Corrupção e paradigmas do pensamento
Roberto Romano
Unicamp
Dezembro de 2008
Quando se discute a corrupção dos costumes políticos, fraudes econômicas e violência social, surge na fala popular e mesmo em textos de analistas um inevitável par de imagens que não define a essência dos referidos problemas. Da antiga filosofia aos nossos tempos as teorizações sobre a natureza e a sociedade seguem modelos inspirados em nossa forma somática ou nos instrumentos que produzimos. Projetamos o mundo e a sociedade como imenso corpo, ou os ideamos na figura de refinada máquina, construída por um artífice cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, que vai de Platão a Hobbes e ao século 18, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo Aristóteles e os estóicos, e deles aos românticos do século 19 e 20.
A ordem social seria, numa forma doutrinária, imenso organismo cuja saúde e doenças exigem cuidados especiais, remédios para as suas crises ou velhice. Todos já leram ou ouviram alguém falar que a corrupção política, a inflação, a violência seriam variações do câncer, cuja tendência é a metástase que ameaça a sociedade. Tais imagens, não raro, impedem a tarefa de produzir idéias novas no debate sobre valores éticos. Se o mercado, a ordem estatal e societária, entram na categoria dos corpos, nos quais “doença” e saúde dependem de certos médicos (estadistas, economistas, etc.), importa buscar receitas e trato cirúrgico. O nazismo e o stalinismo abusaram dessas imagens. Neles surgiram projetos para “curar” a vida pública, as finanças, etc. Os seus intelectuais não se descuidaram da cirurgia : se grupos ou indivíduos eram considerados doentes pelo Partido, servia a técnica da ablação: nos campos de trabalho forçado ou nas câmaras de tortura, dissidentes foram extraídos da vida social. Sob totalitarismo, quem recusa os remédios oferecidos pelo Estado é visto como doente e causador de moléstias. O mesmo ocorre com os que, supostamente, prejudicam o corpo econômico e a saúde financeira. Ainda hoje a China comunista usa tal medicina, pois fuzila funcionários ou dirigentes de empresa ditos improbos. Pelos reiterados casos de corrupção na vida chinesa, a doutrina do organismo e os seus processos cirúrgicos são pouco eficazes para definir valores ou corretas atitudes éticas.
Outra imagem usada para descrever a natureza e a sociedade encontra-se na máquina. Platão é o fundador dessa linha. O demiurgo, que alguns chamam Deus, fabrica o mundo a partir das idéias eternas, que ele copia, e da matéria preexistente. A fabricação cósmica é descrita no diálogo “Timeu”. O ser divino é comparado ao modelador de cera, ao operário que recorta a madeira, ao construtor que reúne saberes para construir navios, edifícios, etc. De maneira similar, a ordem política seria obra técnica. Estado e sociedade constituiriam grandes máquinas que permitiriam o convívio dos indivíduos e grupos. Hobbes e o “Leviatã” continuam essa tradição do Estado máquina, modelo essencial no século das Luzes, era da moderna democracia. O mal político ou ético não seriam doenças do suposto corpo social. Ele se compara à desregulagem dos engenhos, ao desgaste de suas peças, ao modelo técnico ultrapassado. Para resolver os desafios sociais, em vez de extirpar membros seria preciso imaginar máquinas políticas adequadas ao crescimento e complexidade dos aglomerados humanos. Quando um coletivo aumenta o número de seus integrantes, surgem novas maneiras de gerar e distribuir riquezas, novas formas de mercado (financeiro, ideológico, religioso, científico). A máquina estatal deve se atualizar técnica e politicamente.
Com o desenvolvimento técnico e científico, bem como artístico, várias tentativas são hoje empreendidas para ir além dos modelos mecânicos ou orgânicos. Filósofos como Elias Canetti desenvolveram teorias do coletivo seguindo os parâmetros da revolução quântica. Outros, como François Dagognet, se interrogam sobre o próprio estatuto das imagens e paradigmas e a complexificação trazida pela cibernética, computadores, avançados instrumentos de precisão. Teóricos de várias origens estudam modelos de percepção social, assumem a tarefa de imaginar quais deles estariam à altura dos nossos dias. Os exemplos utilizados na antiga reflexão ética, moldados a partir do corpo, dos instrumentos, dos ofícios, foram extraídos das artes e das técnicas. Com a engenharia genética e a informática, surge a oportunidade de recuperar o trabalho da imaginação, produzir mecanismos de controle da ordem social. A marcha tecnológica amplia o imaginário do artificio aplicado à sociedade e à política.
As imagens das redes de neurônios, cuja leitura se faz de maneira sempre mais instantânea, indica que em poucos anos será possível o acesso aos pensamentos dos agentes societários. Isso possibilita, também em escala previsível, o aperfeiçoamento de relações simbióticas entre seres vivos e instrumentos eletrônicos, o que pode remediar ou corrigir falhas do nosso organismo. “Tais nexos”, diz um pesquisador em bioética, “poderia incluir arranjos ambientais ou acrescer a conjunção de humanos e máquinas”. É alvo da NASA, desde 1960, complementar os corpos pelo uso de instrumentos eletrônicos. Os progressos são efetivados não só no setor físico. Mesmo as intenções anímicas podem ser lidas diretamente na atividade do córtex parietal. Isto em animais. Mas já existem projetos nos EUA de criar “próteses neurais” que permitiriam entender o cérebro e como as mentes e máquinas podem interagir. Certa máquina do projeto Touring tem como alvo computar todo processo de raciocínio que possa ser representado por um algoritmo. Cientistas do MIT trabalham com sensores e algoritmos que poderiam reconhecer emoções como interesse, estresse, fadiga.
Voltemos ao pensamento platônico. Qual a causa da corrupção dos que têm por ofício proteger a vida e as riquezas públicas ? E porque a cidadania também se corrompe ou se deixa corromper? A causa está, diz Platão, na fraqueza técnica da pedagogia antiga , quando se trata de ensinar o respeito da lei. Acostumadas a ler textos legais e depois esquece-los, as pessoas ignoram os ditames éticos no convívio político. A solução é dada pelo filósofo com apelo à uma outra figura técnica. Para que a lei seja obedecida pelos guardiães e pela cidadania, é preciso que os legisladores e dirigentes operem como tintureiros exímios. Eles devem imergir as almas na tinta das leis por um tempo certo e intensidade correta. Assim, os indivíduos guardam as ordens legais em sua própria mente, de maneira indelével. A educação platônica pode ser resumida naquele tingimento de almas. Críticas foram levantadas contra o pensador. As suas propostas nada deixaram para a liberdade individual.
O que se passa hoje no caso da neurociência e da engenharia médica levanta as mesmas invectivas endereçadas ao sistema platônico. Os adversários dizem que se a consciência fosse capturada pela ciência, nada sobraria do livre arbítrio, não haveria escolha entre o bem e o mal. Daí para a imputabilidade seria um passo. Cortes de justiça tendem a aceitar argumentos das defesas, segundo os quais certos medicamentos ou processos técnicos comprometem a mens rea dos acusados, a condição mental exigida para a culpa.
Finalizemos. As antigas figuras da vida ética, a do corpo e a da máquina, em nossos dias tendem a ser peças do museu imaginário. Mas elas operam nas mentes e discursos de políticos e de analistas, são bem recebidas pela opinião pública. Com a neurociência, a cibernética e as tecnologias de leitura avançada dos poderes psíquicos, o projeto platônico de implantar as leis na mente humana pode se fazer realidade. Em vez de esperar que um banqueiro ou político burlem a lei, a educação e a tecnologia preveniriam aquele ato, enxertando mandamentos éticos e legais na mente da criança que agirá no universo social e no mercado. Delírio à maneira de Orwell ? No entanto, tal projeto pode ser visualizado. A DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) contava com verbas conhecidas (fora as secretas), acima de 3 bilhões de dólares em 2006. Grande parte daqueles projetos entram nas pesquisas de neurociência. Apesar da crise mundial, tais projetos tendem a ser mantidos, sobretudo por interesses estratégicos. Para todos os prismas mencionados, uma fonte excelente é o livro de Jonathan D. Moreno : “Mind Wars. Brain Research and National Defense” (New York, Dana Press, 2006).
Ou seja: instrumentos para o controle moderno da corrupção pública e privada podem ser disponíveis em prazo breve. Eles ajudariam a impor determinada ética aos grupos, aos mercados, aos poderes. Mas a crítica feita a Platão e a Hobbes se mantêm, como na Grécia antiga : se a técnica permite prevenir desvios éticos, trará ela bons costumes e livre opção? Temos um desafio para a democracia que só poderá ser vencido com saberes e imaginação. Sem tais elementos, repetiremos idéias e receitas envelhecidas de governo, no mesmo passo em que a sociedade se torna mais complexa e...corrompida.
Roberto Romano
Unicamp
Dezembro de 2008
Quando se discute a corrupção dos costumes políticos, fraudes econômicas e violência social, surge na fala popular e mesmo em textos de analistas um inevitável par de imagens que não define a essência dos referidos problemas. Da antiga filosofia aos nossos tempos as teorizações sobre a natureza e a sociedade seguem modelos inspirados em nossa forma somática ou nos instrumentos que produzimos. Projetamos o mundo e a sociedade como imenso corpo, ou os ideamos na figura de refinada máquina, construída por um artífice cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, que vai de Platão a Hobbes e ao século 18, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo Aristóteles e os estóicos, e deles aos românticos do século 19 e 20.
A ordem social seria, numa forma doutrinária, imenso organismo cuja saúde e doenças exigem cuidados especiais, remédios para as suas crises ou velhice. Todos já leram ou ouviram alguém falar que a corrupção política, a inflação, a violência seriam variações do câncer, cuja tendência é a metástase que ameaça a sociedade. Tais imagens, não raro, impedem a tarefa de produzir idéias novas no debate sobre valores éticos. Se o mercado, a ordem estatal e societária, entram na categoria dos corpos, nos quais “doença” e saúde dependem de certos médicos (estadistas, economistas, etc.), importa buscar receitas e trato cirúrgico. O nazismo e o stalinismo abusaram dessas imagens. Neles surgiram projetos para “curar” a vida pública, as finanças, etc. Os seus intelectuais não se descuidaram da cirurgia : se grupos ou indivíduos eram considerados doentes pelo Partido, servia a técnica da ablação: nos campos de trabalho forçado ou nas câmaras de tortura, dissidentes foram extraídos da vida social. Sob totalitarismo, quem recusa os remédios oferecidos pelo Estado é visto como doente e causador de moléstias. O mesmo ocorre com os que, supostamente, prejudicam o corpo econômico e a saúde financeira. Ainda hoje a China comunista usa tal medicina, pois fuzila funcionários ou dirigentes de empresa ditos improbos. Pelos reiterados casos de corrupção na vida chinesa, a doutrina do organismo e os seus processos cirúrgicos são pouco eficazes para definir valores ou corretas atitudes éticas.
Outra imagem usada para descrever a natureza e a sociedade encontra-se na máquina. Platão é o fundador dessa linha. O demiurgo, que alguns chamam Deus, fabrica o mundo a partir das idéias eternas, que ele copia, e da matéria preexistente. A fabricação cósmica é descrita no diálogo “Timeu”. O ser divino é comparado ao modelador de cera, ao operário que recorta a madeira, ao construtor que reúne saberes para construir navios, edifícios, etc. De maneira similar, a ordem política seria obra técnica. Estado e sociedade constituiriam grandes máquinas que permitiriam o convívio dos indivíduos e grupos. Hobbes e o “Leviatã” continuam essa tradição do Estado máquina, modelo essencial no século das Luzes, era da moderna democracia. O mal político ou ético não seriam doenças do suposto corpo social. Ele se compara à desregulagem dos engenhos, ao desgaste de suas peças, ao modelo técnico ultrapassado. Para resolver os desafios sociais, em vez de extirpar membros seria preciso imaginar máquinas políticas adequadas ao crescimento e complexidade dos aglomerados humanos. Quando um coletivo aumenta o número de seus integrantes, surgem novas maneiras de gerar e distribuir riquezas, novas formas de mercado (financeiro, ideológico, religioso, científico). A máquina estatal deve se atualizar técnica e politicamente.
Com o desenvolvimento técnico e científico, bem como artístico, várias tentativas são hoje empreendidas para ir além dos modelos mecânicos ou orgânicos. Filósofos como Elias Canetti desenvolveram teorias do coletivo seguindo os parâmetros da revolução quântica. Outros, como François Dagognet, se interrogam sobre o próprio estatuto das imagens e paradigmas e a complexificação trazida pela cibernética, computadores, avançados instrumentos de precisão. Teóricos de várias origens estudam modelos de percepção social, assumem a tarefa de imaginar quais deles estariam à altura dos nossos dias. Os exemplos utilizados na antiga reflexão ética, moldados a partir do corpo, dos instrumentos, dos ofícios, foram extraídos das artes e das técnicas. Com a engenharia genética e a informática, surge a oportunidade de recuperar o trabalho da imaginação, produzir mecanismos de controle da ordem social. A marcha tecnológica amplia o imaginário do artificio aplicado à sociedade e à política.
As imagens das redes de neurônios, cuja leitura se faz de maneira sempre mais instantânea, indica que em poucos anos será possível o acesso aos pensamentos dos agentes societários. Isso possibilita, também em escala previsível, o aperfeiçoamento de relações simbióticas entre seres vivos e instrumentos eletrônicos, o que pode remediar ou corrigir falhas do nosso organismo. “Tais nexos”, diz um pesquisador em bioética, “poderia incluir arranjos ambientais ou acrescer a conjunção de humanos e máquinas”. É alvo da NASA, desde 1960, complementar os corpos pelo uso de instrumentos eletrônicos. Os progressos são efetivados não só no setor físico. Mesmo as intenções anímicas podem ser lidas diretamente na atividade do córtex parietal. Isto em animais. Mas já existem projetos nos EUA de criar “próteses neurais” que permitiriam entender o cérebro e como as mentes e máquinas podem interagir. Certa máquina do projeto Touring tem como alvo computar todo processo de raciocínio que possa ser representado por um algoritmo. Cientistas do MIT trabalham com sensores e algoritmos que poderiam reconhecer emoções como interesse, estresse, fadiga.
Voltemos ao pensamento platônico. Qual a causa da corrupção dos que têm por ofício proteger a vida e as riquezas públicas ? E porque a cidadania também se corrompe ou se deixa corromper? A causa está, diz Platão, na fraqueza técnica da pedagogia antiga , quando se trata de ensinar o respeito da lei. Acostumadas a ler textos legais e depois esquece-los, as pessoas ignoram os ditames éticos no convívio político. A solução é dada pelo filósofo com apelo à uma outra figura técnica. Para que a lei seja obedecida pelos guardiães e pela cidadania, é preciso que os legisladores e dirigentes operem como tintureiros exímios. Eles devem imergir as almas na tinta das leis por um tempo certo e intensidade correta. Assim, os indivíduos guardam as ordens legais em sua própria mente, de maneira indelével. A educação platônica pode ser resumida naquele tingimento de almas. Críticas foram levantadas contra o pensador. As suas propostas nada deixaram para a liberdade individual.
O que se passa hoje no caso da neurociência e da engenharia médica levanta as mesmas invectivas endereçadas ao sistema platônico. Os adversários dizem que se a consciência fosse capturada pela ciência, nada sobraria do livre arbítrio, não haveria escolha entre o bem e o mal. Daí para a imputabilidade seria um passo. Cortes de justiça tendem a aceitar argumentos das defesas, segundo os quais certos medicamentos ou processos técnicos comprometem a mens rea dos acusados, a condição mental exigida para a culpa.
Finalizemos. As antigas figuras da vida ética, a do corpo e a da máquina, em nossos dias tendem a ser peças do museu imaginário. Mas elas operam nas mentes e discursos de políticos e de analistas, são bem recebidas pela opinião pública. Com a neurociência, a cibernética e as tecnologias de leitura avançada dos poderes psíquicos, o projeto platônico de implantar as leis na mente humana pode se fazer realidade. Em vez de esperar que um banqueiro ou político burlem a lei, a educação e a tecnologia preveniriam aquele ato, enxertando mandamentos éticos e legais na mente da criança que agirá no universo social e no mercado. Delírio à maneira de Orwell ? No entanto, tal projeto pode ser visualizado. A DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) contava com verbas conhecidas (fora as secretas), acima de 3 bilhões de dólares em 2006. Grande parte daqueles projetos entram nas pesquisas de neurociência. Apesar da crise mundial, tais projetos tendem a ser mantidos, sobretudo por interesses estratégicos. Para todos os prismas mencionados, uma fonte excelente é o livro de Jonathan D. Moreno : “Mind Wars. Brain Research and National Defense” (New York, Dana Press, 2006).
Ou seja: instrumentos para o controle moderno da corrupção pública e privada podem ser disponíveis em prazo breve. Eles ajudariam a impor determinada ética aos grupos, aos mercados, aos poderes. Mas a crítica feita a Platão e a Hobbes se mantêm, como na Grécia antiga : se a técnica permite prevenir desvios éticos, trará ela bons costumes e livre opção? Temos um desafio para a democracia que só poderá ser vencido com saberes e imaginação. Sem tais elementos, repetiremos idéias e receitas envelhecidas de governo, no mesmo passo em que a sociedade se torna mais complexa e...corrompida.