terça-feira, 18 de agosto de 2009

Um trecho, no post anterior, é mais do que atual, merecendo alguma reflexão, quando se pensa em mentira de Estado.

Qual é a mais espalhada definição da mentira em nossa cultura ? A de Santo Agostinho. Este último proclama que Deus é inocente de toda falsidade. Ao dizer que Deus não precisa de nossa mentira, ele segue Platão à risca. Todos recordam as passagens da República que censuram os deuses homéricos mendazes, e a sentença do filósofo que define os atores divinos como inocentes. Do celeste ao humano: como a nossa vontade decidiu-se pelo mal, ainda no Paraíso (incluindo a mendacidade), no mundo finito tudo é pervertido. O Estado só existe porque ocorreu aqule primeiro ato de vontade maléfica e mentirosa. Servos de nosso egoísto e orgulho, para nós a mentira só pode consistir em “dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio) Em outro texto, o Contra mendacium ( ) [Contra o ato de mentir], o padre da Igreja analisa a mentira feita para obter vantagens. Nada mais acertado, no caso, do que recordar as passagens de Edmund Burke sobre a atração racional pelo mal, o que produz no homem o sentimento do “delight”, tranqüilo horror que segundo Burke é a fonte do sublime. Satã, o mentiroso supremo, pelo prazer da luz racional nos joga no delírio, armadilha cujo nome latino é lacio: rede luminosa que o Príncipe das Trevas joga sobre os “animais racionais”, para que eles se afastem da luz. ( )

A mentira é portanto um ato de fala. Vejamos o que isto pode significar. Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguistico, o objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.

“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de fala. ( ) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo, que consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples sequela do ilocutivo.


Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la no contexto dos atos de fala? Falar a mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir uma regra, que exige dos partícipes uma troca de enunciados que eles possuam, os pensamentos e sentimentos expressos e que tenham a intenção de falar em consequência. Digamos em forma de jogo: os partícipes de um jogo de xadrez devem ter a a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é um pressuposto da conversa. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, negaria o própria ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo. Por exemplo: se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a consequência se ampara, justamente, na ausência de explicitação, na falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de enganá-lo.