Devido à uma entrevista publicada na Veja desta semana ["Lula não suporta críticas,atrapalham seu personagem"] recebi uma catadupa de xingatórios. A moda, agora, é com base em ataques contra mim, gerados por acadêmicos sem espinha, bolseiros do Itamaraty (aquela mesma instituição que condecorou uma "capivara" policial) dizer que sou "pseudo-filósofo", etc. Interessante: pelos missivistas, eu já estaria morto. Não duvido, a partir do ódio destilado, que eles cheguem ao extremo. Mas assistir silente o estupro das liberdades, caros companheiros, só "over my dead body". PT, saudações. RR
Segue uma resenha inteligente de um livro meu. Coisa rara no mundo acadêmico de nossos dias.
Filosofia de guerraSegue uma resenha inteligente de um livro meu. Coisa rara no mundo acadêmico de nossos dias.
Newton Bignotto
especial para a Folha
O Caldeirão de Medéia" reúne ensaios e escritos publicados em periódicos e revistas por Roberto Romano nos últimos anos. Embora não tenha sido concebido para dar ao leitor uma síntese das preocupações filosóficas e políticas do autor, o livro acaba fornecendo um painel amplo do percurso desse escritor que, desde seu primeiro livro -dedicado a estudar as relações entre a igreja e o Estado no Brasil-, sempre procurou entrelaçar questões de atualidade com estudos de problemas fundamentais da tradição filosófica.
Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o período em vários dos capítulos do livro. Num deles, dedicado ao problema da guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques d'Hondt de maneira a fazer do recurso à tradição uma ferramenta para expor sua própria interpretação. Nesse caminho, sobressaem duas marcas constantes de seu pensamento. Em primeiro lugar, o uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta.
Multiplicando as referências e abandonando por vezes o campo original do problema por meio da citação de outros pensadores das mais variadas épocas, o autor aumenta em muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa forma, no capítulo mencionado, ele não se furta a chamar de hagiografia a obra de Jacques d'Hondt e a apontar o viés conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a possibilidade de entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro, que poderia se embevecer com uma crítica fácil do pensador alemão, de que "deveríamos, em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa "realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de suas interpelações de nossa "realidade" é a segunda marca de seus escritos.
Embora os autores modernos sejam os que mereçam maior atenção, mesmo nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na obra de Voltaire, Romano conduz seu leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das mentes adormecidas pelas mais variadas formas de obscurantismo.
Buscando um Descartes diferente do sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a pecha de mero divulgador atribuída a Diderot ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de escurecer os cérebros dos estudantes com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo".
Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza seus pensadores para tomar posição nos debates contemporâneos. Já no primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando de lado as idéias dos que querem isolar as camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão essencialmente política. A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o autor faz do que chama de pensamento conservador, identificado como o daqueles que têm "medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns".
Pode-se discordar de algumas teses de Romano. O retrato do Brasil, esboçado em alguns capítulos, parece por demais pessimista assim como a aproximação entre realismo e reacionarismo, sugerida no final do capítulo sobre o "sublime e o prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo do processo de investigação do autor.
Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o período em vários dos capítulos do livro. Num deles, dedicado ao problema da guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques d'Hondt de maneira a fazer do recurso à tradição uma ferramenta para expor sua própria interpretação. Nesse caminho, sobressaem duas marcas constantes de seu pensamento. Em primeiro lugar, o uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta.
Multiplicando as referências e abandonando por vezes o campo original do problema por meio da citação de outros pensadores das mais variadas épocas, o autor aumenta em muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa forma, no capítulo mencionado, ele não se furta a chamar de hagiografia a obra de Jacques d'Hondt e a apontar o viés conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a possibilidade de entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro, que poderia se embevecer com uma crítica fácil do pensador alemão, de que "deveríamos, em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa "realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de suas interpelações de nossa "realidade" é a segunda marca de seus escritos.
Embora os autores modernos sejam os que mereçam maior atenção, mesmo nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na obra de Voltaire, Romano conduz seu leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das mentes adormecidas pelas mais variadas formas de obscurantismo.
Buscando um Descartes diferente do sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a pecha de mero divulgador atribuída a Diderot ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de escurecer os cérebros dos estudantes com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo".
Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza seus pensadores para tomar posição nos debates contemporâneos. Já no primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando de lado as idéias dos que querem isolar as camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão essencialmente política. A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o autor faz do que chama de pensamento conservador, identificado como o daqueles que têm "medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns".
Pode-se discordar de algumas teses de Romano. O retrato do Brasil, esboçado em alguns capítulos, parece por demais pessimista assim como a aproximação entre realismo e reacionarismo, sugerida no final do capítulo sobre o "sublime e o prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo do processo de investigação do autor.
O Caldeirão de Medéia
440 págs., R$ 35,00
de Roberto Romano. Editora Perspectiva.