sábado, 29 de agosto de 2009

Gazeta do Povo 29/08/2009

Caderno G

Sábado, 29/08/2009

Wilson Dias /ABR

Wilson Dias /ABR / O presidente do Senado, José Sarney, é exemplo evidente da prática do patrimonialismo reinante no país O presidente do Senado, José Sarney, é exemplo evidente da prática do patrimonialismo reinante no país
O declínio do homem público

Sob suspeita

A atual sucessão de escândalos no Brasil evidencia que as práticas do autoritarismo e do patrimonialismo continuam a ameaçar a consolidação da democracia. Fala-se em igualdade, mas todo o tempo a elite política trata de constituir privilégios para si

Publicado em 29/08/2009 | Rhodrigo Deda

Atos secretos. Funcionários fantasmas. Privilégios a parentes. Senadores dos mais variados ma­­tizes partidários usam dinheiro pú­­blico para fins pessoais. Em de­­mocracias consolidadas, fatos como esses resultariam em re­­nún­­cia certa. Mas, no Brasil, tais práticas são toleradas. O exemplo mais evidente é o do presidente do Se­­nado, José Sarney (PMDB) – apesar de uma sequência de denúncias contra ele, se mantém no cargo, com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em meio à crise, Lula chegou a dizer que “Sar­­ney tinha uma biografia” (?) e não podia ser tratado como um ho­­mem comum.

Esses episódios são somente os mais recentes que vêm abalando a opinião pública. Antes deles, ganharam as manchetes dos jornais a farra das passagens, em que parlamentares destinavam suas cotas de viagens áreas, que deveriam ser usadas para fins de trabalho, para viagens de férias com familiares e amigos. Na época, a justi ficativa de deputados para cederem as passagens era que “não havia regra dizendo que não podia” ou, então, “isso era uma prática comum”.

De fato, desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, o Brasil vem sofrendo uma série de desilusões com suas figuras públicas. A sucessão de escândalos leva a pensar que o país vive um momento de “duplipensar” orwelliano, em que se prega democracia e república, mas o que se pratica é autoritarismo e patrimonialismo. Fala-se em igualdade, mas todo o tempo a elite política trata de constituir privilégios para si.

Há um descompasso entre as ideias e a prática da política no Brasil, afirma o historiador do Direito Luiz Fernando Lopes, coordenador do curso de Direito da Universidade Federal do Para­­ná. “A aplicação das ideias originadas na Revolução Francesa foi, no Brasil, bastante distinta do sonho que acalentavam”, afirma Lopes. Segundo ele, a utopia de­­mocrática brasileira durou pouco, da campanha das “Diretas já”, em meados de 1980, até o im­­peachment de Collor. “Mas, de­­pois disso, houve um esvaziamento do discurso político; venceu o patrimonialismo.” O patrimonialismo – ou seja, o uso da máquina pública para fins pessoais – perdura até hoje.

Na visão do professor de Ética e Filosofia Política Roberto Ro­­ma­no, da Universidade de Cam­­pi­nas (Unicamp), a cultura política brasileira evolui muito pouco desde o período colonial e ainda hoje apresenta fortes características absolutistas, com um Poder Executivo imperial, pouco republicano e federativo. “Os amigos do ‘rei’ continuam sendo agraciados com benefícios (como se vê na liberação de emendas a parlamentares da base aliada).”

O que faz o momento atual ser diferente, diz Romano, é a existência de uma camada da população mais intelectualizada, que toma consciência das irregularidades praticadas pelos políticos e passa a não mais aceitar isso. “Apesar do quadro atual, sou otimista. Penso que a urbanização, o aumento da escolaridade e o avanço das tecnologias tendem a ampliar o número de pessoas que não toleram mais essas práticas”. A tendência, diz Romano, é que em 50 anos as práticas patrimonialistas – de apropriação de recursos públicos para fins privados – sejam sepultadas. “Mas, para isso, é preciso canalizar o imenso acúmulo de informações técnicas para mudar essas práticas. E,nesse sentido, será preciso rediscutir o papel dos partidos e movimentos sociais. Precisa-se aposentar os coronéis corruptos e anacrônicos do império.”

Já o professor de Ciências Po­­líticas e de Direito Consti­tu­cio­nal Carlos Strapazzon, do Cen­­tro Universitário Curitiba, aponta que o principal problema é que no Brasil a noção do “público” é a do espaço de ninguém. “Não há distinção clara entre as esferas dos interesses públicos e privados. No nosso país, chegar à esfera pública é um prêmio para os que encontram caminhos que não estão abertos para todos. Isso encurta o caminho para a riqueza”, diz Strapazzon.

No Brasil, afirma ele, ainda não se conseguiu estabelecer no­­ções claras de “homem político” e “cidadania”. Entretanto, ele acredita que as mudanças podem es­­tar começando a ocorrer, com o uso de novas tecnologias. “As pessoas estão abrindo suas informações, compartilhando, procurando comunidades. Talvez esteja surgindo um novo tipo de fraternidade, com uma nova concepção de espaço público.” Resta agora saber como as novas tec­­no­logias, que estão a criar uma nova cultura, podem fazer para proporcionar uma mudança na vida pública brasileira.