segunda-feira, 15 de março de 2010

Do Roque...


Odorico vive, Sucupira é aqui

Dedico este post ao chargista Roque Sponholz, que em sua exímia capacidade de observação da política brasileira tem transformado sua arte em raro par de lentes para ampliação da acuidade visual do nosso povo.





Em 30 de abril de 1969, no Teatro de Santa Isabel, no Rio de Janeiro, o ator Procópio Ferreira (pai da grande dama Bibi Ferreira) encarnava pela primeira vez um dos personagens mais marcantes da dramaturgia brasileira: o prefeito Odorico Paraguaçu.

O personagem ainda foi vivido no teatro por Marco Nanini, mas foi na televisão, através da obra de Dias Gomes na telenovela e posteriormente na Série "O Bem Amado", que Odorico Paraguaçu se popularizou e vive até hoje no imaginário brasileiro. O primeiro ator a interpretá-lo na TV foi Rolando Boldrin, no entanto a figura forte que guardamos na lembrança foi construída pelo talento inquestionável do saudoso e inimitável Paulo Gracindo.

De 1969 até hoje se passaram 41 anos. Mas nada mudou. O personagem continua vivo. Não porque ele ainda seja presença nos palcos e estúdios de gravação da TV, mas porque a vida real - especificamente a política - tratou de lhe conceder a condição da imortalidade.

Odorico Paraguaçu era um homem tenaz em suas práticas inescrupulosas, a ponto de - isolado o caráter de comicidade que continha o personagem - criar a repulsa decorrente do seu maquiavelismo incurável. Tramava entre quatro paredes os mais ardilosos planos para manutenção do seu poder político, assessorado pelos asseclas representados por um secretário "aloprado" e uma vereadora líder da maioria, cuja atuação se extendia para o aspecto do envolvimento sentimental e que ainda era acrescido pelas mesmas intenções de uma irmã e uma prima.

A inauguração de um cemitério na cidade de Sucupira, que sempre enterrava seus mortos em campo santo de outro município, era a obstinação maior do prefeito. Este objetivo coordenava as tramas principais da ficção criada pelo Dias Gomes. Em decorrência, todos os crimes passavam a fazer parte do cotidiano: corrupção deslavada sob um constituído império de mentiras, chantagismo, guerra declarada contra a imprensa e o uso da força-crime do cangaço aliado através da ignorância de um suposto justiceiro conhecido por Zeca Diabo (aliás, figura que tantas vezes roubou a cena na pele do grande Lima Duarte).

Você, principalmente você, meu caro jovem, que não teve oportunidade de ver nenhum capítulo desta história, é capaz de encontrar alguma semelhança da arte com a vida real?

Pois é, Sucupira sempre foi o Brasil!

Quando Odorico encomendava, tramava a morte, enfim, arrumava um defunto para inaugurar seu cemitério, as forças contrárias tratavam de roubar o presunto e escondê-lo. O prefeito entrava em estado de loucura total. Era o retrato mais nítido das mazelas de um política regionalista, mas que se ampliava para além dos limites das fronteiras de um simples lugar nordestino. A corrupção, o desmando, a afronta impune às leis e à ética - cujos padrões eram mais rígidos do que hoje, até mesmo pelo momento histórico da concepção artística - erguiam um verdadeiro monumento de identificação com a realidade brasileira.

O fenômeno, analisado 40 anos depois, não se petrifica diante da constatação da verdade absoluta da insistência da vida imitar a arte.

A obsessão de Odorico era uma inauguração. Ele deve ter pensado em realizar seu objetivo com um caixão vazio, mas o recrudescimento da ideia tinha razões. Afinal era preciso mostrar o defunto, era preciso velar, rezar, fotografar o choro.

A vida evolui. Hoje é possível inaugurar defuntos. Sim, alguns são representados por obras condenadas por órgão fiscalizador reconhecido pelo próprio poder. É uma condenação pautada pelo descumprimento com base em indícios de irregularidades encontrados em 19 contratos. O montante sob suspeita é de R$ 8,664 bilhões, ou 90% do custo total da reforma da refinaria, que, de acordo com a Petrobrás, chega a US$ 5,4 bi, ou R$ 9,55 bi.

Este é o caso de uma unidade da Repar, em Araucária, região metropolitana de Curitiba, que Lula Paraguaçu "inaugurou" na semana passada.

Não precisou de um Zeca Diabo qualquer. Afinal, diferentemente de Sucupira, o Brasil não tem mais imprensa, não tem mais oposição, não tem mais regime democrático. Nós temos apenas um partido doente, que insiste em reviver o sistema que já virou o melhor defunto no mundo inteiro, à exceção de uma Ilha sofrida ali no Caribe.

Na melhor representação possível, nosso Paraguaçu pós-moderno carrega consigo sua Cajazeira preferida que, se não apaixonada pelo personagem principal, aprendeu ligeirinho a desejar o poder absoluto, no papel mais abjeto de trabalhar pelo "retorno triunfal do inaugurador" daqui a cinco anos.

No mais, hoje, as tramas periféricas se assemelham às características originais. O ódio devotado à imprensa, a ponto de querer lhe calar através de um camuflado plano de preservação dos direitos humanos, a corrupção do poder pelos mais diversificados meios de compra do caráter, a ousadia canalha para realização dos mais desvairados planos de perpetuação, a associação vergonhosa com regimes autoritários e condenados pelo mundo civilizado e o pior de todos: o roubo da consciência popular através das esmolas oficializadas que eternizam a ignorância pela dependência, a fórmula perfeita para camuflar a compra de votos.

Está faltando apenas um Zeca Diabo em dia de revolta! Infelizmente, hoje, um lado diferente da dramaturgia de Gomes, a oposição já foi sepultada. O cemitério finalmente foi inaugurado.



Enredo do Bem Amado

A pequena cidade de Sucupira, na Bahia, é administrada pelo prefeito Odorico Paraguaçu, um político corrupto e ardiloso que se utiliza de artimanhas para conseguir tudo o que deseja. Quando não consegue, manobra a situação de forma que ele sempre se saia bem. O prefeito, que havia morrido no fim da telenovela, ressuscita no primeiro episódio. A explicação dada é a de uma catalepsia.

Auxiliado pelo seu secretário Dirceu Borboleta e suas correligionárias, as irmãs Cajazeiras - Dorotéia, Judicéia e a prima Zuleica -, aversas, pelo menos em público, à imoralidades; Odorico enfrenta seus adversários políticos: Lulu Gouveia e sua esposa, bem como os jornalistas Neco Pedreira e Tuca Medrado, e, o mais temível de todos, o ex-matador de aluguel que um dia pensou tê-lo morto, o famigerado Zeca Diabo.

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