O teatro terrível de Elias Canetti
Roberto Romano
Na peça, os espelhos são continuados pelas fotografias, jogando Elias Canetti com o imenso acúmulo crítico da modernidade, o qual fortaleceu a recusa platônica das imagens. Basta que se lembre Baudelaire: com a fotografia, "a sociedade imunda se lançou com ímpeto, como um Narciso solitário, para contemplar sua imagem trivial sobre a placa metálica. Uma loucura, um fanatismo extraordinário, se apossou de todos esses novos adoradores do sol" (4). Um dos iniciadores da modernidade, mas dela crítico feroz, Rousseau retomou o platonismo contra imagens e o palco, numa peça teatral notável. Impossível amar a cidadania e mesmo satisfazer o erotismo entre homem e mulher, pensa o autor do "Contrato Social", sem abandonar o próprio ego: "(...) Quando amamos, não mais pensamos em nós mesmos" (5). A interdição dos espelhos e das fotos é recorrente ao longo da
"Comédia das Vaidades", retirando o autor deste motivo surpreendentes perspectivas da subjetividade vazia. A crítica do narciso coletivo é uma arte que vem sendo aprimorada desde a Grécia (a referência de Canetti a Aristófanes e à linhagem dos grandes satíricos mostra-se decisiva), fincando raízes também na cultura bíblica. "Vanitas vanitatum... et omnia vanitas" (6). Talvez nenhum refrão seja mais repetido -e no entanto mais eficaz para descrever a tolice humana, insuportável quando o intelecto reflete a si mesmo, entenebrecendo o mundo e seus fundamentos.
A glória, a vanglória, o saber arrogante que se confunde com a ignorância, as análises de tudo isso foram potenciadas ao máximo no encontro, durante o helenismo, entre a cultura grega e a judaica. Renascença e Reforma, ambas mergulhando nas águas mais profundas da Grécia e do povo israelita, levantaram monumentos literários nos quais, até hoje, brilha a mais fina ironia já lançada sobre os habitantes irritadiços de Babel. Poucos filósofos captaram de modo certeiro a tolice social como Montaigne. A vaidade, a "levitas" do vulgo estólido, é fonte de loucura e de tirania sem par. Contra ela, todos os recursos devem ser aplicados. Retomando a crítica do "Górgias" platônico à retórica, Montaigne constata o inescapável plano coletivo da "vanité": "A tolice e a facilidade que encontramos no vulgo, e que o torna sujeito a ser manipulado e deformado pelas orelhas ao doce som dessa harmonia, sem pesar e conhecer a verdade das coisas pela força da razão, essa facilidade, digo, não se encontra tão facilmente em um só...." (7).
Lutero, na Bíblia que modelou a língua alemã, grafa a "Vanitas" (8) com o termo que irá definir o misto de desengano e gloríola das modernas subjetividades: "Eitel" (9). O vocábulo, a melancolia e a sátira que ele evoca, muito próximas da Loucura erasmiana, foram um ponto estratégico no teatro, na poesia, na prosa e nas artes barrocas, em especial na Alemanha: "Du sihst/ wohin du sihst nur eitelkeit auff erden..." (Para onde quer que olhes, vês apenas vaidade sobre a terra") (10). A experiência do Nada, o lote dos indivíduos e povos na terra e a crítica da "Eitelkeit" chegaram ao máximo, em termos literários, com o romantismo. O mundo moderno, instaurado pela Razão das Luzes, o progresso, as melhorias sociais e políticas, mas sobretudo a liberdade baseada no conhecimento científico, seriam apenas tolice e palavras soltas ao vento, "Eitelkeit"... (11).
Hegel, o pensador que mais gravemente nivela os indivíduos, prendendo as subjetividades particulares ao "belo" Todo, captura, por meio de uma pilhagem do "Sobrinho de Rameau" diderotiano, a tolice na cultura massificada. Para que se efetive a pretensão do indivíduo ao genial autocentramento narcísico, como no caso do músico vagabundo que "empilhava e embaralhava 30 árias italianas, francesas, trágicas, cômicas, de todo tipo de personagem", é necessário que nada mais no espírito coletivo seja estável e sólido. A individualidade autocentrada é um corrosivo que ameaça os liames sociais. A consciência do Ego representa apenas "a tolice que só escuta a si mesma". O mundo moderno é sandice e loucura, e o indivíduo, seu filho e genitor ao mesmo tempo, é simples "Eitelkeit" (12).
Em semelhante mundo, como num espelho mágico, tudo aparece de cabeça para baixo, invertido e pervertido, explicitando-se como "um Eu que é um Nós". Lendo-se a "Comédia da Vaidade", é possível notar que tal itinerário é refeito, mas agora sem nenhuma promessa hegeliana de repouso conciliador ou epifania do Absoluto racional, no divino Estado que tudo corrigiria, da visão especulativa aos menores atos.
Notas:
1. A tradução francesa, "Comédie des Vanités", por exemplo, ajuda bastante a entender a polissemia, árdua em português, carregada pelo termo alemão, como veremos adiante.
2. "Le Miroir, Révélations, Science-Fiction et Fallacies", Paris, Seuil, 1978.
3. Hegel foi o grande profeta desse "cultivo" que realiza o polimento dos indivíduos, transformando-os em espelhos do coletivo, o universal. "Pela mediação da noção hegeliana de gênero, somos enviados a uma concepção bem determinada do que deve ser a "formação" do homem: na linha de Hegel, ela só poderia ser um "aplainamento", um apagar de todas as diferenças que separam os indivíduos, estes turbulentos, sempre rebeldes à boa totalização ética", Gérard Lebrun, "Surhomme et Homme Total", in "Revista Manuscrito", vol. 11, nº 1, 1978.
4. "Salon de 1859", in "Oeuvres Complètes", Paris, Laffont, 1980, págs. 748-9.
5. "Narcise, ou l'Amant de Lui-Même", in "Oeuvres Complètes de Rousseau", Paris, Gallimard, La Pléiade, vol. 2, pág. 1.018.
6. Esse poema deslumbrante e desalentado foi refeito em nossa língua por Haroldo de Campos, revestindo o Eclesiastes com a roupagem hebraica que define sua diferença diante da tradição latina. "Vanitas", ou "Névoa-nada", remete à triste reserva diante da estultice humana. Leia-se o esplêndido ensaio de Campos, no volume 1, em que foi publicada sua tradução. Cf. Campos, H: "Qoélet - O Que Sabe: Eclesiastes", São Paulo, Perspectiva, 1990, em especial a pág. 35, em que o tradutor indica a presença, no texto, de importantes traços irônicos.
7. "De la Vanité des Paroles", "Essais", in "Oeuvres Complètes", Paris, Gallimard, La Pléiade, 1962, pág. 293.
8. "Vanitas", que por sua vez reproduz na língua latina a palavra "mate", a loucura ou erro, falsidade, sandice, fala supérflua e superficial, donde o "mataiotes" grafado na "Septuaginta" (Cf. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart, 1979, pág. 238).
9. "Es ist alles ganz eitel...", "Lutherbibel erklärt, Die Heilige Schrift in der Übersetzung Martin Luthers", Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1987, pág. 1.002.
10. Andreas Gryphius, "Es ist alles eitell".
11. "Hinos à Noite", de Novalis, especialmente o de número cinco, espelham esta crítica às Luzes, de modo impiedoso. Cf. Roberto Romano, "Conservadorismo Romântico - Origem do Totalitarismo", São Paulo, Unesp, 1997, 2ª ed., pág. 130.
12. G.W.F. Hegel, "Phänomenologie des Geistes". "Werke in zwanzig Bänden", F.A.M. Suhrkamp, 1970, vol. 3, págs. 386-387.
Roberto Romano é professor de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de "Conservadorismo Romântico" (Ed. Unesp), entre outros. Este texto foi extraído do prefácio ao livro "Canetti - O Teatro Terrível" (Ed. Perspectiva), que deve ser lançado no dia 20 de junho.
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