quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Correio Popular de Campinas, 19/08/2009

Publicada em 19/8/2009


Desastrosa concordata

Roberto Romano

A Igreja do Império tinha privilégios em todos os campos. A ela foram confiadas a vida coletiva e individual, do nascimento à morte, do batistério ao campo santo. O alheio ao rebanho enfrentava problemas na ordem civil, até mesmo na hora de seu enterro. Tamanho poder era compensado por uma realidade sombria. Os bispos, em Carta Pastoral emitida após a proclamação da República, denunciaram os privilégios que paralisavam as ações missionárias. Com as benesses estatais vinha o que os antístetes apelidaram a “Gaiola de Ouro”. Em troca dos recursos financeiros e jurídicos, os governos aplicavam duras regras contra o ingresso de noviços nos conventos, ausência de nomeação de bispos, vetos à vinda de religiosos estrangeiros e outras medidas draconianas. Com a rarefação dos conventos, as propriedades caiam nas mãos do Estado, segundo o instituto da mão morta.

A “gaiola de ouro” matava a Igreja Católica de asfixia. Devido às dimensões continentais do país, a disciplina do clero e dos leigos era frouxa. A calamidade pastoral se transformou em angústia dos bispos. Não por acaso o Padre Julio Maria iniciou um movimento amplo para reformar emperrados procedimentos oficialistas da Igreja, a demasiada confiança no elo entre “autoridades civis, eclesiásticas e militares”. No século 20, grupos de estudo e de ação foram iniciados, para que a vida religiosa católica fosse revigorada e a pastoral mantida sem gaiolas do Estado artificiosas.

Da Revista A Ordem, liderada por Jackson de Figueiredo e depois por Tristão de Athayde, passando pelos estudos redigidos por Thales de Azevedo na Bahia, tudo foi feito para impedir a morte social do catolicismo e retomar a sua presença na sociedade. Nesta época foi cunhado o lema: “Brasil, país de missão”. Em vez de se preocupar com a China ou países africanos, os católicos deveriam ter em mente que o Brasil se afastava da Igreja, era assunto de conquista.

Ainda naqueles dias os protestantismos nacionais, vistos como “imperialistas norte-americanos” (acusação feita pelo Padre Soares d´Azevedo, Um brado de Alarme, 1929) proibidos de elevar templos com marcas de igreja, iniciavam uma expansão que, vemos hoje, era irreversível. Doente de oficialismo, a nossa Igreja Católica se caracteriza, apesar dos esforços encetados por seus militantes, pela rigidez no trato entre hierarquia e fiéis, distância entre padres e vida civil etc. As casas de oração protestantes e carismáticas são abertas dia e noite a quem ali busque consolo e alimento para a fé. As paróquias católicas usam calendários rígidos, normas inflexíveis, portas fechadas. Tomem a Igreja Universal do Reino de Deus. Não tenho intenção alguma de efetivar uma apologia daquele empreendimento. Mas examinem as suas igrejas perenemente abertas, sempre com um auxiliar dos pastores na porta, convidando os transeuntes. Agora olhem as portas católicas fechadas em boa parte do tempo, ostentando horários de atendimento, avisos burocráticos, etc. A ilusão da gaiola de ouro faz a Igreja regredir na busca de almas e perder para os evangélicos.

O hábito de aplicar ventosas no poder público faz da Igreja uma instituição que sente os fiéis escaparem, como areia, de suas mãos. Depois das Concordatas com Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, a Igreja deveria ser cautelosa no trato com os poderes civis, porque estes últimos sempre estão à beira do autoritarismo e das ditaduras corrompidas. A concordata, aprovada pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, é uma tentativa a mais, para a Igreja, de manter sua força usando recursos jurídicos e de coação fornecidos pelo Estado. Como os bispos que denunciaram os “privilégios” do Império, breve o Vaticano e a CNBB lamentarão o incremento de oficialismo ora conquistado. Os templos vazios provam que ordens burocráticas não substituem o fervor e a liberdade missionária. Breve, a ser assim, o Brasil será protestante e o catolicismo, minoritário. E Deus não tem culpa neste jogo de sacristia cartorial.