Odorico vive, Sucupira é aqui
Em 30 de abril de 1969, no Teatro de Santa Isabel, no Rio de Janeiro, o ator Procópio Ferreira (pai da grande dama Bibi Ferreira) encarnava pela primeira vez um dos personagens mais marcantes da dramaturgia brasileira: o prefeito Odorico Paraguaçu.
O personagem ainda foi vivido no teatro por Marco Nanini, mas foi na televisão, através da obra de Dias Gomes na telenovela e posteriormente na Série "O Bem Amado", que Odorico Paraguaçu se popularizou e vive até hoje no imaginário brasileiro. O primeiro ator a interpretá-lo na TV foi Rolando Boldrin, no entanto a figura forte que guardamos na lembrança foi construída pelo talento inquestionável do saudoso e inimitável Paulo Gracindo.
De 1969 até hoje se passaram 41 anos. Mas nada mudou. O personagem continua vivo. Não porque ele ainda seja presença nos palcos e estúdios de gravação da TV, mas porque a vida real - especificamente a política - tratou de lhe conceder a condição da imortalidade.
Odorico Paraguaçu era um homem tenaz em suas práticas inescrupulosas, a ponto de - isolado o caráter de comicidade que continha o personagem - criar a repulsa decorrente do seu maquiavelismo incurável. Tramava entre quatro paredes os mais ardilosos planos para manutenção do seu poder político, assessorado pelos asseclas representados por um secretário "aloprado" e uma vereadora líder da maioria, cuja atuação se extendia para o aspecto do envolvimento sentimental e que ainda era acrescido pelas mesmas intenções de uma irmã e uma prima.
A inauguração de um cemitério na cidade de Sucupira, que sempre enterrava seus mortos em campo santo de outro município, era a obstinação maior do prefeito. Este objetivo coordenava as tramas principais da ficção criada pelo Dias Gomes. Em decorrência, todos os crimes passavam a fazer parte do cotidiano: corrupção deslavada sob um constituído império de mentiras, chantagismo, guerra declarada contra a imprensa e o uso da força-crime do cangaço aliado através da ignorância de um suposto justiceiro conhecido por Zeca Diabo (aliás, figura que tantas vezes roubou a cena na pele do grande Lima Duarte).
Você, principalmente você, meu caro jovem, que não teve oportunidade de ver nenhum capítulo desta história, é capaz de encontrar alguma semelhança da arte com a vida real?
Pois é, Sucupira sempre foi o Brasil!
Quando Odorico encomendava, tramava a morte, enfim, arrumava um defunto para inaugurar seu cemitério, as forças contrárias tratavam de roubar o presunto e escondê-lo. O prefeito entrava em estado de loucura total. Era o retrato mais nítido das mazelas de um política regionalista, mas que se ampliava para além dos limites das fronteiras de um simples lugar nordestino. A corrupção, o desmando, a afronta impune às leis e à ética - cujos padrões eram mais rígidos do que hoje, até mesmo pelo momento histórico da concepção artística - erguiam um verdadeiro monumento de identificação com a realidade brasileira.
O fenômeno, analisado 40 anos depois, não se petrifica diante da constatação da verdade absoluta da insistência da vida imitar a arte.
A obsessão de Odorico era uma inauguração. Ele deve ter pensado em realizar seu objetivo com um caixão vazio, mas o recrudescimento da ideia tinha razões. Afinal era preciso mostrar o defunto, era preciso velar, rezar, fotografar o choro.
A vida evolui. Hoje é possível inaugurar defuntos. Sim, alguns são representados por obras condenadas por órgão fiscalizador reconhecido pelo próprio poder. É uma condenação pautada pelo descumprimento com base em indícios de irregularidades encontrados em 19 contratos. O montante sob suspeita é de R$ 8,664 bilhões, ou 90% do custo total da reforma da refinaria, que, de acordo com a Petrobrás, chega a US$ 5,4 bi, ou R$ 9,55 bi.
Este é o caso de uma unidade da Repar, em Araucária, região metropolitana de Curitiba, que Lula Paraguaçu "inaugurou" na semana passada.
Não precisou de um Zeca Diabo qualquer. Afinal, diferentemente de Sucupira, o Brasil não tem mais imprensa, não tem mais oposição, não tem mais regime democrático. Nós temos apenas um partido doente, que insiste em reviver o sistema que já virou o melhor defunto no mundo inteiro, à exceção de uma Ilha sofrida ali no Caribe.
Na melhor representação possível, nosso Paraguaçu pós-moderno carrega consigo sua Cajazeira preferida que, se não apaixonada pelo personagem principal, aprendeu ligeirinho a desejar o poder absoluto, no papel mais abjeto de trabalhar pelo "retorno triunfal do inaugurador" daqui a cinco anos.
No mais, hoje, as tramas periféricas se assemelham às características originais. O ódio devotado à imprensa, a ponto de querer lhe calar através de um camuflado plano de preservação dos direitos humanos, a corrupção do poder pelos mais diversificados meios de compra do caráter, a ousadia canalha para realização dos mais desvairados planos de perpetuação, a associação vergonhosa com regimes autoritários e condenados pelo mundo civilizado e o pior de todos: o roubo da consciência popular através das esmolas oficializadas que eternizam a ignorância pela dependência, a fórmula perfeita para camuflar a compra de votos.
Está faltando apenas um Zeca Diabo em dia de revolta! Infelizmente, hoje, um lado diferente da dramaturgia de Gomes, a oposição já foi sepultada. O cemitério finalmente foi inaugurado.
Enredo do Bem Amado A pequena cidade de Sucupira, na Bahia, é administrada pelo prefeito Odorico Paraguaçu, um político corrupto e ardiloso que se utiliza de artimanhas para conseguir tudo o que deseja. Quando não consegue, manobra a situação de forma que ele sempre se saia bem. O prefeito, que havia morrido no fim da telenovela, ressuscita no primeiro episódio. A explicação dada é a de uma catalepsia. |