute na filosofia desde os seus primórdios. Com esta zona cinzenta que obnubila noção de gênese, a hipótese mais produtiva, em termos políticos e jurídicos enuncia que a verdade no mundo finito não pode ser absoluta. E nem a mentira. A lingua, como a cultura humana incluindo o poder, define-se como um jogo. De Pascal a Wittgenstein, esta via tem sido explorada com insistência. A mentira, segundo o último pensador citado, é um jogo de linguagem que deve ser aprendido, como qualquer outro jogo.
Se existe uma atenuação do conceito de verdade e mentira no mundo moderno, ainda somos suficientes herdeiros de Rousseau e não perdemos a certeza na sinceridade. Este é o pressuposto da comunicação, sobretudo em coletivos que se desejam democráticos. Que a lingua seja o lugar dos equívocos, da insuficiente clareza, dos desvios semânticos, é algo debatido desde os pré-socráticos e o Crátilo platônico é eloquente testemunho. A simples inspeção em textos fundamentais do pensamento político moderno como o Leviatã, também mostram que antes de penetrar os segredos do poder é preciso bem vigiar o uso das palavras. Em nossos dias um analista que traz elementos para este labor é Austin, no importante How to do things with words. ( )
Segundo Austin, o que a lingua faz não é nem verdadeiro nem falso : está bem feito ou mal feito. Em lugar de erros ou falsidades, ele prefere dizer “atos infortunados”, como os abusos do pensamento, sentimentos, intenções, trazidos pela insinceridade do agente. Assim, dar conselhos com objetivos torpes, dizer culpado o inocente, prometer querendo não cumprir, não consiste em dizer coisas “falsas”, mas insinceras. Aí reside propriamente o ato de mentir.
Qual é a mais espalhada definição da mentira em nossa cultura ? A de Santo Agostinho. Este último proclama que Deus é inocente de toda falsidade. Ao dizer que Deus não precisa de nossa mentira, ele segue Platão à risca. Todos recordam as passagens da República que censuram os deuses homéricos mendazes, e a sentença do filósofo que define os atores divinos como inocentes. Do celeste ao humano: como a nossa vontade decidiu-se pelo mal, ainda no Paraíso (incluindo a mendacidade), no mundo finito tudo é pervertido. O Estado só existe porque ocorreu aqule primeiro ato de vontade maléfica e mentirosa. Servos de nosso egoísto e orgulho, para nós a mentira só pode consistir em “dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio) Em outro texto, o Contra mendacium ( ) [Contra o ato de mentir], o padre da Igreja analisa a mentira feita para obter vantagens. Nada mais acertado, no caso, do que recordar as passagens de Edmund Burke sobre a atração racional pelo mal, o que produz no homem o sentimento do “delight”, tranqüilo horror que segundo Burke é a fonte do sublime. Satã, o mentiroso supremo, pelo prazer da luz racional nos joga no delírio, armadilha cujo nome latino é lacio: rede luminosa que o Príncipe das Trevas joga sobre os “animais racionais”, para que eles se afastem da luz. ( )
A mentira é portanto um ato de fala. Vejamos o que isto pode significar. Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguistico, o objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.
“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de fala. ( ) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo, que consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples sequela do ilocutivo.
Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la no contexto dos atos de fala? Falar a mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir de uma regra, que exige dos partícipes de uma troca de enunciados que eles possuam os pensamentos e sentimentos expressos, e que tenham a intenção de falar em consequência. Digamos em forma de jogo: os partícipes de um jogo de xadrez devem ter a a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é um pressuposto da conversa. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, negaria o própria ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo. Por exemplo: se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a consequência se ampara, justamente, na ausência de explicitação, na falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de enganá-lo.
Permitam-me afirmar que nesse passo temos a condição primeira da Razão de Estado. Todos os comentadores daquela política indicam que a inconexão encoberta entre falante e ouvinte, entre os que falam pelo poder e os que obedecem, é o seu núcleo. A questão do segredo aninha-se neste fio básico da mentira. A mentira vai além dessa prática de engôdo metódico, pois alguém pode enganar e ocultar de si mesmo este seu intento, salvando às meias a própria consciência. “O político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Nestes casos, o perlocutivo não é apenas enganar. Assim, podemos imaginar que a mentira como perlocutivo absoluto —mentir por mentir— jamais ocorre. Mentir é um recurso próximo do que chamamos manipulação. Ela é um ato unilateral: eu engano, minto, e ele não deve perceber. Aqui também nota-se o traço da Razão de Estado, segundo a maioria dos comentadores. Quando citei Kant e a questão da crítica pública, era em preparação a este passo. A mentira, na perspectiva de Kant, nega o pressuposto semântico e pragmático essencial que, se ausente, a comunicação torna-se impossível e, com isso, toda ciência, moral, política. A razão de Estado é uma política paradoxal, porque tende a reduzir todo enunciado político à manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que se diz e se faz, e que tem a marca da mentira. A adesão aos atos do governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a vontade efetiva do coletivo.
A razão de Estado arruina a base da política, a fé pública, porque ela é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”. ( ) A mentira é um abuso da linguagem. Quando descoberta, a mentira precisa de razões excusas para justificar tal abuso. A verdade não precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.
Quais os tipos de mentira que mais operam na cultura ocidental, berço da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar. A linguagem política comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, mas demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. ( ) A lingua religiosa não é verdadeira, pois usa a analogia. Os atributos divinos são incognoscíveis. Só pode-se falar deles a partir das criaturas. A lingua cotidiana conta com fórmula mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza. Victoria Camps cita a grande filósofa Mafalda, que se refere à expressão “não tenho tempo” como uma boa “mentira dos adultos que costuma funcionar”. Sempre é bom que se lembre o estratégico livrinho de Torquato Aceto, o Della dissimulazione onesta. “Existem classes e profissões que se pressupõe por princípio que forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ( )
Mas nessas mentiras profissionais, diga-se, temos mentiras partilhadas, pois nelas o engano participa e assume a mentira. Esta última, no entanto, sendo um jogo que deve ser aprendido, aquelas mentiras pervadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou ilícito, segundo o caso. Passemos ao caso da mentira como ato de violência e poder.
As mentiras mencionadas há pouco, são geralmente socialmente aceitas, são funcionais, convencionais. A mentira real se identifica com a injustiça. Ela é uma espécie de violência e ela só é justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma saída que não seja a adesão. Quando existe mentira real? Quando a competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é possibilitada pela dominação religiosa, política, ideológica, profissional. A Razão de Estado se instala no mundo humano com a dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão de Estado formou o núcleo das revoluções democráticas na Inglaterra do século 17, na América e na França no século 18. Na democracia, a competência linguistica é simétrica e compartilhada. É por semelhante motivo que todos os reacionários do século 19, a começar com os romênticos conservadores, viram na democracia aquele regime onde todos falam, e todos falam em demasia, sem poder decidir.
Basta “alguma experiência da alma humana” diz Weinrich, para detectar os sinais da mentira. Aprender o jogo da mentira —e não por acaso o estadista da Razão de Estado é comparado ao jogador que frauda as regras— é aprender as possibilidades de manipulação e engôdo, que encobrem a fala, que por sua vez é o disfarce do pensamento. O que faz o regime da Razão de Estado contrário ao genero humano e à liberdade é o fato de que sua mentira é uma injustiça que não considera governantes e governados como iguais, uma redução, como diria Kant, do outro a puro meio da vontade governante. Não por acaso Montaigne define a mentira como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. É por tal motivo que o perlocutivo fornece uma chave para entender o ato da mentira política, dita Razão de Estado: a sua essência é a dominação do outro quando este não consegue recusar ou mesmo detectar o engano. O perlocutivo não é “mentir” ou “enganar” (porque disse X, menti ou enganei). A mentira permanece oculta, em especial na Razão de Estado, porque não deve ser percebida, caso contrário, ela perde seu efeito. Habermas imagina que numa sociedade ideal, ou seja, a democrática e ilustrada, impera o diálogo e a mentira é impossível. A simetria entre os cidadãos e os dirigentes mostra-se total. O único senão é que tal sociedade nunca existiu nem existirá, salvo talvez na Civitatis Dei. Mesmo assim é preciso atentar para a ruptura do diálogo celeste, trazida pelo primogênito da Luz. Sendo assim, temos a realidade absolutista da assimetria entre cidadãos e cidadãos, entre cidadania e príncipes. Existindo a assimetria, temos o poder dos competentes na fala e nos atos, os quais decidem sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos governados.
Não admira que os Estados formalmente definidos como democracias sejam frágeis nos dias posteriores ao Termidor. Não admira também que a confiança dos cidadãos na democracia diminua a olhos vistos. A astuciosa Razão de Estado, da qual adoecem estadistas, intelectuais e sobretudo burocratas, não pode fugir da corrosão homeopática da fé pública, sem a qual nenhum poder se sustenta em prazo longo. Como diz Nietzsche, citado bem a propósito por Victoria Camps, “os homens não fogem tanto de ser enganados, como de serem prejudicados pela mentira”. Não é por teres mentido para mim, arremata Nietzsche, “mas porque eu não mais acredite em ti, é isto o que me faz estremecer”.
Fé pública e verdade são os esteios que garantem todos os deveres, todas as leis, todos os contratos. É isto, afirma Amélia Valcárcel, ( ) que afasta a Razão de Estado para fora dos limites da moralidade. É por este motivo que Hegel estigmatizou a critica da razão, proposta por Kant, como algo desagregador para a sociedade civil e para o Estado. Sem dúvida, imagina Hegel ao perverter a noção de mentira na República de Platão, o sujeito individual não deve mentir, mas deve ser admitido que entidades não subjetivas podem trazer verdades que para ele, indivíduo abstrato, são mentiras. A instituição estatal é a verdade suprema dos indivíduos, ela tem o direito à mentira para o bem do coletivo. Moralmente se exige que uma pessoa não minta a outras, sendo repreensível se ela mente sobre assuntos de sua esfera profissional ou familiar. Sua mentira será punida se a mentira cometida afeta o Estado. Este, segundo Hegel, não precisa dizer a verdade, porque ele é a verdade. Instituições não mentem, indivíduos sim.
Termino essas notas sobre Razão de Estado com a lembrança de Pitt Rivers ( ) que afirma ser a mentira essencialmente uma categoria que mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é mentira, mas palavra de poder pertinente em si mesma, modelo e guia do saber e da ação dos que a recebem. Quem precisa fazer com que sua informação suba pode mentir, mesmo inadvertidamente, se esconde ou tergiversa parte de sua informação ou se não purifica o conveniente para o seu nível. Os totalitarismos, finaliza Valcárcel, “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”. O absolutismo fez o mesmo, com a terrível mentira que se encerra na Razão de Estado. Para dizer tudo com Zaratustra: “Em alguns lugares do mundo existem ainda povos e rebanhos, mas não entre nós (…) aqui só existem Estados. Estado? O que é isto ? Abri os ouvidos e lhes falarei da morte dos povos. O Estado é o mais frio dos monstros frios. Ele é frio mesmo quando mente; eis a mentira que sai de sua boca: ´Eu, o Estado, sou o povo’. Mentira. Os criadores formaram os povos e desenrolaram sobre suas cabeças uma fé e um amor; eles serviram a vida. Mas os destruidores puseram armadilhas para a multidão, é o que eles chamam Estado; eles puseram sobre suas cabeças uma espada e cem apetites. Se ainda existe um povo, ele nada compreende do Estado e o odeia como um pecado contra a moral e o direito. (…) Cada povo tem seu idioma do bem e do mal e o povo visinho não o entende. Mas o Estado sabe mentir em todas as linguas do bem e do mal e em tudo o que ele diz, mente e tudo o que possui, roubou. Tudo nele é falso; ele morde com dentes falsos, até suas entranhas são falsas. ( ) O Estado é o lugar onde todos estão intoxicados, bons e máus, onde todos se dissolvem (…) onde o lento suicidio de todos é chamado ´vida´. (…) Vede estes superfluos: eles adquirem riquezas e apenas se tornam mais pobres. Eles querem o poder (Macht) e, antes, a alavanca do poder, muito dinheiro —esses impotentes! Vede como eles sobem, estes macacos ágeis. Eles sobem uns sobre os outros e se fazem mutuamente cair na lama e no abismo. Todos querem ganhar o trono. Com frequência é a lama que está sobre o trono, e não raro o trono está plantado na lama. Todos loucos…seu idolo fede, este monstro frio; eles também fedem, os idólatras…”.
Nietzsche não foi um democrata, longe disso. Mas viu coisas não percebidas por muitos militantes que, por nada perceberem na Razão de Estado, coonestaram horrores na Alemanha, na Itália, na URSS, no Camboja e em muitas terras. É o que eu tinha para dizer sobre o tema. Obrigado.